Virginia de bigodes

O dia em que Virginia Woolf passou graxa no rosto, colocou barba e bigode para participar de uma grande farsa
01/10/2007

Na edição do dia 16 de fevereiro de 1910, uma quarta-feira, o The Daily Mirror, de Londres, publicou, na primeira página, a história de uma farsa. Uma atrevida brincadeira, que tinha tudo para dar errado, mas deu certo, e que ficou conhecida como A Farsa de Dreadnought. Seu autor intelectual foi Horace Cole, um rapaz dado a piadas de mau gosto e a bizarrices. Ele era o maior amigo de Adrian Stephen, o irmão caçula de Virginia Woolf.

O alvo foi o H. M. S. Dreadnought, o maior navio de guerra da Marinha Real Britânica. A fotografia que o Daily Mirror estampa no alto de página é famosa. Mostra o príncipe Makalen, imperador da Abissínia, em visita solene ao navio real, escoltado por três nobres membros de sua comitiva, um intérprete alemão e um representante do corpo diplomático. Os três nobres que acompanham o imperador estão identificados como Sanganya, Mandok e Mikael Golen. Sob o turbante, barba postiça e a complicada vestimenta do príncipe Sanganya, está, oprimida pelo medonho disfarce, na verdade, a escritora Virginia Woolf.

O principal biógrafo de Virginia, Quentin Bell, conta que a farsa começou com um comunicado solene. Um amigo de Adrian, Tudor Castle, telegrafou para o comandante-em-chefe da Marinha Britânica, identificando-se como representante do Ministério do Exterior, e anunciando a iminente chegada a Londres do imperador da Abissínia. Sua Majestade estava interessado em visitar o navio. Coube a Anthony Buxton, amigo de Horace, desempenhar o papel de Makalen, o imperador da Abissínia. O próprio Horace, de fraque e cartola, apresentou-se como funcionário do Ministério do Exterior e autor do telegrama.

A Adrian Stephen, o irmão de Virginia, coube o papel de intérprete oficial da comitiva. Guy Ridley, como o príncipe Mandok, e Duncan Grant, como Mikael Golen, completavam o séquito imperial. Dois dias antes da performance, Horace Cole concluiu que precisava de uma comitiva mais numerosa e, às pressas, arriscou-se a convida Virginia Woolf para o papel de príncipe Sanganya. Contrariando as advertências da irmã Vanessa, que se preocupava com sua saúde nervosa, e surpreendendo Horace, ela aceitou o convite com grande entusiasmo.

Quentin Bell assim descreve a trapalhada: “Ninguém tinha a mais vaga idéia de como era um abissínio, muito menos um imperador da Abissínia. Dependiam de umas poucas palavras que podem ter sido em suaíle (língua do povo banto que habita o Zanzibar), da pintura de graxa do Sr. Clarkcson, e de um guarda-roupa muito pouco convincente, talvez destinado a uma apresentação de Il seraglio, para iludir a vigilância da Marinha”. Além da graxa espalhada pelo rosto, para torná-lo moreno, Virginia colocou um turbante oriental, uma barba espessa e bigodes falsos. A célebre fotografia a mostra contrita, de braços cruzados e olhos esbugalhados, provavelmente pelo medo, mas talvez também pela grande excitação.

O objetivo de Adrian Steve, quando embarcou na farsa de Horace, era provocar um primo, William Fisher, comandante da capitânia, a quem odiava, e que seria, por força de sua posição, escalado para recepcionar o imperador. Na chegada de trem a Weymouth, a área de desembarque da gare estava bloqueada pela Marinha e soldados lutavam para conter a multidão de curiosos. Ao que se podia lembrar, era a primeira vez que o imperador da Abissínia (a atual Etiópia) visitava a cidade. Depois do desembarque solene, uma lancha a vapor levou-os até o Dreadnought. Como Adrian previra, William Fisher foi encarregado de presidir a recepção. Sabe-se que, durante os cumprimentos solenes, só a muito custo Virginia conseguiu conter uma explosão de riso. A farsa, por sua culpa, esteve a ponto de desabar. Mas tudo deu certo.

Quando, com o auxílio do falso tradutor, Fisher dirigia perguntas ao imperador, ele respondia, com grande entusiasmo, recitando trechos de Virgílio. Virginia limitou-se a balbuciar algumas palavras em grego, língua que começou a estudar na adolescência, e que dominava com afinco. Finda a comédia, o próprio Horace Cole, seu autor, encarregou-se de fazer a notícia da farsa chegar à redação do The Daily Mirror, já que seu objetivo final era a fama e, sobretudo, o escândalo. Na manhã seguinte, ela estava na primeira página do jornal.

Depressão
Foi tudo muito divertido, mas os biógrafos, não apenas Quentin Bell, registram a forte depressão que acometeu Virginia Woolf poucas semanas depois. Não se pode culpar apenas a excitação nervosa que a brincadeira desencadeou. Desde menina, Virginia Woolf sofria de graves depressões. Talvez tudo tenha começado aos seis anos de idade quando seu meio-irmão Gerald Duckworth, de 20 anos, a agrediu sexualmente. A violência sexual se repetiu aos 13 anos, logo após a morte da mãe, Julia Stephen, fato que a levou a uma forte depressão. O agressor, dessa vez, foi o segundo meio-irmão, George, de 25 anos.

Aos 22 anos, Virginia teve uma segunda depressão, ainda mais grave, que a levou a uma frustrada tentativa de suicídio. Jogou-se de uma janela da casa da família, mas não contou que a altura fosse insuficiente para matá-la. No mesmo ano de 1905, o irmão Thoby, dois anos mais velho, criou a Sociedade da Meia-Noite, uma confraria universitária que funcionava, todas às quintas-feiras à noite, na casa dos Stephen. Escritores como E. M. Forster e T. S. Elliot, pintores como Duncan Grant (um dos farsantes de 1910) e economistas como Lytton Strachey, que se tornaria seu grande amigo, e Leonard Woolf, seu futuro marido, costumavam freqüentar as reuniões.

O ano de 1905 estabelece, assim, o duplo caráter que marcará, para sempre, a vida de Virginia Woolf: de um lado, a efervescência intelectual, de outro as experiências depressivas. As duas faces, positiva e negativa, de um mesmo destino. Nova depressão aparece no ano seguinte, quando Thoby morre de febre tifóide. Ainda no mesmo ano, a irmã mais velha, Vanessa, se casa. Sozinhos, agora dependendo um do outro, Virginia e Adrian, o irmão mais moço, se mudam então para o número 29 da praça Fitzroy, onde Virginia começa a escrever seu primeiro livro, The voyage out, de 1915.

Em 1909, o ano anterior à farsa de Dreadnought, o economista Lytton Strachey, um homossexual assumido, a pede em casamento. Virginia admirava o amigo, em particular sua refinada inteligência. Já não suportava mais a solidão, já não dava conta de si. Por isso, mesmo conhecendo as difíceis condições da união, aceitou o pedido de Lytton, mas ele imediatamente voltou atrás. Ela só viria a se casar, com Leonard Woolf, em agosto de 1912.

Ainda no ano de 1909, Virginia sofreu forte assédio amoroso do crítico Clive Bell, o marido da irmã Vanessa. Para disfarçar suas pretensões com a cunhada, Clive inventou um jogo, no qual um grupo de amigos, em que eles se incluíam, trocava cartas entre si com nomes falsos e assumindo o papel de personagens imaginários. Sempre predisposta à invenção, Virginia se empolgou com a brincadeira, uma espécie de baile de máscaras cujo único objetivo, para seu inventor, era conquistá-la. Foi Lytton Strachey quem a fez ver que embarcava em uma aventura perigosa. Ainda assim, ela passou um longo tempo envolvida com Clive e com seu jogo funesto.

A farsa de Dreadnought a pega, portanto, em um período muito solitário, em que só jogos e brincadeiras aliviavam sua tristeza. Mas, de bigodes, barba e turbante, Virginia, se conseguiu se divertir um pouco, experimentou também um grande contragosto. No ano de 1913, uma crise depressiva mais forte explode, levando-a a uma segunda tentativa de suicídio, dessa vez com a ingestão de barbitúricos. Em 1914, mais uma crise depressiva, agravada pela declaração de guerra. Quando The voyage out foi lançado, em 1915, Virginia alternava estados de grande excitação, em que fala compulsivamente e, por vezes, de coisas incompreensíveis, com estados de apatia, que se assemelhavam ao coma. Já não é possível negar que a agitação e a depressão sejam aspectos decisivos não só de sua personalidade, mas também (o que mais nos interessa aqui) de sua literatura.

O grande drama de Virginia Woolf, avalia Quentin Bell, é “ser suficientemente lúcida para reconhecer a própria insanidade”. Ele compara: “Assim como alguém sabe que está sonhando no momento em que começa a acordar. Entretanto, ela não conseguia acordar”. Foram os delírios cada vez mais intensos que a levaram, em 1941, com os bolsos cheios de pedras e caminhando devagar como se desse um passeio de fim de tarde, a se afogar nas águas do rio Ouse. Deixou um romance incompleto, Entre os atos, que hoje pode ser lido não só como uma sinopse de sua vida, mas também do modo como enfrentou a aflição. Entre os atos conta a história de uma representação teatral, encenada por amadores, em uma cidade do interior da Inglaterra. A montagem da peça põe em cena, atrás da cortina, alguns dos mais difíceis elementos da existência humana.

A história da literatura de Virginia Woolf é, em grande parte, a história de como se armou — de sonhos, de farsas, de palavras — para enfrentar a eminência da loucura. A literatura como escudo, como arma defensiva — como teatro. Como uma couraça, ou fantasia que se veste para resistir ao irresistível e apegar-se ao que não se pode pegar. Como um punhado de graxa, um turbante, uma barba e um par de bigodes, que alguém veste, sem saber muito bem por quê. Talvez só para, por breves momentos, e ainda que precariamente, experimentar a sensação de existir.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

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