“Grotescamente afetado”, este é o veredicto do crítico Fabio Silvestre Cardoso em resenha publicada na página 10 da edição 88 (agosto) do Rascunho sobre meu livro A inevitável história de Letícia Diniz, que aborda o universo das travestis. Coincidência ou não, é a mesma forma preconceituosa como a sociedade oficial, por desinformação, as enxerga: como seres grotescos e afetados. Aliás, é bom lembrar que “grotesco” é aquilo que suscita riso ou escárnio, aquilo que é ridículo.
A resenha critica, também, “descrições que primam pela sordidez, mas carecem de riqueza literária”, evoca Nelson Rodrigues por antítese, e reitera que, em meu livro, o grotesco deixa de ser adorno e vira substância.
Ao contrário de Nelson Rodrigues, devo apontar que não escrevi um livro sobre a classe média suburbana carioca, e, sim, sobre o segmento mais marginalizado da sociedade, onde a “sordidez” e o “grotesco” não usam máscaras ou disfarces, nem se escondem nas camadas reprimidas da psique. No universo das travestis, tudo é explícito, cru, primitivo e desprovido de meias palavras. Os símbolos se tornam matéria bruta, objetos, realidade em sua acepção mais palpável. Como escreveu Jung, até o pênis é um símbolo fálico, indicando a natureza simbólica do próprio “real”. A linguagem do livro obedece estritamente a essa lógica, e não poderia ser de outra maneira, já que é o conteúdo que engendra a forma. Ao reclamar por algo simbólico que ultrapasse “a mera identidade visual”, o crítico não percebe que o explícito, o não poético e o brutalmente cru são precisamente símbolos-chave do universo retratado. E ao rejeitar esta crueza, a “linguagem chula”, e desejar algo mais palatável e apropriado aos cânones literários aos quais está acostumado, o crítico escancara sua aversão ao próprio tema do livro, deixando escapar, de forma suspeita, que parece “fabricado por um material de segunda”.
Sim, senhor crítico. O senhor tem toda razão. Tudo no universo das travestis é feito de material de segunda, de quinta, de décima categoria, pois é somente o que lhes resta como resultado final da equação social que conjuga intolerância e desinformação. São indivíduos que nascem com algo que a ciência médica chama hoje de “disforia de gênero”, uma incompatibilidade congênita entre o gênero cerebral e o gênero genital. E como é impossível alterar a identidade subjetiva, esses indivíduos são obrigados — por uma questão existencial e não meramente fetichista — a adequar seus corpos através da administração de hormônios femininos, plásticas e silicone.
Sofrer de disforia de gênero no Brasil implica ser expulso de casa ainda criança por pais intolerantes, abandonar o colégio para fugir de humilhações e violências, não encontrar acolhida no mercado de trabalho e ser empurrado, inevitavelmente, como sugere o título do livro, para a prostituição. Nove entre dez travestis jamais pisaram num cinema, não lêem jornais, não assistem a noticiários na tevê e são viciados em desenhos animados, mantendo-se num estágio quase infantilizado. Suas conversas não são nem de longe literárias e giram, quase invariavelmente, sobre estética e uma sexualidade francamente pornográfica, de onde derivam toda sua identidade e auto-estima. A tentativa de reproduzir o comportamento feminino e a herança da estigmatização histórica fazem com que repitam sim, senhor crítico, chavões e bordões, que, como o senhor não pôde também perceber, são símbolos e metáforas de sua própria condição.
A resenha critica, ainda, o fato de alguns personagens “simplesmente desaparecerem como purpurina ao longo da história”, apontando isso como uma falha narrativa, quando, na verdade, mais uma vez, o crítico não se dá conta de que tal fato é, também, emblemático. No próprio livro, Letícia, a protagonista, fala sobre a rotatividade das travestis nas calçadas da Lapa. Travestis que chegam de todas as partes do Brasil e somem com a mesma rapidez, deixando um rastro de histórias fragmentadas e inacabadas. Uma bela imagem poética, acredito.
Destino brutal
Inacreditavelmente, a história de Letícia Diniz não passa, para o crítico, de uma versão malfeita do filme Uma linda mulher, protagonizado pela atriz Julia Roberts. “A saga do travesti pobre e sonhador que atravessa o país em busca de um sonho”, segundo ele. Em busca de um sonho, senhor crítico?! Algum ser humano sonha em nascer com disforia de gênero?! Algum ser humano sonha em ter que transformar radicalmente seu corpo como única forma de encontrar paz de espírito?! Algum ser humano sonha em se tornar algo considerado “grotesco” e viver completamente à margem da sociedade?! Algum ser humano sonha em se tornar profissional do sexo como única opção de sobrevivência, fazendo programas por trinta reais num hotel barato?! Letícia não viaja de Porto Velho para o Rio atrás de um sonho pequeno-burguês, senhor crítico, mas ao encontro do destino brutal e inevitável que aguarda todos aqueles que, como ela, ousaram trilhar o mesmo caminho maldito. Sua fantasia de encontrar um príncipe encantado, alguém para amar — o que a humaniza e a aproxima de todos nós —, esbarra numa estrutura social cruel, que negará a ela esse direito até o último minuto de sua vida. A comparação patética com Uma linda mulher demonstra a total falta de sensibilidade do crítico quanto ao contexto específico e extraordinário em que a história de Letícia Diniz se desenrola. Uma visão superficial, pequena, e, por que não dizer, desrespeitosa.
Esta é a primeira vez que respondo a uma crítica, seja de uma peça de teatro ou de um filme meu. Sabia de antemão que este meu primeiro romance poderia esbarrar em preconceitos, não só com relação ao tema abordado, mas também quanto ao que os críticos consideram boa literatura. E decidi, também de antemão, que responderia a qualquer tipo de ataque desse gênero. A resenha de meu livro publicada por este jornal é um lamentável déjà vu de chavões acadêmicos, um desfile de preconceitos camuflados e o resultado de uma visão claramente conservadora e moralista.
Minha intenção com A inevitável história de Letícia Diniz foi trazer o grande público para dentro de uma realidade completamente desconhecida, de forma que os leitores pudessem mergulhar nas vidas das personagens feito voyeurs, identificando nelas a mesma humanidade compartilhada, e experimentando, por empatia, uma radical e necessária mudança de perspectiva.
Pois a cada dia, a história de Letícia e suas colegas se repete na vida real, como conseqüência do preconceito silencioso de todos nós. A cada dia, “Letícias” tomam ônibus nas partes mais remotas do país e desembarcam no Rio e em São Paulo para se prostituir, como única forma de sobrevivência. Ao contrário de Julia Roberts, elas não conquistam um Richard Gere no final do filme. Nessas histórias recorrentes elas morrem cedo, se atiram de janelas e envelhecem sozinhas como cidadãs de quinta categoria…
A inevitável história de Letícia Diniz tem tocado profundamente muitas pessoas. Trata-se de um projeto audacioso, que foge dos confortáveis e seguros lugares-comuns da literatura, bancado por uma das editoras mais conceituadas e tradicionais do país [a Nova Fronteira], e que, por sua contundência e originalidade, ganhará também as telas do cinema com um elenco de grandes atores. Espero que os leitores deste jornal dêem ao livro uma chance e tirem suas próprias conclusões.