Sobre vidas e concreto

Resenha do livro "As cidades", de Francisco Pipio
Francisco Pipio, autor de “Modo de falar às coisas”
01/06/2007

O livro As cidades, de Francisco Pipio, é uma coletânea de poemas voltada para uma mesma temática: a estreita relação entre a experiência urbana e estética. As cidades não se configuram apenas como cenário dos dramas e vivências cotidianas. São personagens que transitam com suas máscaras, sonhos, desejos e segredos sob diversos ângulos e pontos de vistas. “Definitivamente a cidade tem coração/ apesar de ser apenas aço o que corre/ em suas veias de concreto.” É nesse generoso coração que são guardados os sentimentos e conflitos dos seres que a habitam. Como seus habitantes, a cidade tem pernas, sensualidade, às vezes “esvoaçando num vestido/ agora sem anáguas”, que como em Incerteza, “segue/ seu próprio tempo”.

Há cidades que “se movem/ no compasso do progresso veloz” da modernidade e outras que “acordam (ainda) com o dobrar dos sinos” e caminham devagar no seu destino de província. Em suas diferenças, têm em comum ruas habitadas por bêbados, poetas, pintores, pardais, videntes que espiam, cachorros vira-latas, moças, homens, meninos e amantes e suas diferentes linguagens. Os poemas dialogam entre si e vivem a necessidade de se afirmarem enquanto expressão, ao mesmo tempo em que sofrem a incomunicabilidade de Babel: afinal “a cidade não vive/ de suas torres/ é da babel/ que vive a cidade”. São nessas esquinas que se dão os encontros e desencontros de uma arquitetura de concreto e da busca simbólica de significados para lembranças e esquecimentos, amores efêmeros, “desse amor que nos habita/ passageiro/ como andorinha”, e paixões perenes de um tempo sempre suspenso por um não tempo: “Cidades e histórias/ incontestavelmente diferentes, sempre”. Os seres dessas cidades se agitam, ora numa pressa de chegar a nenhum lugar, ora num ritmo devagar dos carros de bois. Tempo e espaço, relógio, ruas, esquinas se cruzam e traçam nessa poética seus fios narrativos.

O bispo e poeta Pedro Casaldáliga, escrevendo a Francisco Pipio, assim saúda o “companheiro de palavras e de sonhos”: “Li seus poemas. Você escreve povo, rua, vida… Com sinceridade, com uma palavra limpa, direta você deixa seu recado”. Pipio deixa seu recado numa escrita limpa e direta na qual nada excede, tudo é dito com exímio poder de síntese. Ele escreve povo, rua, vida… ao mesmo tempo em que levanta a reflexão sobre a escrita e seus artifícios. Em Receita para um poema, confirma essa perspectiva: “Ingredientes:/ Palavras. Nem tantas, nem poucas. O essencial”. Sua poética se configura como em Ofício diário, despretensiosamente, os “pardais/ espalham sementes”. Muitos são os poemas que discutem a própria linguagem e a arte poética. Neles, as cidades surgem como um corpo a ser desejado, como um texto a ser lido em seus segredos sempre inacessíveis. O poema Mistério da ficção exemplifica muito bem esse procedimento: “Entrecorto estradas. Interrogo pessoas/ Separo ruas virgulando lentamente/ para evitar apinhamento de/ gente e orações”. É assim que e o poeta viajante e andarilho, para ser o escritor, precisa ser o leitor do seu tempo, das suas ruas, do seu povo, como das linhas das próprias mãos. Linhas das mãos é uma expressão que aparece em diferentes momentos no livro para estabelecer essa relação entre leitura, corpo, enigma, ruas da cidade.

Roland Barthes em Semiologia e urbanismo afirmava que “a cidade é um discurso, e esse discurso é verdadeiramente uma linguagem: a cidade fala aos seus habitantes, nós falamos a nossa cidade…”; por outro lado, “a cidade é uma escrita; quem se desloca na cidade… é uma espécie de leitor que faz um levantamento antecipado de fragmentos do enunciado para os atualizar em segredo”. Ora, se qualquer habitante comum que se desloca na cidade é uma espécie de leitor, podemos dizer que os poetas são leitores privilegiados, atentos na leitura e dedicados na sua escrita. Desde o surgimento das cidades em épocas mais longínquas até todas suas transformações, há todo um elenco de poetas dedicados a esse trabalho. Isso tem nos possibilitado construir nossa história presente a partir, muitas vezes, desses fragmentos poéticos das ruínas do passado.

Francisco Pipio é um contemporâneo que reatualiza com sua poesia essa linhagem de escritores e poetas que cantam e se encantam com as cidades. Eles não só as tematizam em sua lírica, como também potencializam sua força de expressão em personagens que nos ajudam a transitar nesses meandros e mistérios da incomunicabilidade globalizada de Babel.

As cidades
Francisco Pipio
7Letras
53 págs.
Vilma Costa

É professora de literatura.

Rascunho