Feito eu, de Elisa Nazarian, uma poesia quase prosa, uma prosa quase poema de uma qualidade indiscutível. É um livro de poesia. Não chega a ser um livro de poemas, na acepção correta da palavra. São poemas com linguagem de prosa, mas uma narrativa poética que a poesia exige e exigirá sempre. Os poemas estão datados a partir de 1986 até 2007. Sua autora foi anotando coisas ao longo dos anos, com olhos atentos, uma observação especial sobre o que ainda resta do belo num tempo de destruição absoluta de tudo, incluindo valores, ética, postura. O país está destruído. O Brasil é só um arremedo de país. E isso incluiu a literatura também. Mas, felizmente, ainda surgem livros como este de Elisa Nazarian que apenas se propõe a narrar, mas esse “apenas” é que revela a grandeza dessa autora que, sem invenções, deixa que sua palavra se estenda livre, envolvendo as coisas mais simples do mundo: “Quero voltar pra casa,/ pro meu quarto, pra minha cama,/ meu cachorro que me dê uma lambida”. Elisa diz num poema que não houve beleza na sua dor, como se escrevesse um diário poético, de anotações antigas, como se a tirar fotos no seu quintal, como se a colorir uma paisagem que vive por dentro, não por fora. Por isso, se cobre de mormaços e garoa: “…me perco em bromélias,/ me tenho, me sou”. Não há mistério. Elisa Nazarian narra sentimentos: “As vezes me sinto tão perto da loucura, tão reticente/ à margem da razão, que sinto medo”. E o melhor, veja-se a linguagem feminina, a voz da mulher. Nada mais simples do que dizer. Só contar. Só conhecer as palavras. Só ter sensibilidade para conhecê-las.
Visões do medo, de Beth Brait Alvim, é outro livro que deve merecer atenção dos que se interessam por poesia nestes tempos nada poéticos. Poemas de poucas palavras, mas as palavras necessárias para o poema. Beth sabe com o que está lidando, ao contrário do que ocorre na área da poesia, habitada hoje por bandoleiros da palavra fácil. Não. Beth Brait Alvim tem com ela o compromisso de conhecer seu ofício de escrever poemas, de respeitar o poema e a poesia: “uns anjos démodés/ escamoteiam o pó de suas asas/ e as exibem para as pequenas prostitutas/ de lãs calles/ elas/ lacram seus lábios/ calejados de leite/ e escarnecem do desconcerto deles/ comendo as feridas/ do último século/…/”. Beth Brait afirma que a poesia é o embate com sua sombra: “É o deboche já que não vale a pena. Poesia são meus urros amordaçados em estilo, meus desejos associais à mesa dos almoços de domingo”. Ela deixa que as imagens cresçam dentro da palavra e tece o poema com a convicção de um monge. Resumindo: é uma poeta séria. As mulheres ainda salvarão o mundo, quem sabe possam também salvar a poesia brasileira do quadro melancólico atual: “o poste ainda espera um bêbado/ que tropece um tango/ vocifere Rimbaud/ ou exorcize Anais/ não é fácil em nossos dias sorver/ em taças de cristal luas de/ celofane como se fossem hóstias”. Como diz num poema, “o real é mera poesia”. Talvez seja isso mesmo. O real áspero. O real mais ferimento que a própria realidade. Ou como explica: “Poesia é ficar bêbada e perder o último metrô na Republique. Cochilar na Saint Sulpice. Não morrer. Morrer”.
Luas de Júpiter, de Beatriz Amaral, revela, antes de tudo, um olhar poético especial. Beatriz, promotora de Justiça em São Paulo, é autora de oito livros em que, desde 1980, percorre as palavras na elaboração de poemas cada vez mais claros à poesia. É uma questão de ofício e seriedade: “Escrevo poesia porque as palavras me habitam e pedem voz. A poesia é um modo de construir e reconstruir o mundo e o verbo. É um exercício contínuo de invenção e descoberta, reflexão e crítica”. Os dois primeiros versos do poema Ficção revelam esse universo: “escrevo a palavra areia/ no abrigo da ampulheta”. Ou esta quase prece, em Valladolid: “Valladolid, Valladolid,/ por que me vens de novo?/ por que roubar de Cronos/ a invenção do tempo?”. Beatriz afirma que “poesia é música, ritmo, espaço de dissidência e dissonância, transmutação de sentidos”. Assegura que o poeta lê o mundo e o refaz, já que — como diz — o olhar do poeta é um filtro, antena e farol: “Poesia é um modo de arejar e irrigar o universo da linguagem. É a palavra em sua singularidade plena. Percurso e deslimite. É o aprendizado do estranhamento. Leitura do universo em brasas”. Beatriz Amaral vem construindo uma obra poética marcante. As palavras se fazem. O poema se faz. Eis o início de Teorema: “o tempo do poema/ é um círculo de fogo/ que os mitos visitam/ à noite/ e as salamandras em fila/ designam /…/”. Ela sabe o que faz. E será sempre preciso saber, para o bem da poesia, para o bem do poema. Beatriz segue seu próprio lema poético: “Poesia: sopro de invenção e abertura no coração da palavra”.
Por fim, Lina Tâmega Peixoto, com o livro Água polida, uma poesia nobre, digna. Mineira de Cataguases, foi professora na Universidade de Brasília, lecionando Teoria Literária e Língua Portuguesa: “Com água polida lavo meus versos”, escreve no poema que dá título ao livro. Acrescenta: “Engendro ruídos do acaso, labirinto de mitos,/ geografia da carne, remendos da infância”. Esta mulher sabe onde caminha, embora os tempos sejam de escuridão. Como poeta diz: “Se o poema se abandona,/ torto e sujo,/ ao olhar que o estilhaça em sombra/ apanho delicado e lavo seus ossos de anjos”. Uma poesia de grandeza, no que diz, na sua construção como poema, na elaboração da palavra. Na primeira página, Lina comunica ao seu leitor: “Escrevo para refazer/ e renovar/ em mim/ o flanco aberto e exposto/ da palavra/ que se deita junto a outra”. É um alento saber que ainda existem poetas assim no Brasil. Poetas que cultivam a palavra como exigência vital para a existência do poema e da poesia. Lina Tâmega Peixoto, autora de muitos livros, tem uma trajetória marcante ao longo dos anos, fazendo da poesia seu ofício de viver: “Quando escrevo, deixo de fora/ o degrau das palavras./ A qualquer instante, se apanham/ as forradas de papel e porcelana/ e as que resplandecem os dedos/ quando tocadas em seus colares”. Num dos poemas, Lina faz seu retrato: “Estou saciada de tudo,/ tão plena de tudo/ que me corrompo com sabedoria/ para abrir vazios no amor e pranto/ na humilde graça e riso”. Escrevendo sobre o livro Entretempo, Carlos Drummond de Andrade disse sobre Lina: “Você deu uma tocante medida de sua alma e de sua capacidade de ver o mundo”. As palavras de Drummond sobre a poesia de Lina Tâmega Peixoto continuam mais vivas que nunca.