Aquele era o segundo problema que me trouxera ali, à biblioteca vedada aos turistas (embasbacados, um andar acima, com a máscara de ouro de Tutankhamon): o verdadeiro rosto do seu antecessor, Akhenaton, suas feições ocultas, de homem, sob os princípios da fé mais do que divinizante.
Os estudos em inglês, eu os podia ler sem dificuldade (o que eu já não podia dizer com relação aos textos em francês, a antiga língua “oficial” do museu do Cairo), mas havia todo um arquivo em alemão, em italiano… e um professor da Universidade de Asyut — não muito longe de Amarna — me falou de textos em russo (para mim, indevassáveis), ainda não traduzidos, no ritmo lento dos trabalhos de atualização científica do Departamento de Antiguidades, os quais andavam aí pelo ano de 1965, em termos de dados traduzidos para o inglês-esperanto (que vai se tornando).
Os russos tinham trabalhado, com aquela sua mania da “reconstituição facial”, e o professor — que não lia russo — acreditava, piamente, na excelência das informações contidas num calhamaço dos tempos de Nasser, curiosamente sem nenhuma fotografia dos trabalhos operados “por hipótese” (?)… Quase só texto — e tudo impenetrável, spassibo, para mim.
Fiquei pelo menos com cópia da farta documentação sobre uma máscara mortuária que, tudo indica, teria sido de Akhenaton, e podia ser considerada um documento único, por nos mostrar as feições naturais do rei: semelhantes às de qualquer egípcio da aristocracia que tivesse, talvez, um tanto de sangue asiático nas veias, normais na proporção e sem que o aspecto do “retratado” apresentasse quaisquer traços degenerativos. Pelo contrário, ali se vê alguém do grupo com as características modernamente chamadas de dolicocéfalas — características também presentes na prole de princesinhas de Akhenaton e Nefertiti — tudo reforçando a tese da arte amarniana de “deformação” como uma forma de representar as pessoas reais como canais de uma simbólica, ocultando princípios sagrados e ocultos (como o do androginato primordial) em seres reais, figurados para transmitir noções estranhas e difíceis.
De resto, não há sérios motivos para se acreditar que o herdeiro do faraó Amenófis III (cujo primogênito, um príncipe chamado Thutmósis, morrera quando o faraó estava próximo dos quarenta anos), o segundo filho homem do Rei-Sol do Egito, o futuro Amenófis IV, não tivesse nascido uma criança como todas as outras, normal na constituição física e sã de espírito. Este herdeiro só viera a nascer quando o faraó certamente já devia estar se inquietando pela falta de um príncipe continuador da sua linhagem — e a alegria pela sua vinda ainda nos comunica o júbilo, no palácio de Malqata, em Tebas, por volta de 1360 a.C., quando Akhenaton nasceu, certamente sadio.
Pelo que conhecemos do rosto da mãe, a rainha Tiyi, a mãe é de forte temperamento — e, tudo o indica, influenciará o filho do mesmo modo como já apoiara o marido em algumas das discretas originalidades de Amenófis III. Escaravelhos comemorativos dos primeiros anos do reinado deste faraó apresentam Tiyi sem os títulos de nobreza que seria da praxe enumerar, ao se mencionar o nome dos seus pais, Youya e Touyou — o que reforça a tese segundo a qual Akhenaton foi educado por uma mãe não-nativa, casada com nada menos que o “Luiz XIV” da Casa Real, nobilíssima, dos Amenófis do Egito.
E há uma provável nova estrangeira para aumentar as influências externas sobre o espírito do príncipe e futuro rei: é uma mulher que se torna rainha com dez ou onze anos, ao desposar um faraó de doze ou treze anos, como era a prática naquela época. Seu nome — de mulher bela e perdida em algum enigma do qual se partiu o fio de meada antigo — será para sempre associado ao do rei Akhenaton, significando, exatamente, A-Bela-Chegou. Ou — na língua egípcia — Nefertiti.
O nome “Nefertiti” não era, de modo algum, um nome raro no Egito.
Pelo contrário, “A-Bela-Chegou” queria dizer exatamente isso: a beleza reconhecida, a evidência do milagre e da maravilha numa não necessariamente “estrangeira”. A língua egípcia tinha recursos insuspeitados, e aqui estamos diante do som de um nome antigo que aponta para fora e para dentro, para a beleza procedente do exterior ou aparentada com estrangeiros (ou a eles associada)… mas que também sinaliza a descoberta daquela beleza que não é apenas o espelho que revela — porque é uma beleza que precisaria “chegar”, ser reconhecida, receber homenagens (para ser ainda mais bela).
A filha de Tushratta, rei de Mitanni, uma princesa chamada Taduhepa, no seu país, é anunciada com o nome egípcio “Nefertiti” — antes mesmo de chegar à corte do Nilo, enviada para contrair núpcias com o velho faraó Amenófis III, quando este dividia o trono, na co-regência de Akhenaton. Taduhepa não é mais referida em qualquer outro contexto — e talvez tenha morrido antes de sumir no quase anonimato do harém do terceiro Amenófis, cheio de princesas estrangeiras. Duas vezes esquecida — como Taduhepa e como Nefertiti — aqui reaparece somente como um som entre os sicômoros, uma sombra, uma viagem e um nome anunciado para ser, em seguida, engolido pelo vento norte.
A outra Nefertiti, no entanto, viajou da sombra para penetrar na alma do nosso tempo — onde seu nome se inscreveu num imaginário que vai da arqueologia aos sabonetes. Sua imagem é a mais difundida, suponho, depois da máscara de ouro que os turistas admiram. É uma rainha nas camisetas, nos bottoms, uma estrela de Luxor, uma fantasia num álbum de figuras: Nefertiti, parecida-com-Nefertiti, uma Mona Lisa egípcia num televisex que a internet difunde, a rainha que dez entre nove (isso mesmo) estrelas preferem, como se pode preferir o Egito que o Egito inverte em cenário de colorida cartolina…
Onde está Nefertiti?
A de Berlim se conserva na cidade que se orgulha de ter a Gioconda do Nilo, rainha a anunciar um sorriso — também uma sombra — que suaviza a expressão do olhar meio perdido e mais qualquer coisa tão misteriosa quanto o prodígio de modelagem, em pedra calcária mole e gesso, guardado em temperatura constante debaixo do abismo do vidro.
A pintura, sobre o gesso, é um prodígio não menor, um milagre que captou o tom róseo da pele, enquanto o azul claro da coroa faz a cabeça da rainha como que a planar numa nuvem de luz refratada da penumbra. Tudo num indefinível equilíbrio de linhas, desde aquela que se alonga da testa (ou da parte de trás da cabeça, culminando no barrete) até a resolução do contraste entre peso e leveza, porte e ar sereno. E, como se o escultor soubesse que só uma tensão deveria reforçar o tema de suspensão meditativa, o seu talento soube desenhar “no ar” a coluna esguia do pescoço — que é parte da maravilha de um “mero” modelo de escultor… porque essa obra-prima que não passava de um esboço, uma maquete em forma de busto (que o arqueólogo Borschardt extraviou para as riquezas do império austro-húngaro).
Berlim estava distante, com a cabeça da rainha entre os cacos do Muro grafitados pelo desespero da juventude —, mas eu podia caminhar alguns metros, da biblioteca atravessada por feixes de suspensa poeira, até a sala 3 do museu, na sua azáfama do pleno horário da pressa que visita tesouros antes do almoço e entre dois banheiros — e poderia ver, ali mesmo, próxima como a borboleta insistente entre as janelas, um outro esboço-modelo (este, não-terminado) que permanece no Egito, no museu nativo, de cacos conservados ainda entre as vitrines de Mariette.
Apesar da aura de obra-prima que justificadamente a cerca, a Nefertiti da Alemanha tem qualquer coisa de demasiado acabada, na nova sala reservada só para ela. Ali, naquele ambiente talvez “enfatizado” demais, se, num primeiro momento, o busto nos “tira o fôlego”, sob a luz teatral dos berlinenses, ao mesmo tempo se dá alguma quebra, algum afastamento daquela mulher na “nuvem do seu mistério”.
Ao contrário, na sala 3 do museu do Cairo, no fundo do grande hall de entrada, é possível encontrar a outra peça, a inacabada, que também retrata a mesma altiva serenidade da rainha de Berlim — agora em meio ao “ordenado desleixo” (tão do agrado, disfarçado, do Dr. Mohamed Saleh). Mas, aqui, nesta peça perdida, há algo de mais natural conferindo uma certa magia ao efeito da modéstia — num “modelo” sem pintura e ainda com as marcas, com os riscos não apagados e outros sinais do trabalho do artista.
Sabe-se o nome do presumível autor de ambas as maravilhas: Thutmés, escultor, em cuja casa foi encontrada a cabeça pintada, escondida num bloco de gesso com apenas uma pequena indicação de conter “algo eterno” — conforme classificou Ludwig Borschardt, autor da descoberta, nos trabalhos de escavações em Amarna (1907-1914).
NOTA — Conhecimento e malícia se uniram, em favor de Berlim, na hora em que os representantes do Departamento de Antiguidades egípcio faziam a supervisão do que ficaria no país e do que poderia ir para a Europa, como pequeno lote de pleno direito dos escavadores, etc. Ludwig viu que os funcionários desprezavam um bloco de gesso, quadrado e sem maiores indicações. Disse: “ficamos com ele”, sabendo, quase com certeza, que deveria conter qualquer coisa de muito importante, guardada ali dentro, durante três mil e trezentos anos. O gesso era uma “embalagem” dos tempos faraônicos, talvez providenciada pelo próprio escultor Thutmés, protegendo alguma rara peça escondida sob a massa branca. O “bloco de gesso” seguiu para Berlim, e foi preciso apenas esperar que chegasse ao seu destino, para martelar, com muito cuidado, o quadrado tosco e quebradiço, até extrair daí beleza escondida, roubada e acabada de chegar ao destino final do Museu Egípcio de Berlim.
Ambos os bustos, com toda certeza, saíram daquela cabeça — ou, pelo menos, da mesma oficina, e hoje eu prefiro a segunda, a do Cairo, aquela que não ostenta o barrete, e que não está completa e navega no elemento daquele “desleixo”, sob a luz coada pelas clarabóias do prédio neoclássico, feio como um quartel de fim do século. É a Dama Sem Real Barrete, na sua provisoriedade de peça incompleta e sem os efeitos da iluminação especial cujo halo paira sobre a Dama Quase Perfeita, a que falta apenas o olho esquerdo e o barrete (o estranho barrete, um solidéu, ou espécie de mitra — que não vemos na cabeça de nenhuma outra rainha do Egito).
Claro que há inúmeros outros retratos da rainha, em relevos e pinturas, mostrando-a ao lado do rei, nas orações, e junto com as filhas e o esposo, nos jardins do Palácio das Termas do Sul, na carruagem dourada em que Akhenaton se dá a ver ao povo ou, simplesmente, oferecendo uma flor para o rei lhe aspirar o perfume… mas, os dois bustos superam, a meu ver, mesmo o infalível frescor (que é privilégio amarniano) cuja marca vemos noutras obras de arte do período, delicadas como jamais tinham sido, ou voltarão a ser, antes e depois de Akhenaton, as realizações artísticas do espírito criador egípcio. Ao pensar nisso, parece que contemplamos a rainha por sua vez contemplando aquele apogeu completamente desaparecido, “dispersão do ser incessante/ para a oculta duração”…
As duas obras formam um par, raríssimo, de “instantâneos” da rainha, feitos pelo escultor para si, isto é, para facilitar o trabalho na elaboração de estátuas e outras obras carregadas de funções especiais, simbólicas, expressas e exercidas pelas altas personagens. Nas cenas murais, decorativas e públicas, outras intenções enfatizam ou reforçam idéias-força, e já vimos como as esculturas de Akhenaton representam princípios abstratos, com a nova liberdade permitida aos artistas. Mas, nos dois retratos, se dá o acaso de que possamos ter, hoje, algo como uma imagem “imediata”, captando o mistério da personalidade, naquele cofre de vidro, dentro da vitrine que a mão não abre e nem a arte, ela própria, aproxima senão para tornar mais remota (mesmo à distância de um braço) a soberana imersa em sombra — a “Bela-que-chegou”.
Mas, quem era, de fato, essa bela Nefertiti, a “Esposa-principal” de Akhenaton?