Babel Babilônia, de Nelson de Oliveira, tematiza, como o próprio nome diz, as promessas e maldições do progresso, com as múltiplas vozes que ecoam entre delírios, mitos e concreto em construção com suas devastações e incomunicabilidade típicas. É organizado tendo como referência eixos significativos estruturados sobre outros textos. Entre eles, predominantemente, destaca-se o discurso bíblico. A intertextualidade da novela é patente a partir do próprio título que sugere desde a parábola bíblica do Velho Testamento, “A torre de Babel — confusão da linguagem” (Gêneses. 11) até a queda da Babilônia, do Apocalipse de João, do Novo Testamento.
O livro é composto por 22 textos que permitem uma leitura autônoma em si, mas que se relacionam e formam um conjunto interligado, distribuídos, segundo indicação de um sumário introdutório, em três partes ou capítulos: 1) Anunciação, 2) Inferno e 3) Redenção. As duas primeiras partes reúnem nove textos e a última, quatro.
Os fragmentos, contos ou subcapítulos dessa novela, apesar de permitirem uma leitura autônoma, possuem fios narrativos que os aproximam um do outro e, como veias abertas à significação, estabelecem questionamentos e promessas de sentidos, que, enquanto tal, muitas vezes se frustram e jogam no nonsense. Este, por sua vez, funciona como mobilizador compulsivo de novas buscas.
Em torno da construção de um edifício, histórias e personagens se movimentam. Olho mágico: cidade dos sonhos abre a novela na anunciação de uma profecia apocalíptica, mediada pela referência aos sonhos do subtítulo e às primeiras palavras do livro: “A avenida mais iluminada do planeta, protegida por dois paredões de concreto e aço, projeta-se sonho adentro”. Um narrador inicia sua fala descrevendo a inevitável invasão à cidade provinciana pela cidade grande: “Pelo olho mágico do centro da fogueira assistimos à chegada dos trilhos e dos vagões…” Ao mesmo tempo em que a referência à Grande São Paulo contemporânea vai fincando suas garras por meio de signos familiares, como mapeamento e nome das ruas e avenidas, por exemplo, a perspectiva de sonho projeta-se para a generalização. Ou seja, essa cidade poderia ser, além de São Paulo, qualquer outra, como Nova York ou a mítica Babilônia.
O narrador, entretanto, adverte: “Falo de São Paulo, paraíso e pesadelo”. É a inevitável invasão que é anunciada, sedutoramente esperada e assustadoramente temida. Dentro de um tom frenético e compulsivo da São Paulo descrita sob a explosão do progresso que se aproxima e que a tudo invade e contamina com suas chamas e fumaça, a voz de um narrador tenta sobreviver, dando voltas em torno de uma fogueira imaginária da pequena cidade. Está preso, de certa forma, à tradição do seu ancestral narrador camponês, cuja tarefa era reunir a comunidade para contar sua história e transmiti-la de geração em geração. Anuncia também, “com as rugas irritadas” da sua voz, não só as “explosões demoníacas dentro da fogueira”, que “assustam as crianças”, mas a sua própria extinção enquanto narrador, depositário e divulgador da tradição do seu povo.
Meus antigos amigos, as pessoas com quem estive ao redor da fogueira, não me reconhecem mais, deixaram metade da memória nas dependências do Memorial da América Latina, a outra metade perderam por aí.
Neste sentido, é preciso atentar para a perspectiva metaficcional que constitui um fio condutor da novela e estabelece a coesão interna da trama e alguma coerência na leitura. Coerência esta impossível de ser construída se o leitor ficar preocupado apenas com o enredo factual, propriamente dito. Apesar de importante, sua construção não se processa imediata ou automaticamente por uma seqüência lógica e concatenada da ação. Os fatos vão sendo apresentados numa narrativa em labirinto, cujos riscos em se ver perdidos seus sentidos são tão inevitáveis quanto a perda da memória da pequena cidade e da explosão que se aproxima. A anunciação efetuada no texto é reproduzida em outros termos, quase com as mesmas palavras, no último segmento, Babel Babilônia, que fecha o livro e compõe a sua terceira parte, chamada Redenção. O recurso é muito utilizado na composição da novela. Observe-se, por exemplo, em Pra onde vai a luz quando o medo acende o escuro?. Em cada um dos quatro fragmentos que compõem o texto surge o mesmo trecho reiteradas vezes, em situações diferentes, ajudando a construir personagens, ambientação, conflitos e tensões da trama: “antes que…, o clarão verde e rugoso da mata absoluta e do rio áspero cegou…, revelando-…. a verdade vegetal, mineral, subterrânea, a verdade da supremacia orgânica, a verdade da fotossíntese e do vento líquido”.
As narrativas que se sucedem são bastante diferentes entre si, a começar pela maneira com que se estruturam, tanto na construção dos personagens, quanto na ordenação da trama e seu conteúdo simbólico e significativo. A escrita é articulada com uma bela estrutura gráfica marcada por figuras e por páginas pretas com letras brancas que introduzem e delimitam cada um dos pequenos contos. As perspectivas e pontos de vista narrativos também se apresentam variados, o que possibilita uma multiplicidade de enfoques e a intensificação da confusão de comunicação entre esses personagens, divididos ao longo da novela entre defensores do “progresso”, seus opositores mais ferrenhos ou, simplesmente, suas vítimas indefesas.
Gol? é uma cena de rua, reminiscências de um momento da infância, apresentação de personagens como seu Onofre, que parecem se perder na profusão dos tantos seres que entram e saem de cena. Entretanto, mais adiante reaparece em outras histórias, estabelecendo relações e garantindo continuidade e ligação entre diferentes fragmentos. Um menino gordo e desajeitado aparece também em vários momentos ligados a negociatas e problemas amorosos e constrangedoras situações. Suas lembranças de menino se projetam no presente de homem envolvido em situações constrangedoras e de suas lembranças na busca de um Tempo perdido só sobrevivem as madeleines e o chá no jardim dos Souza. Em Zen e a arte de bem ocupar os espaços vazios, Jorge de Almeida se comunica com Marlene Medeiros na língua cifrada dos e-mails.
Momento civilizatório
Em Beatriz, é apresentada a menina de oito anos que mais adiante se tornará mulher, sob a marca do abandono de um pai que escapou por um buraco num barranco de uma mata fechada em seus perigos e nunca mais voltou. Ela, Beatriz, a que traz a luz, aparece muitas vezes na sua obscura solidão e abandono, ligada à Terra, aos abismos de um tempo e de um espaço que vão sendo pouco a pouco destruídos para dar lugar à construção da Metrópole e de um novo momento “civilizatório”. Ela se torna muito importante porque em torno dela e a partir de detalhes de sua vida e crescimento é que se desenvolve o grande conflito entre a Grande Mãe, a Terra e o avanço do Progresso implacável.
Beatriz cresce com a narrativa, num movimento proporcionalmente inverso ao declínio da cidade pequena invadida e destruída aos poucos em seus signos primordiais. Ela fala e se comunica com os jacarandás, “as folhas, as flores e os frutos das árvores chamam seu nome, querem que ela vá até lá, que deixe a cidade e se perca na mata…” Em Por que o mundo não se esforça pra me fazer feliz?, Bia conversa e se comunica com as árvores como não consegue se comunicar e se fazer entender pelos seres humanos viventes da cidade que se deteriora, da memória que se perde e do próprio corpo que se fragmenta esquizofrenicamente. Os mitos das velhas crenças tornam-se obsoletos, mandalas e arabescos, cartas e tarôs que ainda absorvem personagens como Ben, com alguma coisa de Louco e Mágico, suspenso no tempo. As vozes que o questionam vêm respaldadas pela Ciência dos novos tempos, “a luz da semiótica pierciana” ou perto da Interpretação dos sonhos, de um Freud. Contra a loucura que os ameaça, só a ciência para contrabalançar. Inútil perspectiva, Bia é atraída para a mata, é chamada por um cadáver que volta e meia parece espreitá-la e convidá-la para o abismo, anunciando a morte inevitável. Essa relação com a terra e os seres da Terra mãe se estreita nos últimos capítulos quando leva os restos do corpo morto de sua filha para o fundo da mata e a ela se entrega enquanto um movimento de redenção, reencontro com o útero da Terra. Tudo isso depois de ter transitado pela cidade: “Bia, na calçada, pensa muito antes de dar o primeiro passo. Norte, sul, leste, oeste: todas as encruzilhadas levam ao inferno”. Beatriz, mais que um personagem que transita no preto e branco da narrativa, é a própria alegoria de um mundo ameaçado pelo desaparecimento.
Kafka, em Parábolas e fragmentos e cartas a Milena, retoma o mito de Babel na pequena narrativa O emblema da cidade, no qual conclui: “Em tudo o que nessa cidade passou ao domínio das lendas e canções, pesa a nostalgia de um dia (profetizado) em que a cidade seria arrasada por cinco sucessivos golpes de um punho formidável. E é por isso que a cidade exibe um punho em seu emblema”. O punho emblemático é a maldição profetizada, a ameaça de destruição e de queda da Babilônia bíblica, destruída pelo fogo, pela explosão em suas torres. Tão forte quanto a maldição, pesa a nostalgia de um tempo que se foi, de uma memória que se perdeu e de um presente que se anuncia como sonho e pesadelo. É tudo isso que é recontado e colocado em questão pelo narrador dessa novela.
Neste sentido, é problematizada a própria impossibilidade de contar histórias nos dias atuais e ver reunidos antigos amigos ao redor da fogueira, numa franca comunhão e reconhecimento. A memória coletiva perdeu-se nas dependências dos edifícios. O narrador, além de não ser mais reconhecido, começa também a não se lembrar mais dos amigos. “Eu também aos poucos começo a me esquecer de todos: novas roupas, novos endereços, novas identidades”.
Como podemos observar, o narrador dos moldes arcaicos foi extinto, como já atestava Walter Benjamin nos meados do século passado. Os novos tempos modernos e pós-modernos assim o exigiram. Entretanto, podemos observar que com novas roupagens, novas vozes continuam narrando, contando, profetizando, anunciando, escrevendo livros. Por quê? Pra quê, se a maldição de Babel, na confusão estabelecida pela diferença das línguas e suas conseqüências entre os homens, além de inevitável só vem se radicalizando? É uma questão que não nos cabe aqui responder. Talvez porque tal pretensão seja tão arrogante quanto a construção de uma torre até aos céus como pretendiam os habitantes de Babilônia. São, entretanto, importantes questões que o livro de Nelson de Oliveira nos oferece enquanto reflexão mais aguçada do momento por que passa a chamada crise de representação ou de identidade que vivemos e que, de certa forma, ameaça a literatura como uma maldição de Babel.
Mas não custa atentar para a necessidade de apropriação de novas formas e fórmulas que garantam o mínimo de possibilidade de registros escritos desses nossos tempos. O susto, o sobressalto e a própria nostalgia de um tempo mais ameno não podem nos imobilizar. Babel Babilônia e tantas outras produções do autor e de seus contemporâneos têm sido provas da teimosia obsessiva e criativa da arte de contar histórias.
Em entrevista, Nelson de Oliveira é indagado sobre a nova produção da literatura contemporânea. Afirma que não há falta de novos autores e de boas narrativas, o que falta é um maior investimento na formação de novos leitores, capazes de acompanhar as mudanças e incorporar à literatura novas linguagens e suas abordagens. Apesar de ser um processo mais lento, é claro que isso vem acontecendo. O mercado editorial está crescendo porque os leitores, perplexos ou não, estão comprando os livros, lendo-os, questionando-os. Não resta dúvida de que novas sensibilidades estão surgindo, paradoxais, confusas, mas capazes de transitar entre o fogo cruzado da incomunicabilidade de explosão do progresso e as ruínas das memórias do passado que, pelo sim ou pelo não, continuam, ainda, constituindo nossa História.