O Brasil é uma terra de migrantes. Sejam estrangeiros, sejam brasileiros, que saem de seus estados de origem, há sempre, em todas as partes de nosso País, um grande número de pessoas que vive longe de seus locais de origem. São tantas histórias diferentes, únicas e singulares, que parece não haver fim a quantidade de relatos que se pode contar a respeito dessas bravas pessoas. São relatos de gente corajosa, que decidiu recomeçar uma vida em terras desconhecidas; em alguns casos em terras onde a sua língua não seria falada, onde não havia estrutura alguma e tudo o que poderia haver, quando muito, era o apoio dos vizinhos que compartilhavam do mesmo destino. Claro, as motivações de cada migrante podem variar, menos a vontade de ter uma vida melhor.
Assim, temos em A travessia da terra vermelha —– Uma saga dos refugiados judeus no Brasil, de Lucius de Mello, e A cidade de Alfredo Souza, de José Angeli, dois livros completamente diferentes entre si, seja em conteúdo, seja em temática, seja em estilo, mas que trazem em seu cerne o desejo primordial de todo migrante — o de construir uma vida nova e melhor que aquela deixada para trás em seus locais de origem.
Em A travessia da terra vermelha, podemos ainda contar com um outro assunto muito interessante: a questão dos migrantes judeus, forçados a abandonar a Alemanha quando da ascensão do nazismo (isto é, para aqueles que conseguiram escapar de um destino cruel e conhecido por todos) em uma nova diáspora pelo mundo todo. Mais pertinente ainda é o livro de Lucius de Mello, jornalista e professor da Universidade de São Paulo, por resgatar uma história pouco conhecida e certamente pouco popular.
Primeiro, o conhecimento comum. Rolândia, cidade no Norte do Paraná, próxima a Londrina, possui uma forte imigração alemã. Além de alemães, colonizaram a cidade também italianos e japoneses, todos enviados para lá por companhias de colonização que compravam as terras do governo paranaense em troca da possibilidade de instalar colonos e ocupar assim o território. Estas terras eram revendidas, então, a colonos de diversas nacionalidades. Rolândia acabou tendo uma predominância de colonos de origem alemã, que inclusive batizaram a cidade — Rolândia é uma homenagem a Roland, legendário herói alemão, que na Idade Média guerreava ao lado de seu tio, Carlos Magno.
O que talvez não seja tão popular é que em meados dos anos 30 Rolândia recebeu várias famílias de origem judia, livres dos primeiros anos do nazismo na Alemanha, graças aos esforços de um médico católico. Este médico, chamado no livro de Otto Prussel, conseguiu criar uma operação de triangulação envolvendo empresas na Alemanha e na Inglaterra para conseguir que os judeus usassem seu dinheiro, então bloqueado pelos nazistas, para comprar terras no Norte do Paraná e levar a estrada de ferro até Rolândia. Mello nos conta, com seu trabalho de pesquisa, como era a vida dos judeus em sua nova terra. E, mais interessante ainda, é redescobrir que no interior do Paraná repetia-se, guardadas as devidas proporções e sem o horror que acometeu a Europa da Segunda Guerra, a história de perseguição e discriminação que os judeus enfrentaram na Alemanha.
A descoberta de fatos pouco conhecidos torna A travessia da terra vermelha uma leitura esclarecedora e reveladora, ainda que o estilo escolhido por Mello — o de misturar os diálogos ao texto, meio que tentando remover a individualidade de cada um dos seus personagens, para contar uma história única de todo um grupo de pessoas — possa cansar um pouco. Ficamos assustados, por exemplo, quando vemos uma foto da inauguração da escola alemã de Rolândia em 1935 coberta por bandeiras com a suástica nazista. Ou a foto da poeta Maria Kahle de 1934, discursando para uma platéia que não se vê a partir de um púlpito com uma bandeira nazista. Ou quando vemos um cartaz com a suástica e escrito em bom português “morte aos judeus”.
Para os judeus que foram para Rolândia, reencontrar simpatizantes e seguidores do nazismo tão longe de casa foi muito difícil. E, para piorar as coisas, eles também eram alemães, o que, após o início da participação brasileira na Segunda Guerra, tornou tudo ainda mais difícil. Eles tinham medo dos nazistas alemães e dos fascistas brasileiros, representados por policiais sem instrução alguma, dispostos a fazer as leis antiestrangeiros de Getúlio Vargas serem cumpridas à risca. Assim, eles tiveram de deixar de falar sua língua, enterrar todos os livros escritos em alemão e parar de praticar os ritos de sua religião, enterrando e escondendo os objetos considerados sagrados. Tudo para poder sobreviver de alguma maneira ao período. Particularmente bonito é o trecho em que um dos refugiados comenta, a respeito de sua enorme biblioteca enterrada, que um dia floresceria naquela terra inúmeros frutos de Goethe, Cervantes, Proust e tantos outros autores, que nunca havia sido plantada tanta cultura em lugar algum do mundo, e que um dia os livros dariam frutos e nasceriam da terra.
Há personagens memoráveis em A travessia da terra vermelha. Poucos são os personagens retratados no livro com seu nome verdadeiro — uma estratégia utilizada por Mello para conseguir mais detalhes sobre seu cotidiano. Agathe Fleming, por exemplo, era uma física renomada que poderia ter ido acompanhar seu primo nos Estados Unidos, um proeminente cientista que trabalhou na equipe de Einstein. Por amor, escolheu Rolândia. Nora Naumann foi uma artista que recriou no meio da floresta um espaço para que a cultura alemã nunca morresse. Astrid Dahl impressiona por seu ímpeto sexual, que não perdoou nem irmão nem sobrinho. Charlotte Prustel, apesar de ser a esposa do idealizador do esquema que salvou os judeus de Rolândia, não hesitou em trair o marido com um escocês que por lá apareceu. Otto Prustel, seu esposo, permaneceu sempre subjugado pela esposa, apesar de ser considerado o principal líder da comunidade local. Enfim, todos são personagens memoráveis e conhecer sua história é conhecer um pouco mais a nossa história.
Ampliar fronteiras
Já A cidade de Alfredo Souza, de José Angeli, traz uma história de outro teor. Neste livro, os personagens não fogem perseguidos, mas têm como motivação construir novas vidas, novas cidades, ampliar fronteiras. Eles não procuram um lugar pacífico para viver, mas sim um lugar onde prosperar. Estes migrantes também querem melhorar, mas não têm a lhes motivar a impossibilidade (pelo menos imediata) de regresso ao seu país de origem. De um certo modo, enquanto os judeus de A travessia da terra vermelha trazem junto consigo toda a sua formação cultural, os migrantes de A cidade de Alfredo Souza são brutos, são incultos, levam consigo apenas a força de seus braços para construir o seu futuro.
O personagem do título, Alfredo Souza, é um recenseador do IBGE que, após passar dois anos pesquisando os limites do Brasil próximo à Argentina, retorna ao Rio de Janeiro para descobrir que foi dado como morto em serviço após um ano. Uma grande indenização o faz desistir de reclamar de protestar contra sua morte, e ele retorna para as fronteiras que pesquisou para, meio sem querer, criar uma nova cidade na divisa do Paraná com a Argentina, a cidade de Rio Novo. Cidade já nascida no sangue, fruto de um entrevero entre Souza e uma família de colonos russos.
A partir do primeiro embate, Rio Novo começa a crescer como praticamente todas as cidades do interior do Brasil, sem controle, sem leis, com a chegada de gentes de todo o lugar. À medida que a cidade cresce, vão aumentando os problemas. Não há mulheres suficiente para todos os homens, um risco de conflitos por excesso de hormônios. Não há escola. Não há controle para impedir que os novos chegados invadam e assumam terras que eram consideradas de outra pessoa antes. Como não há leis, chamam-se jagunços para controlar os recém-chegados, usando a lei do mais forte.
José Angeli imprime ao texto um ritmo que se assemelha ao da ocupação da terra. São pessoas que não perdem muito tempo pensando o que fazer, mas fazendo. Assim, um série de capítulos curtos, não maiores que quatro páginas, vão contando como se fossem crônicas a história da ocupação e criação de Rio Novo. Angeli consegue também fazer poesia no meio da mata, como mostra esta passagem do primeiro baile da cidade:
O Maneco da Sanfona abriu o fole, a gaita gritou indefesa, possuída pelas mãos ágeis a percorrer-lhe as costela brancas e sensíveis. Um frêmito deslizou pelos músculos contraídos. A música explode entre os corpos reunidos na sala e foge pelas janelas em cachos brancos e compactos como fumaça. Não há um só milímetro de espaço donde as notas não tenham se amontoado sacudindo-se e saracoteando como micróbios sob o microscópio.
No caso de Rio Novo, a maior parte dos migrantes é de gaúchos. A cidade de Alfredo Souza conta a história de um tipo de imigração que marcou e ainda marca a história de todo um pedaço do Brasil — entre o Oeste de Santa Catarina e Rondônia —, colonizado por gaúchos que foram ampliando a fronteira agrícola para mais longe. Angeli utiliza o linguajar típico do gaúcho de fronteira, uma mistura de português com castelhano, para contar os causos dos colonizadores de Rio Novo. Esta escolha não deixa a narrativa chata ou atrapalhada, pelo contrário, confere autenticidade às histórias que Angeli escolheu para contar a saga de Rio Novo.
Um personagem secundário em ambos os livros, mas de capital importância, é a floresta. Tanto em Rolândia como em Rio Novo, a floresta é ao mesmo tempo salvação e maldição, é fonte de riqueza e de desgraça, pode ser vista como amiga ou como inimiga. No fundo, a floresta é o personagem a ser domado e conquistado pelos migrantes. As histórias dos migrantes, ainda que cada um com suas peculiaridades, são relatos de pessoas que arriscam trocar tudo o que é conhecido para tentar melhorar de vida, de alguma maneira, contrariando todas as possibilidades.