Escrever parece simples, muito simples. Afinal, basta colocar a folha em branco (mesmo que seja no computador, há uma tela em branco) à frente e começar a preenchê-la de letrinhas, palavras, frases, parágrafos, períodos, etc. Simples, basta saber escrever. E escrever é realmente simples. O difícil é escrever simples. Contar uma boa história sem delongas, sem detalhes inúteis, contar o que é necessário para o bom desenrolar da trama, conter-se para poder ir direto ao ponto, para que a história prenda o leitor e o cative.
E como já me alonguei demais nesta introdução, vamos direto ao ponto. Sinfonia dos animais noturnos, último trabalho de Lourenço Cazarré, é um ótimo livro. Simples como um bom livro deve ser, direto ao ponto, sem firulas. Uma boa história, uma história de gente de verdade (não que heróis e vilões sejam desnecessários, mas mesmo eles devem ser em algum ponto humanos, ambíguos, com sentimentos nada permanentes) em que as emoções são apenas um pouco mais exacerbadas do que em relação à vida real. Assim, podemos até nos identificar com alguns dos sentimentos altamente verdadeiros que os dois personagens da novela de Cazarré possuem e desfilam ao longo da trama.
A história parece simples. Dois anônimos, dois jovens estudantes na cidade de Pelotas, encontram-se em uma determinada noite da primavera de 1970. Por aquelas razões que só a juventude conhece, ambos acabam parando em um motel, o primeiro da cidade, para uma noite de sexo. Não se pode dizer que foi amor, pois o primeiro encontro de ambos mais pareceu um duelo de esgrimas. Duas feras enfrentando-se, dois universos distintos e paralelos que em uma daquelas distorções do universo se encontram para nunca mais se desencontrar de vez.
A história de ambos não prossegue, e só os reencontramos, ainda anônimos, no verão de 1979. Ele está para se casar no dia seguinte. Ela vem para mostrar a filha bebê para os pais, já que agora ela mora na capital. O reencontro parece novamente um encontro de feras, mas animais já um pouco menos selvagens, mais amaciados pelas constantes lambadas da vida. No entanto, o reencontro lhes traz energias e sentimentos que pareciam esquecidos, e novamente os animais se enfrentam. Claro, não há esperanças de que alguém saia incólume destes embates.
Por fim, no inverno de 1987, eles se encontram novamente. Mais um encontro fortuito, um acaso (existem acasos?) que une as duas feras, agora sim cansadas da vida e esperando que possa haver pelo menos uma saída digna desta. As situações vão mudando ao longo do tempo — primeiro é a mulher quem ataca, depois o homem, por fim ambos se defendem —, mas sentimos como eles parecem estar resignados ao destino que lhes foi dado. O último encontro que presenciamos parece ser o réquiem ao sonho que poderia ter existido algum dia.
Cazarré podia ter se concentrado no clima ao redor dos protagonistas. Anos conturbados, anos de ditadura, em que um pedaço da juventude (normalmente os filhos da alta sociedade que não precisavam trabalhar para garantir o sustento) pensava em querer lutar para derrubar o regime autoritário. Há vários autores que exploram este cenário conturbado para contar suas histórias, algumas boas, outras nem tanto.
Cazarré, porém, mesmo mencionando as mudanças pelas quais passa o país, concentra-se nos dois protagonistas. Para ele, todo o resto é cenário, é pano de fundo para a verdadeira luta, a luta de uma mulher que se diz emancipada e filha rica que não precisa trabalhar e o jovem que constrói o seu caminho com o próprio suor, trabalhando e ralando, e não tem tempo para filosofias políticas que na prática não se confirmam. Este é um dos grandes méritos de Cazarré neste trabalho: focar no que é importante.
Outro mérito dele é conseguir mostrar a história de cada personagem, com um pouco mais de destaque para o homem, com poucas, muito poucas palavras, ao longo da novela. Ainda que encontremos os personagens em apenas três dias ao longo de 17 anos, temos uma sensação de que os conhecemos já de longa data, principalmente depois do segundo encontro. Cada um deles é intenso, forte, como só encontros entre pessoas com muita personalidade podem ser. É da troca de diálogos intensos e curtos, onde o silêncio e as palavras não ditas trazem muito mais significado à história de ambos que o que é dito. Esta combinação de poucas palavras com a intensidade da relação entre ambos, ainda que esparsa e ao longo do tempo, dá o tom da novela.
A opção de fazer apenas três cortes no tempo (uma noite em 1970, uma outra em 1979 e outros três em 1987) dá uma dimensão interessante à novela. O autor parece dizer ao leitor que ele pode inventar o que quiser durante estes intervalos, que ele pode preencher as lacunas como bem lhe aprouver. No entanto, por maior que seja a vida que os leitores derem aos personagens, Cazarré mostra que é possível haver na vida deles, e por conseqüência, na nossa vida, um evento tão importante que deixa marcas indeléveis, que são carregadas para todo o sempre. Quase todos os humanos têm um evento assim em sua história. Este paralelo traçado pelo autor é um dos pontos que nos deixam muito próximos dos protagonistas, ainda que achemos que não temos nada a ver com eles.
Por fim, o grande mérito do autor está em manter-se simples. Há muitas oportunidades para o autor se perder ao longo do caminho. Pedro, apresentado como um amigo do homem no começo da novela, tem potencial para ser um bom personagem. Mas ele aparece e logo some. O homem, prestes a casar, despede-se de dois amigos na bebedeira que é a sua última como solteiro, e também poderiam ter um futuro bacana. Há um encarregado de um sítio que aparece no fim, caricato e carismático, que também daria um bom caldo. Cazarré afasta-se destas tentações e segue reto seu caminho, sem deixar desviar-se. Está aí o talento do escritor, ele tem um objetivo claro e definido e vai à busca dele. Em uma época em que a simplicidade e a objetividade parecem ser valores perdidos, Cazarré mostra que é possível sim falar pouco e dizer muito.