Como Rugendas, o pintor-viajante do século 19, César Aira é um artista prolífico, segundo os críticos. Com mais de 30 livros publicados, é considerado um dos escritores mais criativos da América Latina no momento. É polêmico em sua produção que, além de romances, engloba traduções, ensaios críticos e dramaturgia. Sua obra é publicada pelo mundo, com apenas quatro livros traduzidos no Brasil. Seu romance Um acontecimento na vida do pintor-viajante é uma narrativa voltada para a discussão da íntima relação da arte com a realidade, seus absurdos, abismos e complexidades. Inicia-se como uma narrativa biográfica, estabelecendo o contexto histórico no qual vivera o protagonista Johan Moritz Rugendas. Rapidamente, a trama começa a enfocar o pintor-viajante em suas compulsões, sonhos e aventuras. As tintas e os pincéis do narrador, ao acompanhar o olhar artístico do pintor, desenham um ambiente físico, natural e humano através de imagens surpreendentes. Configura-se, aí, uma história que perde seu atributo exclusivo de testemunho e ganha estatuto de ficcionalidade, num registro do que poderia ter sido.
A viagem de Rugendas à Argentina e, em especial, aos Pampas apresenta-se como a realização de um sonho secreto, tão secreto que não há registros biográficos sobre isso. É uma das gratas surpresas que encontramos na construção da trama e que amplia a perspectiva da “viagem”, esticando seus sentidos. Arrasta para o desconhecido e fascinante Mundo Novo muito mais do que os próprios personagens: narrador e leitores são seduzidos e conduzidos pelos viajantes. São “as imagens que nos permitem imaginar o passado de forma mais vívida”, segundo Peter Burke. Passado e presente narrativo são construídos a partir dessas imagens, tanto do ponto de vista do pintor, quanto do escritor do romance. É isso que garante a viagem do leitor por esses abismos da imaginação e da história. As imagens deixadas nas pinturas dos artistas viajantes ajudaram a criar uma profusão de relatos no percurso da história ocidental, a construção de imaginários sociais, de identidades nacionais e de identificações pessoais que até hoje são atualizadas em novos relatos e novas cores, “num jogo de repetições, na combinatória” de velhos e novos elementos.
“E o condor planava sobre os abismos. Os abismos tinham por sua vez, seus próprios abismos…” Assim vai se desenvolvendo o romance, paradoxalmente, ao mesmo tempo que é complexo, vem carregado de simplicidade, como a pintura de Rugendas: “a simplicidade envolvia tudo em seus quadros, tornava a obra atraente e lhe dava a luz de um dia de primavera…” Sobre a descrição do fazer artístico do pintor, estabelece-se a reflexão do próprio fazer poético do escritor. Este se coloca também “no centro do impossível… onde apareceria algo que desafiaria o seu lápis…” para criação de novos recursos e rumos para a ação. O mesmo procedimento pode ser observado em As noites de Flores que se inicia com um pacato casal vendendo pizzas em domicílio à noite, pela cidade. Da simplicidade quase entediante dos fatos cotidianos e repetitivos de cada noite, vão se descortinando novos aspectos que desviam a fluência do texto no desafio do lápis, que se nega ao óbvio. Seqüestros, crimes, assassinatos e criaturas estranhas ou monstruosas passam a movimentar a trama e dar novos sentidos que, por seus excessos, lançam a narrativa, muitas vezes, ao absurdo.
Um acontecimento na vida de Rugendas, também não registrado em suas biografias, é um ponto nefrálgico da ação, ou portal de entrada para nova etapa da vida e obra do personagem. Este e o seu cavalo tornam-se “sobreviventes da eletricidade”, depois de quase fulminados por um raio, no meio de uma imprevista tempestade. O corpo ferido, o rosto esfacelado e os nervos expostos à dor e aos olhares curiosos não impedem o pintor de continuar intensificando suas obsessões, perseguindo terremotos e desejando secretamente topar, testemunhar e pintar, de perto, exóticos ataques indígenas.
“Viagem e pintura se entrelaçam como numa corda”, afirma o narrador sobre o trabalho de Rugendas. Viagem, pintura e escrita se entrelaçam e formam esse tecido romanesco. Desertos, ruídos e precipícios acompanham o viajante em sua grande marcha “vigiada por cumes de mica. Como tornar verossímeis esses panoramas? Havia lados demais, sobravam faces ao cubo… Havia grandes entornos de crepúsculo ótico que o silêncio esticava”.
Ao relatar as dificuldades enfrentadas pelo pintor na busca incansável de verossimilhança para uma realidade, por si mesma, inacreditável para o olhar do viajante europeu, o sujeito narrador enfrenta seus próprios desafios de escritor. É preciso traçar um discurso de aparente nonsense, dado não pela falta de sentidos, mas por seus excessos. Razão e delírios, luz e sombra, ruídos e silêncios, cautela e ousadia, realidade e ficção conduzem a perspectivas múltiplas e ricas, mas conflitantes. “Era um equilíbrio delicado, equivalente ao procedimento artístico que praticavam”…, Rugendas, Krause, amigo e parceiro, e o próprio escritor-narrador.