O pensamento voa assim… desamparado. Quando encontra uma barreira, salta, dá voltas ou simplesmente muda de direção. Mas normalmente continua íntegro. Solitário. Já quando encontra outro de sua laia, faz festa. Aperta a mão com gosto, dá aquele tapinha nas costas — às vezes amigável, às vezes um pouco mais familiar, acompanhado de um sonoro palavrão dito com muito gosto — ou então dá um bom abraço. E quando isso acontece, o pensamento, entrelaçado, vira dois. E voa por aí, desamparado, e com uma carga que já não sabe se é dele mesmo ou do outro, daquele que abraçou. Se, no vôo, o pensamento encontra apenas um colega, muito bem. Consegue sair praticamente ileso. Mas se os encontros são muitos e os apertos de mão, poucos, nem uma caixa inteira de Neosaldina vai adiantar, no final do dia. Ou outros tipos de remédio.
Quando Matheus encontrou a menina, sua sobrinha-irmãzinha boiando, cabeça dentro das águas sujas do rio, nua, provavelmente tinha o pensamento solitário. Mas, na mesma hora, ele voou. E encontrou tantos outros, mas tantos, que já não sabia mais nem se eram pensamentos dele mesmo ou de outras pessoas, perdidos por aí. Pensamentos fantasmas. De pessoas que já morreram, talvez, como seu pai. Ou de pessoas que o observavam, como sua mãe. Ou será que os pensamentos, e as ações que vêm com eles — porque em algum momento os devaneios param de ficar no campo das idéias e passam para a ação, ou não se vive — eram mesmo dele?
O amor não tem bons sentimentos, de Raimundo Carrero, faz uma devassa nos pensamentos de Matheus. Um homem que demorou a conhecer a mãe, uma mulher que talvez tenha matado o pai — não se tem certeza de nada nesse livro. Foi criado por uma tia aparentemente recalcada, mas com ele muito carinhosa, que lhe banhava enquanto ela própria tomava banho, mesmo ele já sendo grandinho. Teve um casal de irmãos que, amantes que eram, tiveram uma filha, aquela que ele encontrou morta, boiando no rio, e por quem tinha um carinho, digamos, especial. Matheus tinha uma família totalmente desestruturada. Como sua vida. Como seus pensamentos.
Durante toda a vida tenho me protegido para não me arrebentar. Faço um esforço enorme. Preciso segurar o pensamento para não perder o prumo. Aperto os pensamentos, trinco os dentes, sustento a respiração. Por isso estou sempre muito cansado. Muito cansado.
Fazia muito tempo que eu não lia algo tão cuidadosamente escrito. E como faz diferença! Não é preciso reinventar a roda. Dificilmente vamos nos deparar com uma história tão sensacional, diferente, inovadora, que nos faça perder o ar. Porque as histórias estão aí, nos jornais, nos vizinhos, nos ônibus, na vida. Nós as conhecemos. Nós as vivemos. O que faz a diferença, o que as deixa saborosas, únicas, é a forma como elas são contadas. E isso eu não me canso de dizer. Não adianta academicismos bobos. Teorias disso ou daquilo. Ou se escreve bem, com cuidado, com apreço pela língua, pela vida que ela dá ao texto, pela dança que ela propõe ao leitor, ou se fracassa. Carrero sai vitorioso aqui. A começar pelo título: O amor não tem bons sentimentos é muito bom, difícil não ser atraído por ele. E tentar antecipar situações terríveis a partir dele.
A história também é muito boa, é claro. Não sou maluca de dizer que um apenas bom punhado de palavras bem colocadas sem um enredo bem costurado para levá-las seja suficiente para prender um leitor por 200 páginas. Belas palavras soltas não nos prendem nem por 20. Obras sobre loucura são muito difíceis, mas o escritor pernambucano tem um excelente controle sobre ela.
Se eu bebesse café quente, ou se eu jogasse o café quente na pia, o mínimo que podia acontecer era eu ser acusado de matar Biba — o principal problema que me aguardava. Fechei os olhos — queria pensar com profundidade. Fiz pose de pensador. Eu seria acusado de assassinato ou apenas confirmado?
Os pensamentos de Matheus voam muito rápidos pelos capítulos do livro. O leitor tem de estar atento. Mas a narrativa de Carrero não é confusa. Confusos são os pensamentos, é a loucura. Tudo se passa enquanto Matheus vê a irmã boiando no rio, morta. Ali, de cócoras e sem nenhum sentimento — ou será que com todos os sentimentos juntos? — ele lembra da infância, de quando conheceu a mãe, de quando nunca conheceu o pai, de quando Biba chegou mínima, cabendo numa caixa de sapatos, de quando a acariciou pela primeira vez, de quando achou que a mãe a tivesse matado por ciúmes, de quando lembrou que talvez ele a tenha matado, de quando pensou que ele mesmo havia morrido, de quando não sabia mais de nada.
O amor, que aqui não tem bons sentimentos, não é exatamente o amor a que nós estamos acostumados a ver. Aquele romântico, aquele carinhoso, aquele bonito. Não há nada muito bonito nos amores da família de Matheus. Provavelmente, ninguém amou ninguém ali. De nenhuma forma “pura”, dessa pureza com que estamos acostumados, pelo menos. As coisas ali eram resolvidas na carne. E é isso. E é só. “Logo depois chegou Biba, filha legítima de meu irmão e pai Jeremias com minha irmã Ísis — na nossa família as coisas se resolvem aqui mesmo, não precisamos de estrangeiros para nada. Nem de outros lábios, nem de outras bocas, nem de outros corpos.” Ninguém está muito preocupado com o que o resto do mundo vai pensar. Ou com o resto do mundo, mesmo. Por isso, é um amor duro. É um amor que se perdeu nos pensamentos. Que dói. E que mata. Sem nem ver, sem nem sentir.