Romance-Folhetim: Poeira: demônios e maldições (11)

Capítulo 11 do folhetim "Poeira: demônios e maldições", de Nelson de Oliveira
Ilkustração: Tereza Yamashita
01/09/2007

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Desceram. Dois vultos gingando num verdadeiro teatro de sombras.

Na cozinha Estela designou funções, definiu rapidamente o cardápio dessa noite, deu três ou quatro ordens diretas, do tipo: lavem bem os tomates, não exagerem na maionese, não deixem o fogo muito alto durante o cozimento do cação, e saiu.

O visitante já a esperava na rua.

Por que não pegamos o telescópio?, ele sugeriu.

Hoje não. Hoje a noite não vai ser das melhores. O céu está muito nublado.

O céu não está tão nublado assim. Creio que hoje teremos uma das noites mais belas do verão.

Saíram do beco estreito e entraram numa rua bastante iluminada, cheia de ruídos, cor e vida.

Porém, para quebrar um pouco a expectativa, a calçada estava excepcionalmente suja.

Suja e cheirando mal, muito mal.

Um bando de maltrapilhos havia se estabelecido numa das esquinas próximas, improvisando uma barraca apertadíssima com sobras de sacos de lixo, pedaços de cabos de vassoura e restos de caixas de papelão.

Eram cinco, em torno de uma fogueira mixuruca, ai ai, uma fogueirinha de meia-tigela plantada entre algumas pedras, ai ai, no meio de um punhado de tijolos quebrados aí dispostos de forma displicente e parcialmente escurecidos pelo calor e pela fumaça.

Cinco vagabundos mal-cheirosos com cara de poucos amigos.

Vamos desviar. Odeio essa gente.

Estela realmente os odiava.

Esperaram um pouco e, quando o trânsito diminuiu, atravessaram rápido a rua.

Mas esse expediente não os deixou a salvo, pelo menos não totalmente.

A rua era tão estreita que mesmo daí, do outro lado, era difícil fingir que não se importavam com essa gente. Vagabundos. Era muito difícil até mesmo — coisa tão trivial! — tentar removê-los do seu campo de visão.

Havia um velho gordo, ai ai, extremamente roliço e flácido, dono de um olho bom e de outro afetado por um glaucoma, um velho calvo, imundo, usando apenas um macacão encardido repleto de furos.

Seu cheiro era o cheiro de um animal acuado.

Que pensamentos estariam sacudindo as molas desse cérebro vadio?

Enquanto andava, Estela parecia se perguntar isso.

Que pensamentos…

O velho olhava o movimento na rua como se acompanhasse, com o olho bom, as gotas d’água que respingavam de uma cachoeira admirável.

Com o olho ruim, enrijecido, ele observava alguma coisa azul, alguma coisa multifacetada, espantosa e ondulante, dançando na sua frente.

Sem mais nem menos ele fez alguns gestos na sua direção e a coisa imediatamente desapareceu.

Então ele ficou muito sério.

Quando seus olhos já estavam prestes a baixar, pra sua surpresa outra dessas coisas improváveis, muito parecida com a primeira na cor e no volume, surgiu na sua frente.

Dessa vez ele estava de fato determinado a agarrá-la.

Ele fez então um tremendo esforço nesse sentido, mas terminou caindo do caixote onde estava sentado, provocando um grande estardalhaço.

Havia também duas crianças muito magras, com pequenas cicatrizes no rosto e manchas vermelhas nos braços.

Manchas que elas coçavam de vez em quando, com calma, mas sem nenhum cuidado.

Estela diminuiu o passo a fim de observar o rosto dessas crianças.

Seriam um menino e uma menina? Dois meninos? Duas meninas?

Não dava pra saber.

Não possuíam identidade própria, não possuíam sexo definido, não possuíam nenhum traço que as distinguissem dos anjos.

Não, nada.

Apenas olhavam, com olhos de espanto, o vazio existente dentro da fogueira.

Sim, olhavam o vazio como quem olha o infinito pela primeira vez: estáticos, estupidificados, sonolentos, sem entender patavina.

As crianças estavam em pé e não pareciam nem um pouco cansadas.

Também não possuíam brilho algum na superfície lisa das pupilas.

E havia, além delas, uma mulher também muito gorda, incomensurável, sentada numa caixa de madeira, usando os restos do que fora antes um vestido muito bonito, justíssimo, azul, como o vestido que Estela estava usando, porém com um ou outro detalhe em preto.

Os peitos da mulher, Estela logo notou, eram enormes e flácidos.

Na verdade não tinham uma forma definida. Soltos dentro do vestido, pareciam querer ocupar todos os espaços existentes entre o pescoço e o umbigo.

E havia também uma figura menos imponente, mais esquálida do que as outras: um velhote de mais de noventa anos — ou seria, parecido com o que ocorria com as duas crianças, uma velhota? — curvado sobre si mesmo, a cabeça tocando os joelhos, o corpo enrolado como se fosse a casca de um caracol.

Seus olhos eram fundos e invisíveis. A pele do rosto era enrugada, escura e escamosa.

Uns poucos fios de cabelo, grossos e sem direção definida, ainda despontavam da sua cabeça e do queixo.

Uma camiseta rasgada em vários pontos, uma bermuda muitos números acima do seu e um par de sandálias quase sem sola, todos os três itens na certa encontrados no lixo, eram tudo o que ele usava.

Mas ele vestia a camiseta e a bermuda com nobreza, como se vestisse a túnica de um imperador.

Enrolado sobre o próprio mutismo, diante da fogueira o velhote não se mexia, não gesticulava, não dizia nada aos companheiros.

Seu corpo quase sem vida se confundia com os dois sacos grandes e pesados, cheios de coisas catadas aqui e ali, por ora encostados na parede.

Também ele era, ah era sim, apenas mais um grande saco de bobagens catadas na rua.

Estela e o visitante tentaram passar pelo grupo olhando sempre em frente, sem mover a cabeça ou os olhos.

Tentaram.

Ele em nenhum instante se afastou dessa determinação.

Mas ela, o braço esquerdo roçando o braço direito dele, caminhava sem perder de vista o ajuntamento de maltrapilhos, observando-o com o rabo do olho.

Cinco figurinhas grotescas em torno de um pequeno incêndio. Cada uma delas, também um pequeno incêndio.

Para sobreviver, os cinco catavam papel na rua.

Recebiam em média vinte centavos por quilo.

Agora, no entanto, já não havia mais nenhum papel a ser catado. Nada.

De fato ninguém mais joga papel fora. Nem uma folha sequer. Ninguém.

Não adianta revirar o lixo.

Não há mais nenhum papel.

Exceto dentro das caixas cuidadosamente dispostas aqui e ali, ao longo das duas calçadas. Exceto dentro dessas caixas protegidas da chuva e da poluição, todas cheias, abarrotadas de livros.

Muito papel mesmo.

Mas não para os vagabundos.

Estela e o visitante passaram por eles. Quase de braços dados, enquanto andavam cada qual sustentava, oculta, uma forma particular de medo e asco.

Como é horrível parecer com os vermes, ela pensou, na verdade querendo dizer a si mesma, como é horrível ter de conviver com essa gente que se parece com os vermes, que procria como as lombrigas durante as noites úmidas, que se movimenta como as minhocas, fazendo ondas de contração muscular ao longo do seu corpo, ai ai, como é horrível ter de dividir a porra de uma calçada com essa gente.

Que força misteriosa era essa que, apesar de tudo, os impulsionava para frente, sempre para frente, mantendo-os aquecidos, pulsantes, sempre dentro dos contornos da vida?

Havia um brilho esquisito, pusilânime, nos olhos da mulher gorda de tetas inchadas e disformes.

Esse brilho, semelhante a uma bolacha mergulhada numa xícara de chá, fez Estela imediatamente lembrar dessa mulher. Estela a conhecia!

Lembrou das poucas vezes em que tinha dado a ela as sobras de comida, e da maneira como esse olhar morto, de oceano infindável, chamara sua atenção mais do que qualquer outra coisa nela, mais até do que as tetas.

O olhar: um vagalhão azul, branco, prata, ricocheteando nas pedras negras e pontiagudas de uma encosta hipotética, impulsionado pelo movimento simultâneo da Terra e da lua, ora concordantes, ora totalmente contrários.

Um vagalhão silencioso, uníssono, se chocando contra o vento mais violento do litoral, modificando palavras e imagens, alterando todos os fatos vividos e sonhados.

Dera a ela as sobras de comida, mas nunca recebera ao menos uma palavra de agradecimento.

Nunca.

Então parou de ser caridosa e benevolente.

Nada de comida.

Definitivamente, não.

A mulher velha e gorda, por seu turno, não voltou mais, na certa mudou de bairro, engordou mais ainda, fez novos amigos e novos inimigos nos pontos mais afastados da cidade, ficou um pouco mais velha, um pouco mais cansada, gorda e encurvada, perdeu um pouco do cabelo e do viço, as ondas dos seus olhos se tornaram mais perigosas e profundas, deixou de encarar as pessoas de frente, com medo de que percebessem, caso continuasse a servir de espelho, a existência de um abismo frio e desconexo dentro de si mesmas, deixou de catar papel na rua, não voltou mais a sonhar ou a falar, passou a andar com esse grupo de estranhos e a não se incomodar mais com a cor embolorada do seu vestido, sempre o mesmo vestido, é sim, todos os dias o mesmo vestido.

Passou também a esquecer as coisas mais importantes da sua vida.

Esqueceu primeiro o bairro onde um dia havia morado. Esqueceu o rosto das pessoas que ainda lá viviam e esqueceu o amarelo vivo que cobria boa parte das paredes da sua antiga casa.

Esqueceu então o próprio nome, a própria idade, a própria identidade.

Esqueceu por fim Estela, a mulher que lhe dava sobras de comida.

47
Novos cochilos. Novos sonhos.

Cada vez que o bibliotecário debruçava no tampo da escrivaninha a madeira parecia mais macia.

Até que vieram avisar o dorminhoco que a antiga história dos livros ilegais estava se repetindo.

Caralho, puta que pariu, merda. Merda dupla, merda tripla. Porra, buceta, cu. Cu duplo, cu triplo. Filhos da puta, viados, cornos. Duplamente cornos, triplamente cornos.

Déjà vu?

Déjà vu?!

Não.

Não era déjà vu.

Estava mesmo acontecendo novamente. E agora bem debaixo do seu nariz.

48
Jacira, gritou uma voz fina e nasalada.

Jacira, gritou em seguida uma voz cavernosa.

Jacira não estava na sala.

Jacira, repetiu a mesma voz cavernosa agora perceptivelmente mais irritada.

Ninguém respondeu.

Jacira estava no banheiro, urinando e pensando na vida. Por isso não ouviu quando primeiro um dos office-boys e depois o bibliotecário chamaram seu nome no início da escada, no corredor, no saguão, na porta de entrada, aqui e acolá.

Jacira, gritavam eles cada vez mais alto.

Jacira tinha de se apresentar imediatamente ao seu superior. I, me, dia, ta, men, te.

Isso porque num canto do amplo escritório agora com janelas haviam encontrado, atrás de várias pilhas de dicionários aguardando a hora de ser transferidos para uma das bibliotecas recém-construídas, dez caixas de papelão, isso mesmo, dez caixas de mais ou menos um metro de altura por dois de largura e um de profundidade cada uma, contendo cada caixa uma centena de livros novos, não catalogados.

Mas Jacira não apareceu.

O bibliotecário, irritadíssimo, com dor no estômago, abriu caminho de maneira rude, sacudindo-se todo, furando a parede de assistentes que se formara em frente às caixas, empurrando, socando, xingando.

Os assistentes, diante dos empurrões e dos palavrões, não reagiram, não se mexeram. Se comportaram como bonecos de borracha. Cada qual apenas deixou o corpo pender um pouquinho para trás, pra logo em seguida, toiiim, voltar ao normal.

Não, não era déjà vu.

Eram mesmo dez novas caixas.

Onde meia hora antes não existia nada mais além de grossos e empoeirados volumes do Aurélio, do Michaelis, do Houaiss, do Caldas Aulete, do Laudelino Freire, havia agora, espremidas entre eles e espremendo uns contra os outros, dez caixas estufadas de livros novos.

Um dos assistentes, um rapaz de uns vinte anos, ao ser empurrado tropeçou numa pilha de apostilas não muito alta e caiu sentado, as pernas abertas, desfazendo a arrumação na qual havia tropeçado.

O bibliotecário estava acabrunhado.

Suas mãos suavam. Seus pés suavam.

Até mesmo sua respiração estava um pouco mais acelerada do que o normal.

Esperavam dele, todos nesse cômodo, uma reação à altura do cargo que ocupava. Esperavam a reação de um verdadeiro líder. Ele era o chefe, não era?

Enquanto isso o bibliotecário rangia os dentes.

Rangia-os sem ao menos perceber que agindo assim suas mandíbulas de vez em quando pressionavam os nervos da face. Rangia-os sem sequer se dar conta de que o zunido nos ouvidos e a leve tontura que sentia tinham origem nesse ato involuntário.

Aí estavam as caixas.

Que fazer?, perguntava-se ele, as bochechas em fogo, mais envergonhado do que furioso.

Envergonhado porque não sabia qual atitude tomar, enquanto todos aí esperavam da sua parte um gesto decisivo, heróico, magistral.

Que fazer, meu Deus?

Apreensivos, os assistentes foram deixando de opor resistência e se afastando um a um, abrindo espontaneamente mais espaço para o chefe.

Nenhum deles teve coragem de arrancar a fita crepe que vedava a parte superior das caixas, pois apesar do lacre sabiam muito bem qual era o seu conteúdo.

Houve um princípio de tumulto quando o bibliotecário, já no auge de sua irritação, passou a questionar todos os presentes sobre a origem das caixas.

Ninguém havia visto nada de suspeito durante o expediente. Ninguém havia ouvido nada também.

Jacira, gritou o bibliotecário.

A mulher voltava às pressas do banheiro, ajeitando o cabelo, já intuindo o motivo dessa inesperada agitação no canto da imensa sala.

Um absurdo, ele resmungou segurando a mulher pelo braço, trazendo-a para bem perto das caixas, fazendo-a tocar no papelão, quase esfregando seu nariz na superfície lisa e marrom da embalagem mais próxima. Um absurdo.

Jacira estava pálida, completamente sem cor.

Não, de novo não, ah, inferno.

A mulher estava trêmula e quase perdendo os sentidos de tanto medo.

Queria responder, mas apesar do esforço sua voz não se formava nem nas cordas vocais nem em parte alguma.

Era ela a responsável pelo incidente? Nada entrava ou saía dessa repartição sem que ela soubesse, sem que tomasse nota. Nada, sem que um cartão, uma papeleta, um formulário, um protocolo, uma ordem de transferência fosse mais cedo ou mais tarde preenchida.

Absolutamente nada.

Nem um clipe conseguiria se deslocar de uma mesa para a outra sem que ela tomasse conhecimento disso, sem uma menção na sua agenda.

Um absurdo.

Nada.

Pelo menos não no mundo real.

Mas o mundo real parecia ter se desmanchado no ar.

Agora só havia esse aí. Irreal, estranho, recorrente.

O bibliotecário, com o auxílio de um punhal sem fio pego em cima da mesa, usado tão-só para abrir envelopes, estraçalhou a face superior da primeira caixa, arrebentando a fita crepe, rasgando e arrancando as duas abas antes dobradas.

Nacos e serpentinas de papelão voaram pra todos os lados.

Alguns livros tiveram a capa e as primeiras folhas perfuradas, devido à impetuosidade do movimento de vaivém do punhal.

Como você me explica isto aqui?, gritou o bibliotecário segurando firmemente o pulso de Jacira e apontando com a cabeça o conteúdo da embalagem.

Ela, agora também enfurecida, se libertou com um safanão. Ninguém lhe dirigia a palavra dessa forma, foi o que gritou. Ninguém.

Nem mesmo meu marido, está entendendo?

O bibliotecário, completamente desnorteado, andou pra lá e pra cá dentro da pequena multidão, coçou a cabeça quase completamente calva, balançou mais uma vez a pança e parou na frente das caixas.

Duas rodelas de suor cresciam nas suas costas, manchando a camisa.

Como você me explica isto aqui?, perguntou mais uma vez para a mulher, mas agora sem segurar em parte alguma do seu corpo mirrado.

Jacira não sabia o que responder.

Seus dedos longos e finos alisavam-se nervosamente sem parar, e isso irritou ainda mais o bibliotecário.

Eu não disse que não queria mais ver a senhora fora desta sala? Eu não disse?! A senhora não entendeu? Seu lugar é aqui, não no corredor, não no banheiro, não no cu do mundo. Que merda. A senhora é paga pra manter sua bunda naquela cadeira, não em outro lugar. Eu não disse que não queria mais ver a senhora zanzando por aí? Eu não disse?! A senhora não entendeu? De que adianta ter uma funcionária exclusivamente para as formalidades de entrada e saída se, compreende?, a todo momento fazem e desfazem do que está aqui dentro? De que adianta? Mexem e remexem ao bel-prazer, fuçam em tudo o que está aqui. Que merda.

Seguiu-se uma furiosa discussão.

Jacira não sabia o que responder.

Seus dedos continuavam a se alisar nervosa e incessantemente.

O senhor não tem o direito de falar comigo dessa maneira, seu Frederico. Está me entendendo? Nem mesmo meu marido fala comigo assim, seu Frederico.

O bibliotecário avaliou o peso das caixas.

Um homem sozinho, por mais forte que fosse, não conseguiria transportá-las com tanta facilidade a ponto de não ser visto entrando e saindo.

Seriam necessários no mínimo dez. Ou quinze.

Mas como quinze estranhos fariam pra entrar nesse escritório sem ser vistos?

E por onde? Pela janela? Mas sem chamar a atenção?!

Não sabemos, seu Frederico. Ninguém viu acontecer nada de anormal hoje. O senhor sabe, só nós temos permissão pra circular neste andar. Pra dizer a verdade há anos que ninguém entra neste prédio, quero dizer, ninguém que não trabalhe aqui.

Ah, é?! E a outra caixa? Já esqueceram da outra caixa?

A sala era abafada e fedorenta. O bibliotecário não suportava mais trabalhar num cômodo tão opressivo. Apesar das janelas, a sala sempre seria abafada e fedorenta.

Sempre.

Merda.

As únicas entradas possíveis, além das janelas da sala, eram duas: a janela do escritório em frente, no outro extremo do corredor, transformado em mais um depósito de livros — janela esta quase encostada na janela do prédio vizinho, separada daquela por pouco mais de um metro de espaço vazio —, e a escada que levava ao hall, posicionada entre os dois escritórios.

O bibliotecário, depois de verificar pessoalmente as duas entradas, chegou à conclusão de que nenhum estranho poderia ter entrado na sua sala sem que os outros tivessem percebido.

Imediatamente concluiu que apenas alguém de dentro, aproveitando a distração dos demais, poderia ter entrado com as caixas sem chamar a atenção.

De repente todos se tornaram suspeitos.

Teve início um novo bate-boca. Cada um dos presentes passou a acusar os demais, usando como indícios e provas irrefutáveis os fatos mais corriqueiros, os gestos mais banais observados no dia-a-dia do escritório.

Uma maneira diferente de dobrar um formulário.

Uma caneta azul posta ao lado das canetas vermelhas.

Uma pasta arquivada no armário errado.

Tudo isso era evidência de um crime grave, tudo isso era motivo para acusar alguém.

O bibliotecário saiu da roda agitada que havia se formado ao seu redor e, atravessando o corredor escuro, entrou na sala entupida de livros, sala que ele não visitava fazia meses.

Foi até a janela.

Estava trancada com um cadeado enferrujado, podre, travado. Não havia nele nenhum sinal de arrombamento.

Merda.

Limpou o vidro empoeirado com a palma da mão.

Estranho.

Déjà vu? Não podia ser.

Anoitecia e um amontoado de gente vinda de todas as direções começava a se formar na rua, embaixo dos postes, ao lado da pichação na parede, ao lado da velha pichação sempre renovada por mãos invisíveis:

TEMOS ABSOLUTA VOCAÇÃO PARA O MAL
Um amontoado de gente cheia de tiques.

Que significa isso?

Não lhe pareceu ser gente muito amistosa. Traziam correntes, pedaços de pau e porretes improvisados.

Deixavam suas bicicletas em qualquer lugar e imediatamente se dirigiam com firmeza, gesticulando muito, para um dos vários focos de reunião.

Frederico aguçou os ouvidos. Que será que esses pilantras estão tramando?

Mas a janela estava lacrada, razão pela qual ele escutava com maior nitidez a voz dos seus próprios funcionários, às suas costas, do que a dessas pessoas na rua.

Desistiu.

Ao voltar à sua sala, retornando da rápida vistoria, viu-se no meio de uma discussão feroz.

Dois assistentes diziam ter visto Jacira chegar quinze minutos adiantada na sexta-feira passada.

Segundo eles, nessa manhã ela trazia uma bolsa de couro um pouco maior do que a bolsa que costumava usar.

Uma bolsa preta.

Jacira, por sua vez, disse ter visto um dos assistentes que a acusavam conversando a altas horas com uma das faxineiras, duas semanas atrás, numa esquina distante dali.

O assistente se defendeu, apontando outro colega de trabalho como sendo a pessoa em questão. Quem estivera com a faxineira na tal esquina havia sido o colega, não ele.

O office-boy contou ter ouvido da boca de um dos assistentes mais velhos da casa, cujo nome ele não iria revelar por nada deste mundo, que a chefe das faxineiras estaria roubando folhas de papel sulfite — folhas em branco! — para sua filha pequena usar na escola, como caderno.

Trouxeram à força a chefe das faxineiras e revistaram sua bolsa.

Nada foi encontrado. Nenhuma folha.

Depois que as acusações individuais chegaram ao fim, pequenos grupos começaram a se formar.

Quatro, cinco funcionários ligados pela súbita camaradagem culpavam em uníssono os desafetos.

Por quinze minutos todos ficaram se difamando, baseando suas acusações em gestos, palavras e acidentes idiotas pegos de surpresa, em fatos destituídos de qualquer valor, em declarações sem pé nem cabeça de pessoas totalmente alheias aos acontecimentos.

Na hora em que os suspeitos mais prováveis passaram a ser os parentes mais distantes de cada um dos funcionários — um tio-avô nascido em Bauru, uma cunhada atualmente morando em São Joaquim da Barra, o cara da cadeira de rodas que vendia paçoca na porta do estádio — o bibliotecário achou que a palhaçada já estava indo longe demais.

Sentou na sua cadeira e tentou se acalmar.

Tirou os óculos. Fechou os olhos e os ouvidos para o mundo.

A queimação no estômago estava ficando insuportável. A velha dor no dedão do pé começava a voltar. Merda.

Quando o único suspeito, na opinião de todos, começou a ganhar a sua silhueta, a sua voz, os seus traços mais distintivos: pança, calvície precoce, flacidez, irritabilidade, enfim, quando o principal criminoso começou a se parecer cada vez mais com ele, Frederico, bibliotecário-chefe nomeado com pompa e circunstância pelo governo federal, nesse momento o novo acusado, com um murro na mesa, pôs fim à história.

Próximos capítulos

O bibliotecário, sua mulher, o visitante e mais seiscentas e sessenta e três pessoas são os novos alvos dos seqüestradores. A fim de evitar a agitação, o pânico e o caos, o governo consegue impedir que a notícia do primeiro seqüestro seja divulgada pela imprensa. A polícia e o exército são postos em alerta, mas, contra o quê ou contra quem, ninguém sabe. Os livros continuam aparecendo em toda parte, e o bibliotecário finalmente flagra quem está espalhando essas novas edições.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho