Grande literatura para pequenos e grandes

A evolução dos livros infanto-juvenis e a convivência entre texto e ilustração
01/06/2007

Todo menino, em algum momento de sua vida, sonhou ser Picasso. Nenhum menino sonhou ser Machado de Assis.

A infância conhece bem a força de uma imagem, e aposta tudo nela. Mais tarde, quando crescemos, ficamos surpresos em ver que as laranjas já não são tão douradas como antes, as águas se tornaram menos azuis. Lodosas agora, marrons ou cinzas, justificam-se, segundo dizem, pela atual poluição. Mas não é só isso. Nossos olhos, menos impressionados, emprestam ao tom da água uma opacidade que quando criança não enxergávamos.

Hoje, já adultos, dividindo os sentidos entre os reinos da imagem e da palavra, tudo fica um pouco diluído, e nada brilha, não reverbera, não explode, não nos causa o impacto de um sopro no coração, de um cisco no olho. Nossa mente ocupa-se demasiadamente fazendo as contas entre o que é dito e o que é desenhado. E o que, afinal, resta dito e desenhado não depende mais só do desenho e só da informação verbal.

Mas isso agora, hoje, já adultos. E antes, como é que era mesmo antes?

Antes eu tinha seis anos e morava entre Livramento, no Brasil, e Rivera, no Uruguai. Em Livramento havia a casa dos meus pais. Em Rivera, a de minha avó materna, Lela, na frente de um cemitério abandonado.

O cenário era propício: restos de tumbas. Algum osso, de repente, apontando em meio à areia. A lua branca no céu escuro sobre o campo santo, campo, aliás, não mais santo, abandonado. Eu e meus amigos nos sentávamos no que restara do portão de entrada do cemitério e ficávamos contando histórias, uma mais aterrorizante que a outra.

Lembro de um dia em que minha avó, particularmente impressionável, vinha passando e viu um osso comprido. Pegou-o temerosa mas sem resistir à curiosidade. Mediu sua canela e viu que o tamanho era o mesmo. Jogou rápido o osso por cima dos muros roídos do cemitério. Naquela noite, e durante um mês, ela sonharia que uma mulher vestida de preto vinha mancando e gemendo: “devolve minha canela, devolve minha canela!”

A voz era lúgubre, dizia minha avó (e eu, que hoje rio, ficava de olho estalado). Havia um açougue ali perto, e os cachorros do bairro roubavam os ossos e os espalhavam nas ruas. A gente nunca sabia se a origem do osso era prosaica ou poética, natural ou sobrenatural.

A verdade é que em meio a essas categorias (o horror/o humor, o mundo visível/o mundo invisível), eu me perguntava que linguagem seria capaz de reproduzir tal ambiente com fidelidade. Na verdade esta pergunta eu me fiz bem mais tarde, mas naquele tempo, embora a infância me ocupasse com sua permanente distração, certamente a semente dessa perguntava já germinava.

Desenhar uma caveira não era difícil. Rudinei, meu melhor amigo, fazia isso. Era um futuro bom desenhista. Eu preferia recontar histórias que Gilberto, meu avô paterno, havia contado. Rudinei sentia-se em desvantagem diante da minha capacidade de improviso verbal. Eu, por mais que falasse e falasse e falasse, me sentia mudo diante de alguns traços que ele fazia com o lápis de cera numa cartolina. O desenho parecia tão mais imponente, tão mais ritualístico, tão mais real.

Era apenas aparentemente mais visível. Eu não havia me apercebido ainda que os olhos são analfabetos, que gravam a imagem sem saber nada sobre ela. E se nada sabem, de que adianta ver o que vêem? Os olhos precisavam de tradução, de legendas, de um apoio. Como um desenho solitário parecia uma cripta, uma gárgula, um monstro estacado no meio do cemitério na madrugada dos meus pesadelos. Como um texto sem desenho parecia a terra seca, árida, onde nada brotava. Um podia alimentar o outro, eu ia descobrindo, a cada livro que lia.

As palavras também podiam desenhar, eu saberia mais tarde, mas bem mais tarde. Assim como as imagens (um cartum, por exemplo) podem constituir-se num comentário político, assim como um desenho de Gustave Doré pode constituir-se num poema, num conto.

Vivem isolados, e bem. E podem igualmente compartilhar um mesmo tema. Naturalmente com impressões particulares, diferenciadas.

A imagem é sempre a resposta mais eficiente. Menino que é menino tem pressa. Não usa relógio mas tem pressa. Não porque obedeça a prazos, mas porque se sente permanentemente empurrado pela curiosidade e pela fome do olho e das mãos e das pernas. Menino é um atleta do conhecimento. Se esse conhecimento é revestido de prazer, de alegria.

Com poucos anos decidi ser escritor. Primeiro, porque não sabia desenhar, e minha escolha nascia de uma derrota. Mas essa impressão era ilusória.

À medida que eu ia escrevendo as histórias, elas iam se fazendo, portanto nasciam e se tornavam o que viriam a se tornar muito depois de eu começar a escrevê-las. Só quando punha o ponto final. Agora sim, a história existia, estava ali, era possível ver. E era essa invisibilidade da palavra que aturdia nossos olhos. Como podíamos julgar o que tínhamos que ler, e reler, e pensar sobre. O desenho, na sua imediata materialidade, capaz de uma apreensão mais rápida que a do texto (no processo mecânico de visualização, nada mais que isso) nos prometia uma vida mais fácil.

Cresci debaixo dessa sombra, dessa falsa disputa. Uma imagem: mil palavras; uma palavra: nem um mísero risquinho? Quando via as obras de literatura infanto-juvenil, buscava compreender, com muito esforço.

Livro com belas ilustrações e péssimo texto: aí eu sentia a força da imagem e o desprezo pela palavra. Se o desenho era tão maravilhoso e eles puseram uma porcaria de texto, é porque ninguém estava mesmo dando muita bola pro texto.

Livro com bom texto e péssimas ilustrações: aí eu TAMBÉM sentia a força da imagem e o desprezo pela palavra. Um texto tão bom… e aqueles desenhos! Só podia ser porque ilustração era imprescindível, TINHA que ter imagem e pronto, não importando sua qualidade.

Conclusão: até ali me parecia que imagem e texto brigavam, um anulava o outro.

A perfeição
Aí, caras como o Ziraldo, por exemplo, foram apaziguando essa guerra a que secretamente eu assistia. Grande desenhista, grande texto. Era a perfeição. Tudo o que eu sonhara. O Ângela Lago, ilustração se fazendo texto, exigindo uma leitura para além de olhos afoitos em busca de apenas uma figura colorida, bonita.

Era o resultado de todo um processo, longo, ao qual Monteiro Lobato dera um senhor empurrão. A literatura dos contos de fada viera pouco a pouco dando voz a temas que incorporavam, com o avançar das épocas, problematizações infantis para além das emoções mais elementares do medo e fascínio faceiro. Junto com essa perspectiva ficcional, digamos, menos inocente, o texto, até então pouco mais do que esquemático, conheceu um adensamento, admitiu brechas na narração, passou a conviver sem complexos com a ausência de uma linearidade até então inevitável, porém agora sem justificativas.

Atualmente, são até comuns os livros infanto-juvenis que encaram frente a frente a morte, a violência, o sexo, as drogas, a excepcionalidade, a separação dos pais, a filosofia. Aquele tipo de literatura feita para crianças, que apostava tão-somente na essencialidade da aventura, de mãos dadas com uma linguagem que não podia correr riscos, que não ousava, sobrevive hoje praticamente apenas nesses livros-jogo, em que se admite a história comportada só para a convivência da estrutura movimentada do livro. Você decide qual o destino da Princesa, escolhe o inimigo que o Príncipe enfrentará, opta por qual castigo para o malfeitor.

Felizmente, os livros são inesgotáveis, ainda mais para esse público, ávido por novidades. Um exemplo: O menino quadradinho, de Ziraldo, obra não tão badalada quanto O menino maluquinho.

No princípio do livro são quadradinhos, primeiro brancos, depois coloridos, com belos desenhos, cada vez mais detalhados. A seguir os quadradinhos vão dando lugar às palavras, uma onomatopéia aqui, uma descoberta modestamente registrada por poucas sílabas ali, e logo um rio de frases começa a correr. O menino, que conhecia a imagem, não a palavra, começa a viajar pelo som e o sentido dos bichinhos vivos do dicionário. Descobre o dicionário. Multiplica a sua vida. Lê.

À medida que o texto do Ziraldo avança, o corpo das letras impressas no livro vai diminuindo. Quando o livro começa, temos letras enormes, típico tamanho de letra para criança ler. Quando o livro acaba o corpo da letra é 9, menor do que isso só para nota de rodapé. Aliás, é uma nota a última frase: comenta que o leitor deve estar estranhando, que deve estar achando que esse livro era para crianças só no início. Sim, que nem a vida.

Esse livro, que considero obra-prima absoluta, configura para mim um resultado que, afinal, apagava a labareda incômoda no meu coração dilacerado: texto ou desenho?

Primeiro: porque a solução de Ziraldo é rara, não é regra. E há outros nomes (muitos, além do de Ângela Lago!) que possuem essa mesma habilidade dupla. Segundo: porque essa experiência provava exatamente o contrário. O grafismo de Ziraldo, desenhando até com a mancha impressa na página (o texto, texto mesmo, servindo de ilustração), mostrava que o texto, texto mesmo, pode prescindir dessa possibilidade se a história for outra.

Era simples. Minhas preocupações eram outras. Eu estava mais para a filosofia do que para o desenho. Meu texto tinha caminhado, talvez sem que eu percebesse, para o terreno das perguntas, da mancha neutra, sem função gráfica.

Depois de tanta cabeçada, creio que o tempo se cansou de mim, e eu cresci. Irremediavelmente cresci. Vi na palavra o meu desenho. Assim como não é difícil vermos no desenho de alguém a sua palavra. E são só metáforas, que, na verdade, vão além de sua função.

Minha palavra era apenas a palavra, suporte verbal, cujo desenho era puro abstracionismo. Um rio de palavras, um mar, ou cemitério, talvez condenado ao abandono. Quanto mais palavra a minha palavra, mais poderia representar o que eu queria representar. Quanto mais desenho o desenho do desenhista, mais ele poderia representar o que desejava.

E nem era representação. Há muito tempo a mimese cedeu lugar a algo mais audacioso. A arte é um mundo à parte que não dispensa o mundo. E, às vezes, até dispensa. Mas, sendo um mundo à parte, seus elos eram menos evidentes do que eu suspeitava. E sua solidão, mais funcional — e fascinante.

Meu projeto estético era o seguinte: eu queria desenhar o mundo, e desenhar o mundo invisível, o mundo que o real desconhecia. Todo artista quer desenhar essa visão, visão que jamais se completa. Geralmente é uma tarefa que leva toda a nossa vida e sempre ainda falta um pouquinho, um retoque.

Talvez por isso eu tenha me tornado um escritor de vários gêneros. Querem poema? Eu faço. Crônica? Eu faço (esta, todo brasileiro faz). Conto? Escrevo, sim. Romance? Agora mesmo estou atolado num de quase 300 páginas. Literatura infantil? Sim, sim, sim. Juvenil? Claro, por que não? (As duas últimas, tema desta reflexão.) Crítica literária? Evidente: já publiquei, sei lá, algumas centenas de resenhas, artigos, ensaios.

Tanta fome se explica como?

Parece-me que a explicação é exatamente por eu ter, durante algum tempo, permanecido indeciso na fronteira rebelde entre o desenho e a palavra. Um cutucando o outro.

Na verdade, não se cutucam. Vivem bem, sozinhos. E podem, muito bem, viver juntos. O casamento dos dois, como todo casamento, exige atenção constante, cuidados extremos.

Quando eu tinha seis anos de idade e ficava na frente do cemitério, conversando até altas horas com meus amigos, naquela época eu já estava me tornando um filho legítimo desse casamento.

Não como criador, mas como leitor. Como criadores, podemos citar o Ziraldo, o André Neves, e, de outra forma, as duplas afinadíssimas como Eliardo e Mary França, ou as duplas que os editores tão bem improvisam, tendo à disposição ilustradores inacreditáveis e autores incansavelmente criativos. Como criador, só pude carregar o peso da palavra. Como leitor, ainda hoje busco o desenho no desenho, a palavra na palavra, que é como deve ser na leitura isolada dos elementos, num primeiro momento, mas também a palavra no desenho e o desenho na palavra. Que é, no fundo, a ambição maior dos dois (criadores e elementos).

Assim como cada homem é a humanidade inteira, um texto busca cumprir um papel que é apenas seu, mas, é só bobearem, e ele cumpre todos os papéis possíveis. A mesma coisa com a ilustração que, se deixarem, vale a história toda.

E é bom a gente deixar.

Paulo Bentancur

É escritor. Autor de A solidão do diabo, entre outros.

Rascunho