Longe e perto daqui

Ensaios de Paulo Franchetti sobre literatura desvestem-se do peso acadêmico e aproximam o leitor dos autores analisados
Paulo Franchetti, autor de “Estudos de literatura brasileira e portuguesa”
01/10/2007

O ensaísmo universitário vive isolado em linguagens e procedimentos próprios, criando um distanciamento muito grande entre o leitor livre e o leitor cativo da academia. Informações importantíssimas, resultantes de pesquisas sérias, acabam com isso se perdendo na hora da socialização ou ficando restritas a membros do clube. Estilisticamente, a universidade não incorporou as conquistas dos textos criativos por ela analisados, o que faz com que nossos professores escrevam mais no idioma duro dos estudos científicos do que no idioma macio da literatura. Em grande medida, a fruição do ensaio universitário exige certo grau de masoquismo por parte do leitor, obrigado a conviver com termos técnicos plenamente dispensáveis, com frases obscuras que tentam ser profundas e com pedantismos de toda ordem.

Em sentido oposto a tudo isso é que se orienta a reunião de ensaios de Paulo Franchetti — Estudos de literatura brasileira e portuguesa —, obra que alia a pesquisa e o saber acadêmico, um saber maturado, a um senso literário de linguagem. A mente é de ensaísta universitário, mas a mão é do escritor, pois Franchetti, além de ficcionista, é estudioso e praticante do haicai, em cuja tradição deve ter forjado seus meios de expressão. Em nenhum momento, o leitor se sente apequenado por seus estudos, que se deixam fruir ao mesmo tempo que nos informam. Fora do serviço militar obrigatório da leitura escolar, um texto crítico só cumpre sua função quando cria no leitor um apetite pelos autores tratados. A crítica, assim entendida, tem uma função dupla: fazer reflexões que nos mudem a percepção do objeto literário como um todo, e não apenas daqueles em pauta, e criar uma fome nova para os textos analisados.

Em vários momentos, durante a leitura, sentimos a necessidade de ler os autores que Franchetti comenta, trazendo-os para perto de nós não como seres distantes, mas como obras que palpitam numa freqüência próxima da nossa. Assim, seus estudos não são apenas peças críticas, embora muito de crítica as fundamente, mas são também textos formadores de leitores. Eles, no entanto, não se restringem a este caráter, digamos, aliciante.

A segunda qualidade do livro está também numa dupla orientação. O volume trata da literatura brasileira e da portuguesa não como antípodas, mas como vasos comunicantes. Os descompassos entre Portugal e o Brasil se desenham a partir de um impasse de mundividência. Um exemplo eloqüente estaria estampado em Helena, romance inconcluso de Almeida Garret, ambientado no sertão brasileiro. Nesta obra, entra em conflito a visão liberal do autor lusitano e o sistema escravocrata que permite a vida civilizada do europeu. É no confronto com a própria imagem numa fazenda travestida de civilização, mas mantida pela mão-de-obra escrava, que Garret descobre os limites de seu cômodo liberalismo. Daí, conclui Franchetti, o autor não conseguir finalizar o romance, que se inviabiliza ao inviabilizar as idéias do autor. O Brasil, mesmo assim falseado, serve como contraponto crítico que desautoriza as idealizações.

Este Brasil vai adquirindo peso em uma produção que trata, com clareza e contundência de linguagem, dos mitos da terra, muita vez fugindo deles. No ensaio que abre o livro, sobre a formação de nossa poesia, do romantismo ao simbolismo, Franchetti estuda a passagem da linguagem nacionalista para uma linguagem cosmopolita. O Brasil se inventa pela poesia sem deixar de buscar um lugar no discurso internacional. Um processo rápido de maturação de voz da jovem nação, em que a presença portuguesa não é um elemento negativo, mas uma forma de participar da arte ocidental. Por meio dos autores portugueses se define, não raro por contraste, nosso modo de escrever.

Assim, nos primorosos ensaios sobre I-Juca Pirama e Iracema, o autor mostra que há, sob o material indígena, toda uma intenção cosmopolita de arte. Gonçalves Dias faz “poesia americana” se valendo de procedimentos arraigados na tradição portuguesa. E José de Alencar vai além do romance indianista ao tirar da etimologia indígena uma força construtiva nova, que enuncia o Brasil de uma maneira inventiva e não apenas decorativa. Estes autores estão construindo uma língua nova, artificial e por isso literária, evitando assim a concessão ao puro exotismo mimetizado. Mesmo nestes exemplares máximos da brasilidade literária, Franchetti encontra as raízes da metrópole, e valoriza este impulso que não deixa nossa literatura se confundir com uma enunciação passiva do nacional.

União entre os países
É ainda a partir desta conjunção de dois mundos que ele estuda algumas questões da cultura portuguesa, como a obra historiográfica de Oliveira Martins, que redefine Portugal numa clave crítica e numa linguagem literária, influenciando escritores e pensadores brasileiros. Para Oliveira Martins, os grandes continuadores dos impulsos aventureiros dos lusitanos seriam os paulistas com suas entradas e bandeiras. O Brasil funcionando como uma extensão do projeto português, mesmo depois do fim de sua influência direta. A projeção de Oliveira Martins estaria tanto nas idéias de pensadores quanto no estilo extremamente literário do ensaísmo nacional — e o paradigma disso entre nós seria Gilberto Freyre. É a partir das teses de História de Portugal que passamos a definir, modernamente, a nação brasileira. Uma dívida que reforça a união profunda entre as duas pátrias.

Em O primo Basílio, obra lida apenas como representante do naturalismo, Paulo Franchetti encontra um valor que ultrapassa esta escola, propondo-a como o mais importante livro de Eça de Queirós, ao lado, talvez, de A ilustre casa de Ramires. O romance do adultério é antes de mais nada um romance sobre a vida secreta da classe trabalhadora, representada pela doméstica Juliana, uma obra que vai além da questão erótica, embora esta tenha suscitado um debate acalorado no Brasil. A repercussão serviu para ampliar o conceito de arte entre nós, levando nossos autores a se manifestarem sobre as opções de Eça, demarcando assim um território. Não seria incorreto dizer que O primo Basílio, por sua recepção, e pelos embates que provocou, é o livro de Eça mais brasileiro, pois se incorporou à nossa história literária, levando até Machado de Assis a assumir uma postura em relação a ele.

Ao analisar a vasta produção de Camilo Castelo Branco, o ensaísta já tinha valorizado o senso de construção, a aventura metalingüística das novelas, aproximando-as das opções que marcariam a obra do Machado de Assis da maturidade. É como se Machado, numa perspectiva borgiana, fosse o autor das mais bem elaboradas novelas de Camilo, num processo de espelhamento mútuo das duas tradições.

A premissa implícita destes estudos vai assim se delineando para o leitor: não é a pureza do nacional, a fidelidade a um exercício de identidade autóctone, que fermenta uma grande literatura, mas a possibilidade de ultrapassar pela arte as contingências locais. É assim que Franchetti lê, por exemplo, um poeta hoje pouco valorizado, Bernardino Lopes, aceito na sua condição de mulato que fala do mundo rural e rústico, que ele cantou, mas negado quando o autor passou a falsificar artisticamente as suas referências. Independentemente do valor do poeta, o crítico entende que o investimento ficcional, a presença de um outro no eu, é a construção mais legítima em arte.

Esta passagem pelo outro vai ser a marca do português que mais se integrou a uma paisagem exótica, dela tirando os motivos estruturais e temáticos de uma literatura que nem por isso deixou de ser portuguesa. Os ensaios sobre Wenceslau de Moraes são deliciosos, pois nos dão a conhecer um escritor que fez da fuga do país uma forma de exercer uma nacionalidade às avessas. Exilado espontaneamente na China e depois no Japão, Wenceslau colocou em contato duas culturais distantes, retomando, alguns séculos depois, e de forma solitária e um tanto quixotesca, a sina desbravadora de Portugal. Ao aprofundar-se na vivência nipônica, desposando mulheres da terra, que o levaram a assumir um lugar naquela sociedade, ele fazia o elogio da cultura que se torna forte ao incorporar o diferente, mesmo quando exótico.

Desta aventura nipônica na virada do século 19 para o século 20, Paulo Franchetti passa para os estudos do haicai na tradição brasileira, uma aproximação que ocorre como importação européia — e não da fonte direta, por meio da presença japonesa no país. Um sinal a mais de que nossa arte se alimenta dos contatos permanentes com a Europa.

Neste livro, estudam-se os casos lusitanos de interpenetração por meio de um conjunto de textos que promove o diálogo entre a Europa portuguesa e os valores autóctones do Brasil. É significativo o fato de Paulo Franchetti praticamente não se deter no período do Modernismo — há apenas um breve texto sobre Oswald de Andrade e outro sobre Guilherme de Almeida, que tangenciam a questão da ruptura com a literatura lusitana. O ensaísta fecha o volume com a apresentação de uma antologia da poesia brasileira pós-concretismo, que seria publicada em Portugal. Aqui, os autores são escolhidos não por seu valor histórico, mas pela legibilidade das obras. É o ensaio em que Franchetti corre mais riscos, pois apresenta um julgamento da poesia contemporânea, cometendo justiças e injustiças, como acontece em qualquer antologia que se queira mais seletiva. Independentemente do acerto ou não das escolhas, o ensaio é uma aposta em valores centrífugos e uma crítica aos valores centrípetos. A literatura é, segundo esta visão, uma forma de chegar ao eu pela adesão ao outro, um outro que está sempre longe e perto daqui.

É assim que Franchetti entende e valoriza Portugal, como um dos outros possíveis de nossa identidade despersonalizadora.

Estudos de literatura brasileira e portuguesa
Paulo Franchetti
Ateliê
296 págs.
Paulo Franchetti
Professor titular de Teoria Literária na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Publicou, entre outros, Alguns aspectos da teoria da poesia concreta e Nostalgia, exílio e melancolia — leituras de Camilo Pessanha. Como ficcionista, é autor da novela O sangue dos dias transparentes e da antologia Haicai.
Miguel Sanches Neto

É doutor em Letras pela Unicamp, professor associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa (Paraná). Estreou nacionalmente com Chove sobre minha infância (2000), um dos primeiros romances de autoficção da literatura brasileira. Autor de dezenas de livros em vários gêneros, destacam-se os romances Um amor anarquista (2005), A máquina de madeira (2012), A segunda pátria (2015). Acaba de lançar O último endereço de Eça de Queiroz (Companhia das Letras) e sua poesia reunida A ninguém (Patuá). Finalista dos principais prêmios nacionais, recebeu o Prêmio Cruz e Sousa de 2002 e o Binacional de Artes Brasil-Argentina, de 2005.

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