Romance-Folhetim: Poeira: demônios e maldições (8)

Capítulo 8 do folhetim "Poeira: demônios e maldições", de Nelson de Oliveira
Ilustração: Tereza Yamashita
01/06/2007

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Três vultos pequenos e agitados são vistos nos arredores do monumento a Gutenberg.

Para as poucas testemunhas surpreendidas no local os três vultos pequenos e agitados que passam correndo atrás do monumento parecem roedores grandes e focinhudos vestindo paletó de lã e gorro de pompom.

Os detalhes ainda são confusos.

Para metade das testemunhas os três vultos são quatro.

Para a outra metade são dois.

Para metade das testemunhas a carranca da estátua de Gutenberg se parece mais com a de Karl Marx.

Para a outra metade se parece mais com a de Nostradamus.

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Começou com uma inesperada cuspidela, splish, bem no meio da lente direita dos óculos.

Em seguida, a chuva.

As primeiras gotas evaporavam-se antes mesmo de tocarem o chão. Quando a temperatura começou a cair a rugosidade do asfalto, na rua, e o desenho dos ladrilhos, na calçada, foram ficando cada vez mais imperceptíveis sob o lençol opaco e escorregadio de água.

O visitante tentou em vão proteger a cabeça com a maleta.

O vento estava tão forte que, por mais que ele tentasse se posicionar de maneira que a maleta ficasse entre seu rosto e a chuva, continuava sendo atacado de todos os lados por liquefeitas setas quase invisíveis. Não havia como escapar.

Dobrou correndo a esquina e foi se abrigar sob a marquise de um edifício altíssimo, situado numa rua onde o visitante nunca tinha estado antes.

Vários transeuntes também pegos de surpresa já se encontravam embaixo da cobertura, o olhar dentro do aguaceiro, desconsolados.

Formavam um grupo muito eclético de executivos, secretárias, office-boys, camelôs e vagabundos, que, compactados no espaço irrisório existente sob a marquise, prensados uns contra os outros bem longe da porta de entrada do prédio, não tinham ânimo sequer para comentar sobre essa brusca mudança climática que afetava de maneira tão indesejada o bom andamento do dia.

De manhã ninguém havia pensado, antes de sair de casa, em levar consigo um guarda-chuva.

A saia, a camisa, a calça e as meias molhadas, os olhos da multidão vigiavam desanimados, meio mortos, meio inquietos, a silhueta borrada das outras pessoas que indiferentes à precipitação passavam correndo na calçada em frente, suportando na cabeça, nos ombros, na alma, o peso autoritário da cortina de água.

Em pouco tempo o pequeno grupo — quantos seriam? dez, doze pessoas? — começou a mostrar, para a surpresa do visitante, uma sincronicidade e um jogo de cintura tão perfeitos, que por um instante ele ficou se questionando se isso estava realmente acontecendo.

Se o vento começava a soprar do sul o bloco todo se esquivava de maneira homogênea para o norte. Se por sua vez o vento mudava e começava a soprar do norte então o bloco se dobrava para o sul, sem titubear, ou para o leste, comprimindo-se todo contra a parede do edifício se por acaso o vento voltava a mudar de direção e a soprar do leste.

Agiam como soldados de uma companhia disciplinada e eficiente que durante anos tivesse sido treinada para, numa operação desse tipo, apresentar o melhor desempenho tático de toda a História da nação.

Agiam por instinto, concluiu o visitante.

Agiam em silêncio. Até que alguém do meio do grupo sussurrou mais para si mesmo, que grande merda, que grandíssima merda. Disse isso num tom de voz cheio de viva e ingênua melancolia.

Foi o suficiente para que todos começassem a se expressar fazendo uso ora desses mesmos termos, ora de uma singela variação deles, procurando manter sempre que possível o mesmo tom agudo e ferino de revolta e indignação.

Um minuto depois já conversavam entre si, formando subgrupos alegres e fanfarrões, mas molhados até o pescoço.

Duas faxineiras vestindo o costumeiro uniforme azul, os sapatos da mesma cor infelizmente molhados, conversavam baixinho sobre a possível existência ou não de ocorrências sobrenaturais em dias como esse, de susto e tempestade.

Uma delas dizia de maneira apreensiva estar percebendo silhuetas estranhas no topo dos arranha-céus, na direção do centro da cidade.

Onde?

Não tá vendo lá perto do prédio da prefeitura?

Deixa de bobagem mal dá pra ver a prefeitura daqui.

Chega mais pra cá vem chega mais.

Pára de me puxar eu não quero ver nada.

Olha agora não tá vendo não?

Não estou vendo nada só água água e mais água.

Chega mais pra cá vê só aquelas sombras no alto da prefeitura estou toda arrepiada sente só.

Meus pés estão molhados minhas costas estão molhadas estou com frio pára com isso.

Ah não caramba não é possível que você não esteja vendo as sombras.

Pára de me puxar deixa de bobagem são só nuvens.

Olha lá que nuvem que nada!

Pára de me puxar mulher ficou doida?

Assombração isso sim.

Pirou de vez…

A rua era um espelho d’água. Os edifícios em frente, uma muralha cinza e sem viço.

Três estudantes de arquitetura conversavam animadamente sobre a fachada art nouveau do edifício onde estavam, com seis colunas ovais filetadas em dourado, diante do hall, e os batentes das janelas sinuosos e ricamente ornamentados, inspirados nas mais espantosas formas vegetais.

Porém o visitante não conseguia escutar com clareza o que falavam. A chuva havia aumentado e o barulho enervante da água batucando no chão era ensurdecedor.

Um sujeito calvo, de camisa xadrez sob um colete de lã, parecia mais impaciente do que todos os outros. Os envelopes grandes e rechonchudos que carregava estavam desfigurados, com as pontas desmanchando numa massa suja e o papel todo borrado de tinta preta.

Quando o visitante menos esperava, o sujeito forçou passagem na multidão e entrou na chuva, aos trancos, sem pedir licença.

Entrou e desapareceu corajosamente nela.

O cara é louco, alguém comentou.

É melhor a gente fazer o mesmo. Já são quase onze horas.

De jeito nenhum. Daqui eu não arredo o pé.

O vento mudou mais uma vez e todos devagar foram se jogando na direção oposta.

Os diálogos entrecruzados foram perdendo o colorido, o ritmo, a verve, até se extinguirem de vez. Não havia mais sobre o que falar. Tudo já havia sido dito e repetido várias vezes: a inconveniência dessa chuva, de todas as chuvas durante o horário comercial, a falta de ônibus nessa parte da cidade, a falta de abrigos para os pedestres, a falta de consideração das autoridades locais, a falta de tudo em toda parte.

Ninguém mais disse nada. Ninguém mais saiu em disparada.

Enquanto aguardava o fim da chuva — afinal mais cedo ou mais tarde ela inevitavelmente teria que terminar —, ora se apoiando na pena direita, ora na esquerda, procurando suportar da melhor maneira possível o cansaço dos joelhos, o visitante pensava em Estela.

Exatamente. Ele pensava na mulher do bibliotecário e pensando nela repetia para si mesmo, como eu sou ingênuo, meu Deus, ah, como eu sou imbecil.

Pensava em Estela e no prazer que ela sentia em cozinhar.

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Três vultos pequenos e agitados são vistos entrando pela porta dos fundos do velho hotel Coliseu.

Para as poucas testemunhas surpreendidas no local os três vultos pequenos e agitados que entram correndo no velho hotel Coliseu parecem roedores grandes e focinhudos vestindo sobretudo cinza e chapéu de feltro.

Os detalhes ainda são confusos.

Para metade das testemunhas os três vultos são quatro.

Para a outra metade são dois.

Para metade das testemunhas a fachada art nouveau do velho hotel Coliseu é a mais glamorosa da cidade.

Para a outra metade a fachada do velho hotel Antares, localizado do outro lado da cidade, é que é a mais glamorosa.

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Pensava em Estela e nos deliciosos pratos que ela preparava.

Mas nunca mais a mulher do bibliotecário voltara a preparar um jantar tão bem cuidado, singelo e aprazível, tendo à mesa apenas as pessoas mais íntimas — o bibliotecário, ela, Rodrigo, Renata e ele mesmo, Pedro Penna, durante poucas horas convertido em membro da família —, como costumava fazer nas noites imediatamente após a chegada do visitante à cidade.

Cristais holandeses, porcelana inglesa, pepinos com creme de leite azedo, linguado com molho de limão, filé mignon com molho de alcaparra e mostarda, strudel de maçã, café e charutos.

Não. Nunca mais.

Ele nem sequer voltou a ser convidado a provar de outra garrafa de vinho importado no final de uma tarde inteira de trabalho.

Não.

A chuva pipocava na calçada, no bico dos seus sapatos, e ele já não se sentia mais presente, já não se sentia mais solidamente posicionado sobre os joelhos doloridos e molhados.

Estava muito longe daí, estava com Estela, contando estrelas, girando o telescópio pelo horizonte, observando a intimidade dos moradores mais descuidados.

Isso após um delicioso jantar regado a Millésime, é claro.

Mas nunca mais tiveram outra garrafa de Millésime.

Por quê?

Havia algum tempo que o bibliotecário e a sua mulher, assim como Rodrigo e Renata, pareciam estar guardando certas objeções quanto ao modo como ele, o visitante, vinha lidando com os problemas locais. Principalmente com a série de desapropriações levadas a cabo nos últimos meses pela prefeitura, nas principais avenidas do bairro, a fim de conseguir terreno para a construção de novas bibliotecas.

Estela tinha verdadeira paixão pelos casarões e palacetes do início do século, pedaços de uma época que não existia mais, situados na parte velha da cidade e agora totalmente demolidos.

Pó. Nada mais do que isso.

Apenas pó, onde antes havia construções rococós com pórticos em forma de fachada de templo grego e janelas em forma de face humana e colunas ricamente ornamentadas e murais e mosaicos e azulejos suaves e encantadores e centenas de quadros de pessoas nuas em posições complicadas imitando as pinturas de Michelangelo.

Telefonei vinte vezes para o Vicente. Só ele conseguiria levar o caso ao governador. Que mais eu poderia ter feito?

Um frouxo, suspirou.

Sim, um frouxo. É assim que me consideram.

O desgraçado do Lopes põe abaixo avenidas inteiras e eu é que pago o pato, suspirou novamente. Um frouxo.

Pensando principalmente no descaso de Estela, lembrou dos dois livros que por acidente havia encontrado algumas semanas atrás. Devia ter guardado os dois livros. Devia. Por que não fez isso, não conseguia entender.

Tratava-se do Atlas celeste publicado pelo Observatório de Manaus contendo, além da exata posição, a descrição pormenorizada de todas as constelações conhecidas e das estrelas que as constituem, e uma edição revista e ampliada do Dicionário de astronomia e astronáutica, elaborado pelo professor José Ribeiro Andrada, doutor em ciências pela Universidade de Budapeste, fundador e primeiro presidente do Museu de Astronomia e Ciências Afins de Fortaleza e diretor do Observatório Nacional, instalado em Curitiba.

Não pegou os livros na hora sabe-se lá por quê.

Talvez porque se interessasse pouco por astronomia.

Somente hoje de manhã se deu conta de que poderia usar os dois livros como a melhor maneira de se reaproximar de Estela. Isso mesmo, a melhor maneira.

Porém essa idéia soava agora muito estranha.

Que importância Estela poderia ter no seu trabalho diplomático? Por que essa tentativa rocambolesca de se reaproximar da mulher do bibliotecário, quando o mais importante era uma reconciliação com próprio bibliotecário?

Decidiu acender um cigarro.

No bolso encontrou, além do estojo holandês, achatado, azul, a ficha também azul com o título Uma vez mais, uma vez mais anotado à mão pelo bibliotecário. Amassou-a, transformando-a numa bolinha enrugada, e a arremessou longe, para dentro do aguaceiro.

Odeio literatura russa. Que merda. Por pouco não protagonizo a cena mais ridícula da minha vida, pensou.

Uma cena verdadeiramente constrangedora.

Estivera prestes a pedir ajuda ao bibliotecário para fazer um agrado à mulher dele. Santo Deus, que cara de pau!

Até parece que as coisas já não estão bastante complicadas, pensou, ruminando cada palavra como se repetisse um texto escrito na enxurrada que aos poucos ia subindo na calçada.

Em seguida puxou para fora do estojo o último cigarro.

Pediu fogo ao sujeito gordo e bem vestido que estava ao seu lado, os olhos perdidos em alguma coisa invisível. Um sujeito rechonchudo, de sobrancelhas grossas e unidas, careca, completamente alheio ao burburinho embaixo da marquise.

O senhor tem um isqueiro?

O sujeito virou com lentidão o corpo imenso, como se tivessem apontado um revólver para a sua cabeça e ameaçado, quieto aí, meu chapa, vai passando a carteira.

O quê?

Um isqueiro. O senhor tem um?

O gorducho continuava encarando o invisível. Mas o invisível provavelmente havia se mudado, com essa pergunta, para o rosto do visitante. Caso contrário o gorducho não teria ficado olhando para ele, sem abrir a boca, durante um longo tempo.

O quê?, repetiu.

Um isqueiro, o visitante tornou a pedir agora de maneira bem menos assertiva, bem mais constrangida do que das vezes anteriores.

Ah, não. Não. Desculpa. Não tenho nenhum isqueiro comigo neste momento. Desculpa.

O gorducho trazia vários livros meio escondidos, envolvidos pelos brações. Todos eles muito molhados. Essa era provavelmente a razão da sua completa impaciência, do seu total desconforto.

Me diga uma coisa, o gorducho retrucou apontando para uma sombra regular do outro lado da rua, você não acha que deviam fazer alguma coisa com aqueles livros?

Agora foi a vez do visitante não entender a pergunta.

Como assim?

A chuva, compreende? Você não acha que deviam retirá-los da chuva?

Não sei… Parece que estão protegidos por uma capa de amianto. Não fica preocupado com a chuva.

Tem certeza? Creio que não há nenhuma capa cobrindo aqueles livros ali.

Há sim, meu senhor. Se o senhor olhar com atenção verá que a capa está lá, e muito bem fechada por sinal. Não se preocupa com isso.

Tem certeza? Não consigo ver a capa daqui.

Tenho.

Para o espanto do visitante, no apanhado de obras que estava apoiado na cintura do gorducho, a lombada do Atlas celeste e a do Dicionário de astronomia e astronáutica eram duas das mais salientes.

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Três vultos pequenos e agitados são vistos perambulando pelo terraço do velho hotel Coliseu.

Para as poucas testemunhas surpreendidas no local os três vultos pequenos e agitados que perambulam pelo terraço do velho hotel Coliseu parecem roedores grandes e focinhudos vestindo capa impermeável e cartola de cartolina.

Os detalhes ainda são confusos.

Para metade das testemunhas os três vultos são quatro.

Para a outra metade são dois.

Para metade das testemunhas o terraço em questão não é o do velho hotel Coliseu, mas o do prédio da prefeitura.

Para a outra metade é o terraço do condomínio Petrusca.

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Posso ver?

O gorducho recuou diante desse gesto brusco e inesperado.

Recuou tão abruptamente que os livros quase foram ao chão. Para mantê-los firmes ele foi obrigado a enfiar parte das costas na chuva e seus sapatos patinaram devido à rapidez do movimento.

O grupo de pessoas sofreu um pequeno abalo quando o gorducho tentou voltar para baixo da proteção. Houve um empurra-empurra rápido até que todos se acomodaram mais uma vez.

O vento veio mais uma vez e levou o cigarro para longe.

O visitante sentia um insuportável fastio com tudo isso.

Pela primeira vez desde que chegara ele formulou mentalmente, deixando que ocupasse todo o espaço vazio do seu cérebro, a palavra merda, sim, apenas isso, supermerda, pura e simplesmente, como se pretendesse com essa única palavra sintetizar de maneira integral e inequívoca sua atual condição.

Merda.

Mas absteve-se de pronunciá-la.

O gorducho estava retraído, atrás dos demais, prensado contra a parede.

Tivera que lutar muito para conseguir furar a massa grosseira e intratável de gente fria, dura, irascível. Mas agora estava numa posição realmente confortável, encostado na parede, bem longe do vento, da enxurrada, dos jatos de água suja lançados de quando em quando pelas bicicletas que passavam em alta velocidade.

O visitante ficou durante algum tempo se perguntando se devia ou não tentar ir ao encontro do gorducho.

É melhor não, concluiu.

Diante de seus olhos parecia existir uma seqüência muito grande de finíssimos véus sobrepostos formando uma parede acinzentada e intransponível.

Vindos de trás dessa parede ele ouvia gritos debochados e gargalhadas contínuas.

Mesmo sabendo de todos os perigos a que estavam sujeitas, dezenas de pessoas se aventuravam a sair na chuva.

Uma moça extremamente bonita, de corpo fino e traços clássicos, cabelo curto, olhos grandes e tímidos, deixou o grupo e saltou para a rua abrindo na seqüência de véus um rasgo pequeno, com o formato da sua silhueta.

Saltou para a rua e desapareceu.

Outras pessoas cansadas de esperar fizeram o mesmo.

O visitante não foi uma delas.

Estava exausto, é certo, mas não se sentia nem um pouco disposto a enfrentar o aguaceiro.

Também não queria se separar dos livros.

Não pretendia voltar a dirigir a palavra ao gorducho. De jeito nenhum. Porém não queria se separar dos livros. Não, mesmo. Queria permanecer próximo deles o máximo possível.

A chuva havia se transformado, por mais incrível que isso pudesse parecer, num bom álibi.

Sob a marquise, agora com espaço de sobra para quem quisesse ficar aí, o visitante sentia como se estivesse no coração de uma floresta tropical. Sentia-se protegido da chuva por um intrincado cipoal ou por um emaranhado de copas de árvore, ou na pior das hipóteses por uma insignificante bananeira. Ou coisa parecida.

Seus pés estavam gelados e adormecidos. Podia sentir a meia molhada entrando no interstício dos dedos, se fundindo neles.

O som dos pingos ricocheteando na calçada e na rua, nesse momento convertida em rio, era o mesmo de um exército de gigantescas formigas marchando.

Parou para escutar esse som.

Tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic tic.

Acordou do devaneio com o nariz do gorducho quase colado ao seu.

Desculpa a insistência, disse o gorducho apontando mais uma vez para a sombra regular do outro lado da rua, você acha mesmo que estão seguros?

O visitante, meio grogue meio distante, demorou para responder. Porém fez isso com o tom mais cordial que conseguiu imprimir à sua voz:

Oh, sim. Não se preocupe.

Você não acha que deviam retirá-los da chuva?

Eles estão muito bem protegidos. Não se preocupe com a chuva.

Tem certeza? Não sei, compreende? Creio que não há nenhuma capa cobrindo aqueles ali.

Há, sim. Olha com atenção. Vê aquela linha mais clara no canto direito, descendo até o chão? É um zíper. A capa está lá, e muito bem fechada. Não se preocupa com isso.

Tem certeza?

Absoluta.

O Atlas e o Dicionário estavam agora tão perto que se o visitante aspirasse o ar com um pouco mais de força poderia sentir o cheiro do pó e do mofo acumulados neles durante anos.

O gorducho se rendeu ao interesse do estranho.

Quer ver?

Se o senhor me permitir.

O visitante pôs a maleta no chão, entre as pernas, e segurou os livros como se estivesse recebendo um recém-nascido.

Vejo que você também gosta de livros.

Sim. Um pouco, sim.

O Dicionário possuía pouquíssimas ilustrações e quase nenhuma foto. Seu formato era vertical e sua capa, dura. A lombada, bastante grossa, apresentava indícios de ter sido manuseada muitas e muitas vezes.

Eu também gosto muito de livros. Ah, muito. Posso dizer sem nenhum remorso que desde o dia em que minha esposa faleceu eles se tornaram a minha única razão de viver.

Sei.

O Atlas, por outro lado, era maravilhoso. Sua capa era impressa em mais de quatro cores, com título em relevo e verniz especial.

Nela apareciam, justapostas, duas grandes vistas da Via Láctea, uma de topo e outra de perfil, ao lado de vários mapas panorâmicos infravermelhos do centro da nossa galáxia, tendo ao fundo algumas galáxias vizinhas.

O visitante soltou um gritinho de prazer.

O mapa do hemisfério norte e o do hemisfério sul, apresentados em grandes pranchas dobradas de quase um metro por dois, de fato um pouco amarelecidas, porém guardando ainda a beleza das coisas efêmeras concebidas para a eternidade, eram todos cuidadosamente trabalhados, tendo cada constelação, cada estrela, cada paralelo ou meridiano especificados com clareza e riqueza de detalhes raramente encontradas em livros desse tipo.

Enquanto se deliciava com a qualidade gráfica das tabelas e das ilustrações, ouvia, sem prestar muita atenção, os murmúrios do gorducho, que por sua vez se comprazia com o brilho de encantamento no rosto do visitante.

Existe um livro, ou melhor, existiu, ah sim, é melhor eu usar o passado quando me referir a ele, sim, um livro, eu o li certa vez, um livro pequeno no formato e na quantidade de páginas, sim, mas grande, muito grande quando posto ao lado de uma série de outros tantos livros com o triplo do seu tamanho e da sua espessura.

Meu Santo Ambrósio, do que é que esse sujeito está falando?, se perguntava o visitante virando com muito cuidado cada página, temendo que se dissolvessem ao toque dos seus dedos.

Um livro delicioso. Eu o tive nas minhas mãos, acredite se quiser. Um livro que, entre outras coisas, contava de maneira rápida, insólita e sarcástica todas as histórias possíveis de ser contadas. Pode acreditar numa coisa dessas?

O quê?

Um livro delicioso, ah, delicioso. Pena que não tenha sido reeditado.

Onde foi que o senhor o encontrou?

Hum, foi há muito tempo em Paris. É, durante um de meus passeios pelos arredores da cidade.

Compreendo. Só não consigo acreditar que o governo francês tenha permitido que o senhor o trouxesse para o Brasil.

Oh, não. De fato eu não o trouxe. Ah, mas você está se referindo ao Atlas!? Não, não, eu estava falando de outro livro. O Atlas eu encontrei por acidente, próximo ao prédio onde trabalho. É verdade, foi por puro acidente. O título do outro livro, é, da pequena obra-prima, era Histórias de insanos e sereias. Era isso. Você já deve ter ouvido falar nele. Histórias de insanos e sereias. Não?

Próximos capítulos

Rodrigo e Renata, no momento em que começam a fazer planos para mudar de cidade, são capturados e levados no meio da noite. A razão do seqüestro? Estavam no lugar errado na hora errada. Em toda a cidade, além do casal dezenas de outras pessoas desaparecem misteriosamente. O caminho dos roedores focinhudos e dos livros clandestinos finalmente cruza com o do bibliotecário, de Estela e do visitante, sem que isso seja bom para nenhum dos envolvidos.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho