Como se constrói um personagem

Seguir o conselho de James Joyce — “memória, exílio e astúcia” — é um bom começo
Ilustração: Ramon Muniz
01/07/2007

Começa-se com um indivíduo e, antes que se dê conta disso, descobre-se que se criou um tipo; começa-se com um tipo e descobre-se que não se criou coisa nenhuma. E isto porque somos todos uns pássaros bizarros, mais estranhos ainda por trás de nossa aparência do que desejamos que alguém saiba, ou do que nós próprios sabemos. Quando ouço um homem proclamar-se “um tipo mediano, honesto, aberto”, fico com a certeza de que tem qualquer anormalidade concreta e talvez terrível, que resolveu esconder — e os seus protestos de que é mediano e honesto e aberto são a maneira de recordar a si próprio a sua conveniência.

O trecho acima é o começo de um conto. Título: O moço rico. Autor: Scott Fitzgerald. O que temos aí? Um narrador a confabular sobre a sua insegurança, ao situar-se na linha imaginária entre seres reais (personagens estranhos, por trás de seus rostos e vozes), e os de papel (máscaras ou representações dessas mesmas pessoas), que podem nada significar. Como se temesse ser devorado pela Esfinge que ainda vai criar, à imagem e semelhança de um amigo de longa data. Não deduzamos que ele se sente perdido na selva das palavras. Tem uma bala na agulha e a detonará no momento preciso — passamos a perceber isso quando nos revela o seu alvo: “Não há tipos, nem generalizações. Há um moço rico e esta é a história dele…”.

Pronto. O personagem já foi enunciado. Mas ainda vai demorar um pouco para sabermos o seu nome e qual é o seu conflito básico, o que, afinal, é a motivação de todo conto.

O narrador dessa história estaria diante do seguinte dilema: como transformar uma pessoa em personagem, sem fazer dela uma caricatura grotesca? Daí as suas auto-advertências, que acabam por levá-lo a um intento ambicioso. Desconstruir as falsas imagens que os pobres têm dos ricos e estes de si mesmos. “Quando pegamos um livro sobre os ricos, um instinto qualquer logo nos prepara para a irrealidade. Até os narradores mais inteligentes e neutros tornaram o mundo dos ricos tão irreal quanto o país das fadas.”

Ou seja: até ali, ao escreverem sobre os ricos, todos os escritores (norte-americanos, bem entendido) teriam obliterado um suporte essencial à construção de personagens: o da verossimilhança. E esse “ali” era a década de 1920, quando, na euforia do primeiro pós-guerra, os Estados Unidos se tornaram a nação mais rica do mundo.

Mas temos mais duas possibilidades de interpretação do preâmbulo do conto que ainda se vai contar.

Primeira: uma oficina do contista para si mesmo, enquanto aquece os dedos e a mente, preparando-se para pôr o seu personagem em ação. (Um contemporâneo de Fitzgerald, William Faulkner, dizia que, para ele, o barato de ser escritor era poder criar um animal de duas patas e pô-lo em movimento).

Segunda: um jogo de cena, no qual, antes de sermos apresentados ao personagem, ele, o narrador, pede permissão para nos introduzir a um universo que julga desconhecermos:

Deixem que eu lhes fale dos muito ricos. Eles são diferentes de nós — de mim e de vocês. Habituaram-se a possuir e usufruir desde muito cedo e isso os influencia, tornando-os brandos onde somos duros, e cínicos onde somos confiantes, num processo difícil de compreender, a não ser que se tenha nascido rico.

Atentemos para essa aliança estratégica narrador-leitor. O que se explica. Durante um bom tempo, Fitzgerald ganhou muito dinheiro escrevendo contos para revistas de grande circulação na classe média. Aqui o vemos a tentar seduzi-la, por meio do conceito que o seu narrador faz dos ricos.

Lá no fundo de seus corações se acham melhores do que nós, porque tivemos de descobrir sozinhos as compensações e os refúgios da vida. Mesmo quando penetram profundamente no nosso mundo, ou descem abaixo do nosso nível, continuam a pensar que são melhores do que nós. São diferentes.

E só então, já no final do primeiro capítulo da história que ainda não começou a contar, ele nomeia o seu personagem, revelando-nos, finalmente, a saída que encontrou para construí-lo:

A única maneira que tenho para descrever o jovem Anson Hunter é abordá-lo como se fosse um estranho e manter teimosamente o meu ponto de vista. Se por um momento aceitar o dele, estarei perdido — e nada terei a mostrar a não ser um filme absurdo.

Resumo da ópera: eis aí um caso exemplar de estratégia narrativa, para quem se interessa pelo processo criativo dos escritores, a começar pela angústia da primeira frase — ah, a tela em branco! O que estará a me dizer? Que estou de pote vazio? Que não tenho mais café no bule? Decifra-me ou te devoro? Até que numa bela manhã um santo baixe (ou será uma santa, chamada Inspiração?). Aquela para a qual o próprio Fitzgerald, durante um período de desoladora baixa criativa, que o fizera perder a sua esplêndida miragem, exclamava: “Volta, volta, oh, resplandecente!”

Deixem que eu lhes fale um pouco mais de Fitzgerald, o soberbo criador de tipos que se tornou o melhor e o pior protagonista de si mesmo, ora no papel de autor glorioso, ora no de personagem arruinado.

Quando a luz verde que iluminava o palco do seu orgiástico futuro se apagou, ele desceu às trevas de um inferno íntimo, para declamar, com a autoridade que o fracasso lhe conferia: “Na noite escura da alma são sempre três horas da manhã”. Enquanto isso, um outro personagem subia ao paraíso. Chamava-se Ernest Hemingway. Lá de cima, com a autoridade do sucesso, ele contemplou a decadência daquele que havia sido um dos seus pares mais constantes. E sentenciou:

Seu talento era tão espontâneo como o desenho que o pó faz nas asas de uma borboleta. Houve uma época em que ele tinha tanta consciência disso quanto a borboleta, não ligando para o fato de que seu talento podia apagar-se ou desaparecer de todo. Mais tarde começou a preocupar-se com as asas feridas e sua estrutura; aprendeu a refletir, mas já não conseguia voar porque o amor ao vôo o abandonara. Restava-lhe apenas a lembrança dos dias em que voar fora um ato natural.

A ironia dessa história: ele também, o personagem chamado Ernest Hemingway, acabou vendo a sua musa inspiradora bater asas, qual uma borboleta. E todos sabemos no que isso deu. Hemingway pegou uma espingarda, não para sair à caça da sua inspiração fugidia, na esperança de trazê-la de volta. Simplesmente enfiou o cano da arma na boca. E apertou o gatilho. Portanto, há que se ter cuidado com qualquer atormentado pela página em branco. E ainda mais se ele estiver com a barba por fazer.

Mas se ela, a santa Inspiração, voltar, o escritor poderá pegar o fio da meada perdido, e enfiá-lo pelo fundo da agulha. E daí, entre a euforia e a ansiedade, tentará de novo costurar um personagem, que com sorte adquirirá pernas para andar por conta própria, movido pela dialética do discurso ficcional. Se ele, o personagem, chegar a tanto, tudo que o autor tem de fazer é não atrapalhá-lo, pondo pedras no seu caminho.

Epílogo do resumo: o personagem chamado Anson Hunter, de O moço rico, deu a Francis Scott Key Fitzgerald um conto memorável, até hoje incluído nas antologias de suas melhores histórias curtas, ou, se preferem, short stories. Uma delas, organizada, traduzida e prefaciada por Ruy Castro, foi publicada no Brasil recentemente, pela Companhia das Letras. O menino rico está na página 126. E esse “menino rico” é apenas um entre os muitos tipos fascinantes criados por Fitzgerald. O mais inesquecível deles é Jay Gatsby, o protagonista de O grande Gatsby, que já teve três adaptações cinematográficas. Na virada dos mil e novecentos para os dois mil, fizeram uma eleição, no mundo de língua inglesa, para a escolha dos melhores romances do século 20. O grande Gatsby foi o segundo mais votado, ficando abaixo apenas do Ulisses, de James Joyce, consensualmente tido e havido como a obra mais inovadora de todos os tempos. Era agora que o velho Scott poderia morrer dando umas boas risadas.

Laureado autor da Era do Jazz, que lhe deu fama, grana, e lhe ensinou a conjugar o verbo dissipar em todos os tempos e modos, no eixo Nova York–Paris–Riviera francesa (cenário de seu melancolicamente belo Suave é a noite), Fitzgerald morreu cedo, aos 44 anos, exilado em Hollywood, onde trabalhou em roteiros como o de E o vento levou, para poder pagar as contas do hospício onde sua mulher, Zelda, estava internada. Deixou um romance inacabado, O último magnata, levado às telas em tempos relativamente recentes, com Robert De Niro no papel principal, e numa atuação contida, densa, que certamente Fitzgerald aplaudiria, podendo até sentir-se um pouco compensado pelos massacres hollywoodianos às suas histórias, como no filme A última vez que vi Paris, adaptado de Babilônia revisitada — que também está na antologia organizada por Ruy Castro —, um conto de trágica beleza, que o artificialismo de Hollywood deturpou, a ponto de torná-lo irreconhecível.

Scott Fitzgerald não era brilhante apenas na construção de cenários, tipos, estratégias narrativas, ritmo e cadência do texto, elegância de linguagem e estilo, que cativam logo de cara: “Jim Powell era um boa-vida. Por mais que eu deseje convertê-lo num personagem sedutor, sinto que seria falta de escrúpulo de minha parte enganar o leitor quanto a esse ponto. Era um boa-vida até os ossos, um boa-vida indiscutível, noventa e nove e três quartos por cento boa-vida…” — e por aí ele ia, sedutoramente. Também era capaz de, numa única frase, por vezes aparentemente banal, tocar no ponto mais vulnerável de uma heroína. Um exemplo: “Ela era ainda uma bela mulher de trinta anos”. Outro: “Ela falava com a voz cheia de dinheiro”. Precisa dizer mais?

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Mas sim. De onde vem esse ser chamado de a ou de o personagem?

Se ao abrirmos ao acaso qualquer dicionário brasileiro da língua portuguesa, e formos à letra P atrás dela (ou dele), encontraremos, em primeiro lugar, duas outras letras: F e S, de feminino e singular. A seguir, saberemos que a palavra deriva do francês personne (pessoa, indivíduo) acrescida do sufixo age, que, sabemos todos, é masculina. Até aí morreu Neves, um personagem popular.

Na sua primeira acepção, personagem significa “pessoa notável, eminente, importante; personalidade”. E também “pessoa”, sem qualquer qualificativo, quer dizer, alguém igual a mim e à maioria dos mortais. Depois vêm as outras definições: “Papel representado por um ator ou atriz, a partir de figura humana fictícia criada por um autor… Personagem literário em que um autor se encarna etc., etc”. Vendo que todas as acepções, de todos os dicionários, dão mais ou menos no mesmo, busquei Persona. Abri um, e nada. Recorri à Grande Enciclopédia Larousse e a Persona também não estava lá. Mas alguém sempre me socorre no mundo das palavras. E desta vez tinha de ser ele, o meu querido e finado amigo Antônio Houaiss. Eis aí: Persona/ persõna/ [lat.], s.f (sXX). 1. PSIC — Na teoria de C.G. Jung, personalidade que o indivíduo apresenta aos outros como real, mas que, na verdade, é uma variante às vezes muito diferente da verdadeira.

O item número 2 é rebarbativo: “Personagem literário”, etc. O terceiro também repete muito do que foi dito sobre “Personagem”. No final, volta a referir-se à teoria psicanalítica de Carl Gustav Jung (1875-1961, psiquiatra suíço), o vocábulo foi usado originalmente do alemão, emprestado do latim. E só.

Somados todos os verbetes, o reducionismo da teoria de Jung deixa a impressão de que ele choveu no molhado. Mas é preciso levar em conta — digo-me —, que um dicionário geral da língua não tem o objetivo de contribuir para a resolução de dúvidas muito especializadas.

Agora vem a pergunta: por que masculinizei a palavra (o personagem), se ela é feminina? Na verdade, faço tal uso quando o dito cujo é masculino. Ou, vai ver, é porque, primeiro, ele era o herói. Na antiga Grécia era épico. Um arquétipo, um modelo, como Ulisses e Aquiles. Ou trágico como Édipo Rei. Esse herói clássico estava acima dos homens comuns, por ser nobre de sangue azul, mas sujeito às vicissitudes humanas, das quais o calcanhar de Aquiles serve de exemplo. Os épicos geraram o romance. Os trágicos, o teatro.

A partir do Renascimento, entra em cena o herói moderno, no papel do homem-comum, cuja nobreza está no seu caráter, nas suas ações, na sua própria condição. No entanto, o que vai se consagrar na modernidade é a figura do anti-herói, que é patético. Leiamos a sinopse do primeiro deles, que se celebrizou como o verdadeiro fundador da literatura moderna:

Um fidalgo provinciano que passava o tempo todo a ler romances de cavalaria, acabou por se identificar com os heróis de suas histórias preferidas. Um dia, vestiu uma velha armadura, armou-se de espada e lança, e partiu para uma louca aventura. Ao encontrar um bando de tropeiros de bestas, parou para conversar com eles. E tentou persuadi-los de que ali pelos arredores havia uma camponesa chamada Dulcinéia, que era a mulher mais bonita do mundo e a senhora dos seus sonhos. Os tropeiros deram-lhe uma surra e o levaram de volta para casa, onde o padre do lugar, ajudado por um barbeiro, queimou solenemente todos os seus livros. Sua loucura, porém, era incurável. Ele voltou a montar em seu cavalo, o Rocinante, e partiu de novo para as suas proezas, desta vez na companhia de um fiel escudeiro, chamado Sancho Pança, que tudo faria para remediar as conseqüências dos desatinos que a desvairada imaginação do amo acarretavam. Vencido em combate, foi forçado, por juramento, a abandonar a sua aventura, quando, então, percebeu a fatuidade da sua quimera e morreu, deixando a Sancho Pança a realidade de uma existência desprovida de heroísmo e fantasia.

A primeira parte de Dom Quixote foi publicada em 1605. A segunda, em 1615. E com ele, Cervantes pôs em xeque todas as ilusões e princípios estéticos da literatura anterior à sua. O tempo agora era outro. A Espanha deixara de ser um conquistador do mundo para tornar-se o país da burocracia. Todo o seu heroísmo havia se degradado.

Dom Miguel de Cervantes Saavedra fez mais: expandiu as fronteiras do romance, tornando-o um espaço entre a ficção e a biografia, e um território entre o real e a imaginação, sendo tudo isso ao mesmo tempo e nada disso, levando o leitor ao terreno da dúvida. O engenhoso fidalgo da Mancha viria a fazer o mais patético dos empedernidos rir-se de si mesmo. E a partir dele o romance passou a ser um desestabilizador das certezas humanas. Não menos importante: Cervantes inaugurou a figura triangular (herói-mediador-objeto do desejo), e com isso compôs a estrutura profunda do romance ocidental.

O gênero iria crescer na Inglaterra do século 18, com a revolução industrial, quando o campo marcha para a cidade e Londres se torna a maior capital do mundo, enche-se de bordéis, cria o cartão de ponto e o comportamento padronizado da vida operária. (Logo, logo, Charles Dickens nos dará conta disso).

É no século 19 que o romance chega ao seu apogeu, pelo conjunto da obra de um elenco de gigantes. É o tempo de Tolstoi e Dostoievski, Eça de Queirós e Machado de Assis, Gustave (Madame Bovary sou eu) Flaubert, Sthendal e Balzac, o que dizia: “É preciso desfolhar toda a vida social para ser um verdadeiro romancista. Porque o romance é a história secreta das nações”.

No século 20, um irlandês pede a palavra. Ora muito bem, estava tudo muito bom, mas chegara o momento de dar uma sacolejada nessas histórias com começo, meio e fim. Afinal, a mente humana não funciona de forma tão linear, mas por fluxos de consciência. O mundo já estava em plena era da psicanálise, que tanto se valeu da literatura. Pois agora a literatura iria se valer da psicanálise. Ao tempo cronológico interpõem-se o psicológico e os monólogos interiores. E esse tempo não era mais o do grego Odysseus, o homérico Ulisses, rei de Ítaca, e sim o de um outro Ulisses, representado pelo anônimo corretor Leopold Bloom, que não tinha nenhuma Tróia para conquistar, epicamente, montado num cavalo de pau. A aventura desse outro Ulisses resumia-se a gastar as solas dos sapatos, perambulando pela cidade de Dublin, por todo o dia 16 de junho de 1904, cruzando pelo caminho com a mulher, Molly, e um jovem chamado Stephen Dedalus.

Paródia da Odisséia, o Ulisses de Joyce quebra a estrutura do romance tradicional, e, ao combinar características de lenda, reportagem, farsa, drama, sinfonia, tratado escolástico, referências simbólicas emprestadas da mitologia, da história e da literatura, faz da experimentação de linguagem, invenção de palavras e inovações estilísticas a sua grande novidade. Foi um escândalo. Pelo menos no Reino Unido e nos Estados Unidos, que o proibiram, por considerá-lo obsceno. Aí começou a guerra sem lança, armadura e cavalo de pau de James Joyce para conseguir publicá-lo nos países que falavam a sua língua, mas não queriam rezar pelo seu catecismo, vanguardista demais. Nessa sua odisséia, de nada adiantaria ele gritar para os censores: “Ulisses sou eu!”, pois o tempo dos heróicos gregos já havia passado e ele agora era apenas um transeunte em Paris, dependendo de favores de alguns de seus pares que combatiam à sombra na livraria de Sylvia Beach — uma americana na Rive Gauche —, e em cafés como o Deux Magots e o Closerie des Lilás, de onde, no entanto, despachavam manifestos pela liberação do Ulisses.

(Parêntesis para uma lembrança: uma vez o escritor Antônio Callado — aquele lorde que tanta falta me faz —, disse o seguinte: “A cultura do século vinte tem as marcas de três nomes: Marx, Freud e James Joyce. Ninguém precisa ter lido Marx para ser marxista, Freud, para ser freudiano, e Joyce, para ser joyciano. Porque as contribuições deles estão impregnadas no ar que respiramos”. Bem, Karl Marx entrou aí porque estávamos no tempo das utopias. Quem sabe hoje, teríamos de trocá-lo por Bill Gates, Freud, por um autor qualquer de auto-ajuda, e Joyce por Dan Brown?).

O século 20 foi também o de Marcel Proust, Virgínia Woolf — que a crítica situa entre Joyce e Proust —, Franz Kafka, Thomas Mann, Italo Calvino. E da tropa de choque norte-americana, comandada por William Faulkner, John Dos Passos, Scott Fitzgerald e Ernest Hemingway, este, imbatível na arte de construir diálogos.

Modernistas brasileiros
No Brasil, os modernistas de 22 propugnavam por um rompimento com a norma lusitana, e que viéssemos a escrever de acordo com a nossa fala, levando em conta as suas incorreções. O ícone desse ideário foi um herói sem nenhum caráter, o Macunaíma, de Mário de Andrade.

Mas foram os romancistas de 30 — Rachel de Queiroz, Jorge Amado, Graciliano Ramos e José Lins do Rego —, que o realizaram, com muito poder de fogo. Hoje, ainda são bem nítidos os traços mais fortes dessa geração. Os de Rachel: o depoimento vigoroso e solidário, contra um quadro social deplorável. Jorge Amado: sua extraordinária capacidade de criar personagens, de contar histórias; a linguagem desabusada; o lirismo; a simpatia pelos pobres em geral, as prostitutas, os vagabundos, e pelo mundo afro-baiano. Zé Lins: a fabulação. Graciliano: o estilo.

E se o Nordeste tinha isso tudo, o Sul teve Erico Verissimo e Dyonélio Machado, o do clássico Os ratos. Eram os centauros dos pampas. Quanto ao Rio, já havia tido Machado de Assis e Lima Barreto, que dobraram de um século para outro e iriam atravessar os tempos. Precisava mais?

Vale lembrar a sintonia do nosso ciclo de 30 com o dos Estados Unidos. Sem dúvida alguma, há similitudes — pelas denúncias que apresentam —, entre Vidas secas e As vinhas da ira, de John Steinbeck. Eskine Caldwell, o de Estrada do tabaco, foi outro norte-americano bem próximo dos nossos nordestinos.

Então veio o segundo pós-guerra. A Itália ressurge das cinzas com o neo-realismo. Alguns destaques: Elio Vitorini, Vasco Pratolini, Cesare Pavese. Da literatura deles, nasce um cinema que arrebata o mundo, pela sua contundência e humanidade. Quem viu Ladrões de bicicleta, ou Humberto D, já associou as idéias. E que dizer de Roma, cidade aberta, de Rossellini? Este influenciou até o nosso Glauber Rocha. O romancista atrás da câmara: Frederico Fellini. O poeta: Pasolini. Portugal se deixa influenciar pelo neo-realismo italiano, com rescaldos dos romances brasileiros de 30, sobretudo em Alves Redol, o de Barranco de cegos, e nos primeiros momentos de José Cardoso Pires, por quem este leitor aqui sempre teve uma infinita admiração.

França: existencialismo. Sartre, Simone, Camus. À mesa, com seu trompete sobre ela, Boris Vian, um músico da noite, compositor e escritor, amigo de monsieur Jean-Paul e madame Beauvoir. Morreu aos 38 anos, deixando uma obra-prima: o romance A espuma dos dias, de toques surrealistas. O surrealismo, claro, faz parte dessa história, com Breton e Aragon. Na contra-cena, o nouveau roman, propondo uma estética do distanciamento, o que significava trocar o enredo e a psicologia dos personagens pelas descrições minuciosas de ambientes. Seu principal teórico foi o romancista Alain Robbe-Grillet, que ainda deve ser lembrado pelo roteiro de O ano passado em Marienbad, filme dirigido por Alain Resnais. Tendo um pé nesse movimento e outro fora dele, Marguerite Duras, com Boris Vian e Albert Camus (que na verdade era argelino) vieram a salvar o romance francês da inanição, naquele período.

Inglaterra: tempo dos Young angry men. O mais “zangado” deles se chamava Colin Wilson, o autor de The outsider. Desse movimento saiu um grande dramaturgo: John Osborne. Ele estourou com uma peça, que virou filme: Look back in anger. Literalmente, Olhe para trás com rancor. Mas quem ficou acima de todos foi lady Doris Lessing, a autora de A erva canta, O carnê dourado, etc.

Estados Unidos: o maior romance de guerra (em volume e repercussão) é algo joyciano e se chama Os nus e os mortos. Autor: Norman Mailer. Ele tinha 25 anos então e já estreou como um peso-pesado das letras norte-americanas. Tornou-se prolífico. Sua obra é vastíssima. Escreveu — e ainda escreve, mesmo passado dos 80 — sobre quase tudo. Publicou livros sobre Marilyn Monroe, Cassius Clay, as convenções republicanas e democratas, o Vietnã, um volume de cartas ao presidente (que era o Kennedy, para o qual fazia até uma defesa de Fidel Castro), sobre Jesus Cristo (um ótimo romance, por sinal, chamado O filho do homem). Brigou muito pelos direitos civis. Virou uma figura pública, no melhor sentido: aquele que intervém em praticamente todas as questões do seu tempo. É dele este petardo: “Para os Estados Unidos da América, a paz é apenas um intervalo entre duas guerras”. O horror, o horror, diria Marlon Brando, repetindo, em Apocalypse Now, o final de Joseph Conrad em O coração nas trevas, que Francis Ford Coppola transpôs para a guerra no Camboja.

Além de Os nus e os mortos, de Norman Mailer, um outro romance de guerra causou estrondo. O Catch 22, de Joseph Heller, que os da minha idade, se não o leram, devem tê-lo visto no cinema, com o título de Ardil 22.

Essa geração norte-americana é tão poderosa, literariamente falando, quanto a anterior. Recordemos alguns nomes: Truman Capote, Gore Vidal, Carson McCullers, Saul Bellow, William Styron — lembram de A escolha de Sofia? —, James Baldwin, o que sentia na pele uma dupla discriminação, por ser negro e homossexual. E bradava: “Da próxima vez, fogo!”, prevendo um final apocalíptico para os conflitos raciais estadunidenses.

Enquanto isso, a Beat Generation, com Jack Kerouac à frente, botava o pé na estrada, em ritmo de jazz, muita birita e marijuana, e ouvindo Allen Ginsberg recitar: “Eu vi as melhores cabeças da minha geração destruídas pela loucura, morrendo de fome, histéricos, nus, arrastando-se pelas ruas do bairro negro de madrugada em busca de uma dose violenta de qualquer coisa…”, etc.

América hispânica: ninguém escrevia ao coronel, mas o coronel escreveu Cem anos de solidão. E a Colômbia, o Chile, o Peru, o Paraguai, o Uruguai, a Argentina, o México, Cuba, enfim, la pátria grande sonhada por José Marti entrou no mapa do mundo, no qual García Márquez, Borges, Cortázar, Ernesto Sabato, Vargas Llosa, Juan Rulfo, Juan Carlos Onetti, Cabrera Infante e etc se tornaram nomes familiares. Era o boom latino-americano. E nós aqui só tínhamos Jorge Amado para ombrear com esse batalhão, lá fora.

No Brasil: conheci rios, rios largos e profundos. E minha alma ficou profunda como os rios. O mais caudaloso de todos se chama João Guimarães Rosa, tão grande que nasce em Codisburgo, Minas Gerais, e deságua no Mississipi, onde William Faulkner fundou um território mítico e nele inscreveu a sua legenda. Os dois eram primos. E aparentados de James Joyce, mas, em relação a este, tinham a vantagem das vastidões continentais, dos espantos de um continente que, se já não era mais o Novo Mundo, mundo ainda novo era.

— Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de brigas de homem, não, Deus esteja.

Eis aí como Guimarães Rosa criava um personagem. Pondo-o a falar com ele. E, a partir da primeira frase, contar-lhe toda a história. Foi assim com o Grande sertão: veredas. Um monumento.

E que mistérios tem Clarice?

Os dos rios que correm para dentro de si mesmos.

E era nesses rios que ela mergulhava, até as profundezas de outras audazes mergulhadoras, chamadas Virginia Woolf e Katherine Mansfield.

Mas cá para nós: Clarice Lispector fez mal às moças. Refiro-me às que se deixaram levar pelas aparências de suas águas, achando que eram só um novo estilo de correnteza. Tirando isso de letra: caíram na armadilha da imitação da sua forma (talvez por culpa da Clarice mesmo. Depois de escrever A imitação da rosa, ela bem que podia ter feito um post-scriptum, advertindo que, ao se imitar uma flor, o máximo que se consegue é uma natureza morta). Porque chega a parecer que é fácil imitá-la, em suas inovações formais. O mesmo não se pode dizer quanto aos seus mistérios. Entendamos isso como conteúdo.

Quando Clarice chegou, cá já estava Lygia Fagundes Telles, confortavelmente assentada no seu trono de rainha paulistana das letras. Autora de um best-seller, o romance As meninas, é no conto, porém, que ela se torna ainda mais admirável, como podemos conferir em seus livros Antes do baile verde e A estrutura da bolha do sabão, entre outros. Empatados em idade, ou um aninho há mais para lá, três ou cinco para cá, estão no centro da sua geração os seguintes barões assinalados: Fernando Sabino, Autran Dourado, José J. Veiga, Antônio Callado, José Cândido de Carvalho, Rubem Fonseca, Dalton Trevisan, Murilo Rubião, Carlos Heitor Cony, os cirurgiões plásticos que fizeram as costuras finais nas extirpações, iniciadas pelo Modernismo de 22, às adiposidades da última flor do Lácio, ou seja, os barroquismos, a verborragia e o empolamento lingüístico, que herdamos dos colonizadores lusitanos.

Minha geração encontrou a estrada da modernidade asfaltada. Da Manaus de Márcio Souza à Porto Alegre de Moacyr Scliar e, um pouquinho depois dele, João Gilberto Noll. E todas as veredas levavam às Minas Gerais de Oswaldo França Júnior, Ivan Ângelo, Wander Pirolli, Roberto Drummond e Luiz Vilela. À Bahia de João Ubaldo Ribeiro, Marcos Santarrita e Sônia Coutinho. Ao Rio de Nélida Piñon, Sérgio Sant’Anna e do gaúcho-carioca Flávio Moreira da Costa. À São Paulo de Ignácio de Loyola Brandão, João Antônio, Raduan Nassar. Ao Paraná de Domingos Pellegrini Júnior e etc., etc., etc.

Agora, temos mais escritores por metro quadrado do que leitores. São tantos, que está difícil, senão impossível, saber quem é quem. Dentre os que consegui captar no meio da multidão, destaco o amazonense Milton Hatoum, o paranaense Miguel Sanches Neto, o mineiro Carlos Herculano Lopes, o paulista Marçal Aquino, o pernambucano Raimundo Carrero, os baianos Luís Pimentel (este, hoje carioquíssimo), Carlos Ribeiro, Aleilton Fonseca e Aramis Ribeiro Costa, a gaúcha Cíntia Moscovich, os cariocas Adriana Lisboa, Fernando Molica, Marcelo Moutinho, Sérgio Rodrigues, Antonio Carlos Tettamanzi e Altamir Tojal.

Mas, enfim, como se constrói um personagem? Seguindo o conselho de James Joyce: “Memória, exílio e astúcia”.

Antônio Torres
Rascunho