Olhar atento

Em “Literatura e política”, George Orwell mostra-se sempre atento aos fatos a sua volta
George Orwell: críticas à sociedade e à política de sua época.
01/07/2007

De 2005 para cá, o leitor brasileiro tem sido privilegiado com lançamentos de livros de autores importantes que não recebiam do mercado ou da crítica (ou de ambos) a merecida atenção, ou um maior destaque. É o caso de Truman Capote, que teve dois livros lançados aqui no ano passado, ou de Juan Carlos Onetti, que vem ganhando mais espaço nas estantes das livrarias, entre outros autores.

Um deles, e o que mais me despertou a curiosidade, foi George Orwell. Primeiro vi referências a seus livros em sites e blogs. Depois, foram os próprios livros que, nas minhas andanças dentro de uma livraria (a única que realmente vale a pena visitar, e talvez a única que mereça ser chamada de livraria aqui na cidade), começaram a “aparecer” diante de meus olhos.

Orwell é um autor que merece ser lido e relido, sempre. Tanto por leitores que buscam o prazer de uma boa leitura, quanto por escritores ou aspirantes que desejam ter uma referência de como escrever e de como conduzir um bom texto. Aliás, bom, não, porque Orwell não é bom. “Bom”, para adjetivar os textos de George Orwell, é muito pouco. Isso porque Orwell não foi um escritor e jornalista comum. Ele participou de uma guerra como soldado (a Civil Espanhola, entre 1936 e 1939), viveu entre os pobres e passou fome em Paris e Londres para escrever um romance (Na pior em Paris e Londres) e fez da literatura o seu palanque, ao criticar a ditadura stalinista na Rússia (A revolução dos bichos). Não é nada fácil misturar literatura e política sem cair no panfletarismo exacerbado ou no ridículo de críticas sem fundamento. E isso não acontece com George Orwell.

Grande prova disso é Literatura e política — Jornalismo em tempos de guerra. São artigos políticos e resenhas escritos por Orwell entre 1942 e 1948, para o jornal britânico The Observer. A Segunda Guerra Mundial estava a três anos do fim quando Orwell começou a escrever seus artigos para o jornal. A discussão sobre assuntos relativos a ela era, portanto, inevitável, ainda mais para alguém como Orwell que, a essa época, já havia participado ativamente da Guerra Civil Espanhola. Lá, Orwell levou um tiro no pescoço, que o deixou com a voz prejudicada pelo resto da vida.

Quando folheei o livro na livraria, pensei que as resenhas me interessariam mais. Ao lê-lo, aconteceu o contrário. Não que as resenhas não sejam bem escritas. Nada disso. Acontece que alguns dos livros resenhados por Orwell são totalmente desconhecidos por mim. O que não desabona o autor, e sim este humilde leitor, que tenta fazer as vezes de escritor e resenhista.

Mas, ainda assim, mesmo não conhecendo certos livros e autores por ele apontados, há muito que aprender com as resenhas selecionadas. Até porque Orwell não perdeu a oportunidade de fazer críticas à sociedade e à política da época nas resenhas que escreveu. Não raro suas observações mais contundentes se sobrepõem ao texto e o que deveria ser uma resenha literária termina sendo um belo e sensato artigo jornalístico.

No caos em que vivemos, mesmo as razões prudentes a favor da decência comum estão sendo esquecidas. A política, interna e externa, talvez não seja mais imoral do que sempre foi, mas o que é novo é a crescente submissão das pessoas comuns às doutrinas de conveniência, a insensibilidade da opinião pública em face aos crimes e sofrimentos mais atrozes, e a memória cega que permite que assassinos maculados pelo sangue se transformem, da noite para o dia, em benfeitores públicos, caso assim exija a “necessidade militar”.

Este trecho faz parte da resenha de The Edge of the Abyss, de Alfred Noyes, publicada em 27 de fevereiro de 1944. Nele, vejo a definição da política brasileira. Basta trocar “assassinos maculados pelo sangue” por “políticos corruptos”. Não faz sentido?

De autores “conhecidos meus” — alguns apenas “conhecidos” mesmo, infelizmente —, resenhados por Orwell, estão Joseph Conrad, Balzac, T. S. Eliot e Dostoiévski. Aliás, sobre este último, Orwell diz algo que talvez faça tremer os admiradores do russo. Na verdade, os admiradores de Os irmãos Karamázov, considerada por muitos sua obra-prima. Para Orwell, este romance de Dostoiévski é maçante, com exceção do capítulo O grande inquisidor. Orwell reclama da extensão do livro, e diz que “o tema não parece justificar o vasto volume”. Já Crime e castigo, ele só elogia, dizendo ser uma prova de “extraordinária percepção psicológica” e “uma obra de arte mais conscienciosa”.

Um dos melhores textos de Literatura e política é um dos mais curtos: O dilema do escritor, resenha do livro de ensaios The Writer and Politics, de George Woodcock. Orwell fala dele de tal forma que me leva a crer que o livro de Woodcock merece uma edição brasileira. Instigado pela leitura, Orwell diz:

Em nossa própria época, um escritor sério não pode ignorar a política tal qual faria no século 19. Os eventos políticos afetam-no muito intimamente, e ele tem plena consciência do fato de que seus pensamentos aparentemente individuais são um produto de seu ambiente social. Ele, por isso, procura, como muitos escritores dos últimos 20 anos fizeram, interferir diretamente na política, apenas para descobrir que entrou em um mundo no qual a honestidade intelectual é considerada um crime. Caso siga a linha partidária, ele destruirá a si mesmo como escritor, caso se recuse a fazê-lo, será denunciado como um renegado.

Isso me faz pensar numa pergunta: será que é por esse motivo que a maioria dos artistas hoje prefere se omitir ou simplesmente dar declarações mais que previsíveis, quase sistemáticas, decoradas? Coisas que George Orwell jamais fez.

Há também muito que aprender com os artigos políticos de Orwell. Neles o que se vê é um homem ativo, muito bem informado e atento a tudo o que acontece ao seu redor. Orwell vai a diversas cidades da Europa ver os estragos provocados pela guerra. As descrições são de arrepiar.

Sempre fui muito interessado em História, mas nunca parei de verdade para estudar muito certas épocas ou acontecimentos. Ler os artigos de Orwell me fez perceber quanto tempo eu perdi com coisas que poderiam ter sido deixadas para depois. Mas, acima de tudo, ler Orwell me fez enxergar que é possível correr atrás do tempo perdido. E o melhor: com a ajuda dele e de seus livros.

Literatura e política — Jornalismo em tempos de guerra
George Orwell
Trad.: Sérgio Lopes
Jorge Zahar
240 págs.
George Orwell
É o pseudônimo do escritor Eric Blair, nascido na Índia, em 1903, quando seus pais trabalhavam para o governo britânico. Orwell foi educado no tradicional colégio britânico Eton, e se juntou às forças imperiais na Birmânia em 1922. Escreveu romances e livros de não-ficção, como A revolução dos bichos, 1984, Dias na Birmânia, entre outros. O escritor morreu em 21 de janeiro de 1950, de tuberculose, aos 46 anos.
Rafael Rodrigues

É escritor, revisor e resenhista. Autor do livro O escritor premiado e outros contos e integra a antologia O livro branco – 19 contos inspirados em músicas dos Beatles. Mantém o blog Paliativos (www.paliativos.com.br) e escreve para o Huffington Post Brasil.

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