42
O túnel é largo e extenso.
O túnel é escuro e malcheiroso.
Em fila indiana, seiscentas e sessenta e seis pessoas amarradas, vendadas e amordaçadas percorrem esse túnel durante meia hora, duas horas, seis horas.
Os velhos gemem sem parar. Os pulmões chiam, as articulações guincham e as varizes latejam.
O túnel é úmido e quente.
O túnel é silencioso e arenoso.
Em fila indiana, seiscentas e sessenta e seis pessoas amarradas, vendadas e amordaçadas percorrem esse túnel durante meia hora, duas horas, seis horas.
De vez em quando o silêncio e o murmúrio dos velhotes são quebrados pelo som de água corrente. Então o chão fica molhado e o chuvisco gelado que vem de baixo ensopa os sapatos e a roupa dos prisioneiros.
O túnel é egoísta e cruel.
O túnel é traiçoeiro e sombrio.
Muitos vultos pequenos e agitados conduzem com determinação, pela estreita passarela que margeia o riacho subterrâneo, essa fila exausta e apavorada da qual Rodrigo e Renata também fazem parte.
Se não estivesse amarrada, vendada e amordaçada, talvez Renata visse, grosseiramente pintado nas costas da camiseta do marido, algo intrigante mas muito familiar: um pequeno M fosforescente.
Um pequeno M fosforescente muito parecido com o da sua própria camiseta e o da roupa de todos os outros prisioneiros.
Para aonde estão indo esses seiscentos e sessenta e seis emes fosforescentes, só as criaturinhas peludas e afobadas sabem.
43
O bibliotecário caiu no sono.
O tampo da mesa não era nada convidativo, mesmo assim o bibliotecário finalmente caiu no sono.
Tudo foi muito rápido, a soneca não levou mais do que um minuto ou dois.
Isso mesmo. Um minuto ou dois. Mas nesse breve período de sono ele sonhou.
Tudo foi muito rápido.
Porém nesse curto espaço de tempo — uma cochilada, só isso — o bibliotecário chegou a passar muitas e muitas horas.
Pra dizer a verdade ele chegou a passar quase todo o resto de sua vida.
Porque nesse brevíssimo mergulho no sono ele sonhou.
Sonhou que se encontrava preso numa caixa de papelão, que por sua vez estava dentro de outra caixa um pouquinho maior do que a primeira, que por sua vez estava dentro de outra caixa um pouquinho maior do que a segunda, e assim sucessivamente até atingir a centésima primeira caixa.
Encontrava-se preso e sem ar, numa caixinha cheia de livros, a maioria deles muito velha. O cheiro de mofo e de cola era insuportável.
De repente, ainda no sonho, ele espirrou.
Ao espirrar, as paredes da primeira caixa, antes tão resistentes e invioláveis, desapareceram. É, foi simples assim: puf. Curioso… Parece que a substância maravilhosa dos sonhos tem esse poder: às vezes tudo o que é sólido desmancha no ar.
Desapareceram como se fossem feitas de bolhas de sabão.
O bibliotecário espirrou novamente e mais uma vez e de novo e de novo e de novo e a cada novo espirro uma nova caixa era arremessada para longe, para fora do sonho.
No centésimo primeiro espirro a última caixa se foi.
Foi-se, abrindo o campo de visão do bibliotecário, descortinando as paredes rugosas e bolorentas de vários edifícios municipais situados ao lado de uma estação ferroviária desativada.
Demorou muito para que ele conseguisse sair das imediações dessa estação, pois não sabia onde estava e não havia vivalma que pudesse dar alguma informação.
Não, ninguém.
No sonho ele andava por uma rua estreita e escura de um bairro bastante familiar do qual não conseguia recordar o nome. Parece que a substância maravilhosa dos sonhos tem esse poder: às vezes tudo o que é sólido — até mesmo o nome dos locais mais familiares — desmancha no ar.
A rua era iluminada aqui e ali por postes de concreto levemente cuneiformes, desses que há muito não se vêem mais. Do tipo encontrado apenas nas regiões mais pobres e afastadas: na periferia da capital ou nas cidades mais insignificantes e esquecidas do interior.
Não fazia nem calor nem frio, afinal os sonhos quase nunca apresentam uma temperatura definida.
Frederico andava, tomando muito cuidado para não esbarrar nas caixas de papelão dispostas na calçada, aguardando a chegada do lixeiro.
Estavam umas em cima das outras, essas caixas. Dezenas delas.
O menor toque seria o suficiente para pôr tudo abaixo.
Então, detrás de uma dessas pilhas abandonadas à própria sorte, saiu um sujeito gordo, baixo, de bochechas salientes e barba ainda por fazer.
Ele saiu como se saísse de um segundo sonho. Talvez do seu próprio sonho.
Esbarraram, o bibliotecário e o sujeito.
Não teve jeito. Esbarraram ruidosamente. Esbarraram, quer porque não perceberam a presença um do outro com a mínima antecedência necessária, quer porque assim mesmo é que as coisas tinham que ser. Afinal nos sonhos nada ocorre por acaso. Esse choque devia estar escrito em algum lugar: nas estrelas, no vôo dos pássaros ou, quem sabe, na última página de um dos livros empacotados e guardados dentro dessas caixas.
Esbarraram.
Opa, o bibliotecário se assustou.
Pelo amor de Deus, Fred, que é que você está fazendo aqui a esta hora?
O sujeito mirou-o de frente, as duas mãos postas de maneira quase paternal nos ombros do bibliotecário. Este, no entanto, parecia não conhecer o gorducho.
Fred, olha, tudo bem, fico contente que você esteja aqui, sim, fico feliz mesmo.
O quê?
Olha, você tem que me ajudar, pelo amor de Deus.
O quê?
Você trabalha na Divisão de Bibliotecas. Você está cercado de livros. Livros por toda parte. Em algum lugar existe um livro, sim, um livro muito especial capaz de me tirar daqui, de me devolver à realidade. Fred, pelo amor de Deus, cara, você está entendendo o que eu estou dizendo?
O quê?
Mas, porra… O que eu estou fazendo? Deus, eu estou tentando me comunicar com uma sombra!
O sujeito segurava firmemente o bibliotecário pelos ombros. Este, incomodado, tentou se libertar. Recuou um passo, inclinou o corpo, mas em vão.
Você é maluco, cara? Eu nem conheço você.
Fred, pelo amor de Deus.
Me larga, caralho!
O bibliotecário, agora muitíssimo aborrecido, se desvencilhou com um gesto brusco, dando em seguida outro passo atrás.
Fred.
Vá a merda!
O sujeito soltou um gemido inesperado e se deixou cair sobre os joelhos.
Assim, sobre os joelhos, sua figura se tornou muito mais melancólica, patética e sobrenatural do que antes.
Parecia uma estátua de pedra escura e grotesca, uma carranca fechada em si mesma. Uma gárgula retirada do parapeito de uma melancólica catedral gótica.
Porém, diferente do que se espera de tal acessório arquitetônico, de sua bocarra não escoava a água de chuva alguma. Não. De lá saía apenas esse gemido doído, medieval, sinistro, emitido numa língua desconhecida.
O gemido dos nossos antepassados, o bibliotecário pensou comovido.
Ao pensar nisso, imediatamente lembrou do sonho antigo, do sonho onde havia um picadeiro, um circo armado num terreno pantanoso e, o mais importante, um palhaço que, saindo da multidão de palhaços, interpelara-o de maneira rude.
Lembrou do palhaço, ah, sim, lembrou.
Você?, o bibliotecário engasgou retrocedendo ainda mais.
Sim.
O palhaço era esse mesmo sujeito. O sujeito havia sido, antes, aquele mesmo palhaço. Um e outro, a mesma pessoa. Exatamente. O mesmo timbre de voz, a mesma cara amarfanhada, o mesmo gemido infinito.
Ao pensar nisso mais uma vez, o bibliotecário imediatamente lembrou de todos os outros sonhos, de todos os sobressaltos dos meses passados, noite após noite, muitos, ocorridos entre o sonho do picadeiro e o que estava tendo agora.
Lembrou do sonho da Torre de Babel e do sonho das catacumbas de Roma.
Lembrou, com maior riqueza de detalhes, do sonho do teatro de ópera, com suas colunas brancas de mais de dezoito metros de altura, seus potentes holofotes pendendo de uma estrutura especial instalada acima do palco, seu salão ricamente decorado, acima do foyer, onde os espectadores se encontravam durante os intervalos do espetáculo.
Teria sido o Real Teatro de Ópera de Londres?
Sim, parecia ter sido mesmo o Real Teatro de Ópera de Londres.
Jamais se esqueceria desse pesadelo. Por sua causa passara o restante de noite em claro.
Nele e em todos os demais a figura desse gorducho, desse palhaço recorrente agora reduzido à mera silhueta de uma criaturinha de pedra — uma gárgula gaga! —, sempre estivera presente, sempre, sob as mais variadas máscaras: ora como um operário maltrapilho, ora como um cristão em apuros, ora como o regente de uma grande orquestra, e assim por diante.
Sempre repetindo aos gritos a mesma ladainha:
Pelo amor de Deus, você precisa me ajudar a sair daqui.
Ou:
Não agüento mais este lugar, estou enlouquecendo.
Ou:
Fred, só você pode me ajudar, pelo amor de Deus.
Até mesmo nos pesadelos mais abstratos, nos delírios em que costuma haver uma troca incessante e alucinada de ambientes e personagens — uma chaleira que se metamorfoseia numa caveira que se metamorfoseia numa cadeira que se metamorfoseia num caldeirão —, esse sujeito em particular sempre figurou como protagonista.
Enquanto divagava sobre o conteúdo dos seus transtornos oníricos o bibliotecário notou que o choro, antes tão presente, foi encolhendo, perdendo a consistência, volatizando.
Agora o sujeito não emitia mais nenhum som. Nem um suspiro sequer.
Então o bibliotecário percebeu um cheiro parecido com o de amônia, um odor forte e nauseabundo, um vapor que aos poucos ia cercando suas pernas.
Um cheiro insuportável.
Isso fez com que levasse instintivamente a mão ao nariz.
Olhando para baixo na direção desse monte de carne e ossos, na direção desse amontoado de trapos abatido e cheio de autocomiseração, não conseguiu acreditar no que os seus sentidos flagraram.
O sujeito fedia!
De repente os gemidos voltaram.
Depois dos gemidos veio o mesmo choro de antes, seco, idiota, patético.
Pelo amor de Deus…
O choro passou a deslizar por entre as pernas arqueadas do bibliotecário, a um centímetro da própria superfície do sonho, meio indefinida, meio enevoada.
Pelo amor de Deus, o que é que está havendo?, o estranho perguntou tentando conter as lágrimas.
Perguntou, sem no entanto erguer o queixo, os olhos, o nariz.
Havia muita preocupação nas bochechas rosadas do bibliotecário.
Os sonhos têm sempre essa característica: o excesso de preocupação.
A pilha de caixas mais próxima ameaçava desabar com esses soluços. Cada uma das caixas balançava de leve, como se estivesse dançando, cada vez que a terra tremia com o impacto de uma lágrima desgarrada. Cada pequena explosão na calçada fazia o bairro todo vibrar.
Espera só um minuto, não era nada disso que eu queria dizer, sussurrou o estranho mudando sensivelmente o tom de voz.
Não, nada disso. Veja bem, meu amigo.
O estranho tentava controlar as próprias emoções.
Primeiro passo: ficar de pé.
Ficou de pé, dizendo ao bibliotecário, veja bem, às vezes, quando estou muito cansado, tenho pesadelos, às vezes apenas um, recorrente, sempre o mesmo pesadelo, noite após noite, compreende?
Você tem pesadelos.
É. Muitos. Terríveis. Pois cada um deles tem a capacidade de me trazer pra cá, de me aprisionar entre personagens e paisagens absurdas. Então tudo passa a ser uma loucura torturante.
Devagar, sim? Não estou entendendo nada do que você está dizendo, o bibliotecário reclamou.
Estou falando de sonho e realidade, compreende? Dois mundos muito próximos, mas totalmente distintos. O seu mundo e o meu, compreende? O mundo dos lunáticos e o mundo das pessoas mentalmente sadias, compreende?
Espera aí um minuto. Não vamos embaralhar as coisas, ok? Eu sou real, sim senhor, durante o tempo todo, e você não passa de uma miragem. Uma miragem! Estamos entendidos?
O sujeito não se abalou com essa afirmação. Parecia até mesmo já ter ouvido muitas e muitas vezes qualquer coisa semelhante, em ocasiões diferentes, em diferentes pesadelos.
Sorriu irônico, sorriu gorducho:
Real? Você? Tem mesmo certeza disso, meu caro Fred?
44
No final do túnel largo, extenso, escuro, malcheiroso, úmido, quente, egoísta, cruel, traiçoeiro e sombrio há uma caverna iluminada por lampiões. No fundo da caverna há um elevador antigo e enferrujado.
São necessárias trinta viagens para levar os seiscentos e sessenta e seis prisioneiros para baixo.
A viagem descendente — todas as trinta — é lenta e empoeirada.
Horas depois, já no nível mais profundo da caverna, depois de saírem do elevador e andarem por passagens estreitas acariciadas por agradáveis correntes de ar fresco, todos retomam a caminhada. Em pouco tempo o último lote de prisioneiros é entregue pelas criaturinhas peludas e afobadas ao chefe dos carcereiros.
Missão cumprida.
Hora da sopa de repolho, do naco de pão, do vinho argentino e do charuto boliviano.
E de um bom colchão de palha.
No dia seguinte, no topo da nova lista que os pequenos seqüestradores recebem de seus superiores, três nomes se destacam.
Frederico Nogueira.
Estela Nogueira.
Pedro Penna.
45
Estela estava no quarto, sentada na cama, com uma bandeja de trufas ao seu lado.
Em 1554 frades dominicanos levaram uma delegação da nobreza maia para visitar o príncipe Felipe, da Espanha.
Entre os objetos apresentados à corte, além de sementes de vários tipos, além do chili, da salsaparrilha, do milho, do liquidâmbar e de duas mil penas de quetzal, a oferenda mais valiosa foram os vários recipientes repletos de chocolate batido.
Essa foi a primeira vez que o chocolate deu as caras na Europa.
Porém o futuro rei Felipe II — futuro rei também de Portugal — demonstrou maior interesse pela nudez dos visitantes.
Estela estava no quarto, quieta, sentada na cama.
Não sabia nada a respeito da delegação maia nem do príncipe Felipe.
Não sabia nada e, no entanto, isso não a impedia de comer uma trufa após a outra, e de experimentar uma deliciosa sensação de paz e tranqüilidade depois de cada mordida.
Um operário torrando uma porção de cacau num caldeirão.
Outro operário separando as amêndoas.
O terceiro quebrando-as dentro de um almofariz aquecido.
O último triturando-as sobre uma superfície quente.
É assim que na famosa Enciclopédia de Diderot e D’Alembert uma gravura mostra, de maneira didática, o preparo de um pouco de chocolate.
Mas Estela estava se lixando para isso.
Para o inferno com a Enciclopédia.
Quarenta por cento de açúcar.
Quarenta por cento de leite.
Vinte por cento de cacau.
Esta é a composição do chocolate.
Estela estava no quarto comendo trufas e revestindo o assento de uma velha cadeira de estimação.
Havia acabado de retirar o tecido antigo, encardido e desfiado em alguns pontos.
Tinha ao seu lado uma fita métrica, uma tesoura, um grampeador, uma faixa de manta acrílica, uns setenta centímetros de feltro e um bom pedaço de jacquard estampado, com desenhos de flores e folhas.
Predominavam nele os tons pastel.
Estela amava os tons pastel.
Estava assim, no quarto, sentada na borda da cama, rodeada de ferramentas e tecidos, diante da cadeira, pensativa, muito pensativa, estava assim simplesmente porque, igual ao marido, meia hora antes não havia conseguido pegar no sono.
Ela olhava a cadeira, depois a revista aberta, a mesma revista meio amarrotada que sempre dava todas as dicas para que o serviço fosse feito com perfeição, depois olhava novamente a cadeira.
O visitante, após um número incontável de degraus, encostou no batente da porta.
Encostado na madeira escura, estava tão perto de Estela que por pouco não se apoiou também no ombro dela.
Estela, no entanto, não estava aí.
Estava na revista, na tesoura e no pedaço de feltro.
De repente, toque toque toque, o visitante quebrou a concentração da mulher com três batidas e um olá inesperado.
Bom dia.
Oh, bom dia, entre.
Ele entrou, jactancioso, bastante orgulhoso de si mesmo, olha só o que eu achei, disse ofegante, mostrando os dois livros um pouco molhados mas ainda intactos.
O que é?
Ela, afastando um pouco o pedaço de feltro, pegou os livros de maneira desinteressada, folheou primeiro o Dicionário de astronomia, folheou-o sem muita vontade, depois o Atlas celeste, agora com mais vagar, detendo-se aqui e ali, prestando atenção nas fotos mais reveladoras e nas ilustrações mais bem executadas, a maioria de página dupla.
São muito bonitos, ela por fim respondeu, pondo os livros displicentemente de lado.
Só isso? São muito bonitos? Nada mais?
O que você queria ouvir?
Sei lá. Qualquer coisa além de um simples são muito bonitos. Sei lá.
São muito bonitos, sim. Qual é o problema afinal?
Estela já estava de saco cheio de ler a revista e de tentar trocar o assento da cadeira.
Comeu uma trufa, sem se incomodar em oferecer a última ao visitante.
Tesoura, grampeador, jacquard. Estava de saco cheio.
Na verdade estava de saco cheio era do barulho infernal, do fuzuê medonho de picaretadas e marretadas que entrava pela janela, vindo sabe-se lá de onde.
O que estão fazendo com o mundo?!
Pegou uma caixa de baixo da cama e começou a guardar as ferramentas e os tecidos.
Estou cansada. E falta preparar o jantar. Não estou nem um pouco a fim de voltar pra cozinha.
O visitante, por sua vez, recolheu os livros de cima da cama.
Recolheu-os curvando o corpo sobre eles, fazendo estalar cada um dos nós da sua espinha dorsal. Podia sentar na borda da cama, ao lado da mulher. Assim seria mais fácil pegar os livros. Mas não ousou fazer isso.
Não, isso não seria apropriado. Seria indecente.
Estela estava usando um bonito vestido azul-marinho, do tipo curto.
Do tipo muito curto.
Não seria direito. Seria muito indecente.
Que nuvem era essa que envolvia tudo, tornando o vestido, os objetos em cima da cama e nas estantes, mais tristes e melancólicos?
O poente.
Estava escurecendo e a sombra bordô dos edifícios vizinhos cobria um bom pedaço da janela, da cortina e da cama, misturando-se com essas superfícies tão imponderáveis e heterogêneas. Nesse amálgama crepuscular desfilava uma grande variação de cores e texturas.
Mais uma trufa. A derradeira.
Durante o tempo em que Estela se deliciou com o chocolate, o visitante ficou perdido na trama finíssima da meia-calça transparente que ela estava usando. Ficou perdido e imaginando como seria o rendilhado oculto sob o vestido.
Ah, Estela.
Seu corpo não era muito bonito, mas suas pernas, mesmo a perna acidentada, tinham certa leveza e consistência difíceis de se encontrar em mulheres de quarenta.
Enquanto as mãos juntavam as ferramentas, às vezes uma perna cruzava sobre a outra, serelepe, safada. Outras vezes elas ficavam quietas, uma encostada na outra, ainda assim serelepes e safadas.
Tinha uma manchinha de chocolate num dos joelhos. Na certa no mesmo joelho que havia sido coçado minutos atrás.
Uma manchinha pequena e gordurosa.
O visitante não deixou de investigar o outro joelho, para se certificar de que não estava também sujo.
Não estava.
Porém, durante a investigação, por um minuto o visitante se pegou pensando… Se pegou pensando… Quem sabe, chegar mais perto de Estela, sentir seu cheiro delicioso, tocar uma de suas coxas — talvez a coxa da perna doente, quem sabe —, deitá-la delicadamente na cama e, depois de beijar sem pressa cada canto do seu corpo, fazer amor com ela. Fazer amor a tarde toda. Por um minuto ele se pegou pensando que, puta que pariu, isso de fato não seria má idéia.
Não. Não mesmo.
Com um dar de ombros o visitante afastou essa idéia para a periferia da sua mente. Não seria justo. Não seria decente.
Vamos embora, Estela disse apoiando-se na bengala e afastando delicadamente a oferta de ajuda do visitante. Devido a um tique irreprimível, ele sempre esboçava o gesto de ampará-la, mas frente à recusa dela, seca, firme, quase ríspida, ele logo recuava envergonhado.
Saíram do quarto e desceram a escada fosforescente, iluminada pelas luzes da cidade.
Próximos capítulos
O bibliotecário, sua mulher, o visitante e mais seiscentas e sessenta e três pessoas são os novos alvos dos seqüestradores. A fim de evitar a agitação, o pânico e o caos, o governo consegue impedir que a notícia do primeiro seqüestro seja divulgada pela imprensa. A polícia e o exército são postos em alerta, mas, contra o quê ou contra quem, ninguém sabe. Os livros continuam aparecendo em toda parte, e o bibliotecário finalmente flagra quem está espalhando essas novas edições.