Clássicos são livros que escapam ao tempo por não se sujeitarem a classificações, ou até mesmo, à compreensão. São livros sempre a suscitar mais dúvidas do que respostas.
James Joyce não dá respostas. Como diz o crítico Harold Bloom, em seu Gênio: “A grande obra de Joyce, que vai além até mesmo da maravilha que é Ulisses, é Finnegans Wake, porém, meio século de leitura dessa obra é bastante para me convencer de que a mesma jamais será inteiramente acessível, nem mesmo ao leitor sofisticado, ao passo que Ulisses é um prazer, difícil mas acessível ao leitor comum, inteligente e de boa vontade”.
Portanto, o que o fascina é justamente o hermetismo de Joyce, os aspectos ininteligíveis de seus livros, aquilo que aguça o viés crítico e analítico do “leitor comum, inteligente e de boa vontade” e que o leva a dar o passo seguinte, de leitor tornar-se escritor, no caso, de crítica literária. O crítico é o autor de uma escrita que persegue a escrita de outro, ambas, na verdade, de forma mais ou menos explícita, tentando revelar o seu autor a si mesmo.
Um retrato do artista quando jovem tampouco é um livro “fácil”, mas certamente não é uma leitura impossível, como o Finnegans Wake. Primeiro romance de Joyce, levou dez anos para ser escrito, de 1904, quando o autor iniciou-o em Dublin, a 1914, quando o concluiu já morando em Trieste, na Itália. Durante esse período, Joyce publicou Chamber music, de poemas, e os contos reunidos em Dublinenses.
Um retrato… nasceu de uma rejeição. Joyce escreveu o ensaio Um retrato do artista para ser publicado em jornal. Um dos editores rejeitou o texto, dizendo: “Não posso imprimir aquilo que não entendo”. Além da dificuldade de compreensão, a justificativa estendia-se também aos aspectos eróticos da narrativa, que hoje em dia, chegam a parecer ingênuos.
Diante da negativa, Joyce optou por desenvolver o texto em um relato ficcional de sua vida. Como diz a tradutora Bernardina da Silveira Pinheiro na introdução: “Aos 22 anos de idade, Joyce descobria, na verdade, que podia se transformar em um artista escrevendo sobre o processo de se tornar um artista”. Daí a opção pela escrita de um romance de formação, ou bildungsroman no jargão da teoria literária.
Joyce não foi, no entanto, o primeiro a seguir essa vertente. Goethe, entre 1794 e 1796, escreveu o seu portentoso Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister, igualmente um romance de formação, que se insere em uma tradição secular da literatura, remontando a livros como Gargântua e Pantagruel, de François Rabelais, em plena Renascença.
Sintomaticamente, os romances de formação têm suas expressões mais fortes em momentos de transformações sociais profundas, de maior inquietação estética, quando novas formas de expressão se fazem necessárias. Em seu livro, Goethe cristaliza alguns elementos-chave do gênero, principalmente a noção de que a formação do herói-artista se dá através do confronto e da ruptura com suas origens sociais e familiares. Portanto, não será por acaso que Joyce surge com o seu bildungsroman na Irlanda do início do século 20, às vésperas da guerra de independência e no mesmo período em que o Modernismo deflagra sua revolução estética por todo o mundo, a partir da Europa. O próprio Joyce vive sua ruptura familiar, deixando Dublin e a família para iniciar sua errância européia ao lado da fiel esposa e musa Nora Barnacle, com quem viverá uma relação conturbada, mas duradoura e constante.
Interessante observar que Joyce é mais freqüentemente lembrado por suas inovações estéticas do que pelo conteúdo de seus livros. Ele é considerado o pai do diálogo interior, do fluxo de consciência narrativo e lembrado pelos experimentalismos lingüísticos levados a extremos de incompreensão no Finnegans Wake. Um retrato do artista quando jovem não tem exatamente uma trama. Seus capítulos organizam-se mais por temas ou momentos específicos da vida do alter ego de Joyce, Stephen Dedalus. A “ação”, na verdade, concentra-se nas reflexões, divagações e reações internas de Dedalus a episódios diversos, como diálogos e atitudes de outros personagens, ao longo do tempo. Ainda que seguindo uma cronologia natural, da infância à maturidade, o tempo do romance é um tempo interno ao personagem. Mikhail Bakhtin, um dos teóricos que se dedicaram ao bildungsroman, chama a atenção para esse aspecto “temporal”. Em Estética da criação verbal, ele concentra-se sobre o conceito de herói/tempo para caracterizar o gênero:
(…) A imagem do herói já não é uma unidade estática mas, pelo contrário, uma unidade dinâmica. Nesta fórmula de romance, o herói e seu caráter se tornam uma grandeza variável. As mudanças por que passa o herói adquirem importância para o enredo romanesco que será, por conseguinte, repensado e reestruturado. O tempo se introduz no interior do homem, impregna-lhe toda a imagem, modificando a importância substancial de seu destino e de sua vida. Pode-se chamar este tipo de romance, numa acepção muito ampla, de romance de formação do homem.
Este talvez seja um dos aspectos mais fascinantes do livro de Joyce. Por sua própria natureza, o romance de formação concentra-se nas características psicológicas e emocionais em movimento de seu protagonista. O “amadurecimento” se dá através de sucessivas transformações em um ritmo não necessariamente submetido aos calendários, mas sim aos movimentos lentos e profundos da alma.
Assim, acompanhamos o desenvolvimento de Dedalus desde bebê até o jovem impetuoso de vinte e poucos anos, que dá as boas vindas à vida e que vai “encontrar pela milionésima vez a realidade da experiência e forjar na forja da minha alma a consciência incriada da minha raça”. Entre um ponto e outro, o leitor acompanha a crescente complexidade do discurso interior de Dedalus, de uma linguagem infantil a uma prosa densa e reflexiva, como mostram os trechos em destaque. Ainda que narrado em terceira pessoa, o texto jamais abandona o ponto de vista interno de Stephen. A dose maciça de subjetividade talvez seja um dos principais complicadores para a leitura do livro pelo leitor moderno, acostumados que estamos à prosa cinematográfica e objetiva, em que a vida interior dos personagens é mais percebida pelos diálogos e pela ação do que pela intervenção de um narrador disposto a mergulhar profunda e intimamente na alma de seus personagens.
Cinco capítulos
O percurso exterior de Dedalus é relativamente simples e esquemático. O livro tem apenas cinco capítulos, que equivalem, cronologicamente à vida escolar de Stephen. O primeiro descreve sua infância de menino frágil; o segundo mostra-o entrando na adolescência e descobrindo o amor; no terceiro, esse amor transforma-se em luxúria e o adolescente entrega-se às prostitutas; no quarto, arrependido, o jovem debate-se entre uma suposta vocação sacerdotal e o chamado artístico; no quinto, todos os conflitos culminam em sua opção pelo exílio, afastando-se da família, da pátria e da religião, para entregar-se conscientemente aos apelos da sensualidade e da criação artística.
Essa organização funciona apenas como um arcabouço muito tênue para o acúmulo de experiências e reflexões que constituem o processo de transformação do menino em homem. A grande transição se dá quando Dedalus deixa de ser moldado pelos fatores externos da educação, sociedade e família, para tornar-se senhor de seu destino. A “forja da alma” é o atrito entre o mundo e a sensibilidade diferenciada de Stephen. Essa sensibilidade revela-se desde cedo através do fascínio pelas palavras e a busca de seus significados. As palavras levam a realidade para dentro do menino e depois do homem. No princípio, revestem-se de uma dimensão altamente sensorial, as palavras evocam sensações de frio ou calor, de medo ou prazer, de aconchego ou solidão. Uma sensação leva a outra e as impressões se sucedem, digressiva e dispersamente na alma infantil.
Mais à frente, com Stephen já adolescente, ainda serão as palavras que determinarão seu comportamento. Após entregar-se à festa dos sentidos, atendendo ao chamado das prostitutas, ele entrega-se à autocomiseração e ao arrependimento após ouvir o sermão barroco de um sacerdote jesuíta. Os sermões ocupam as páginas centrais do livro. Consta que Joyce baseou-se em traduções para o inglês dos sermões do jesuíta italiano Giovani Pinamonti, do século 17 para preencher algumas muitas páginas de seu romance com descrições impressionantes dos castigos infernais, da sublimidade do feminino em Maria e da natureza do perdão divino. As palavras inflamadas do padre levam-no ao arrependimento e ao extremo oposto, saindo de um estado de impureza para uma busca intensa de purgação e beatitude através de um comportamento eclesiástico exemplar.
Diante do convite para entrar na ordem dos jesuítas, Stephen volta-se uma vez mais para dentro de si mesmo, percebe os questionamentos profundos e longínquos que o afligem desde a infância e diz não. Obviamente, este é o momento de sua epifania, a partir do qual toma consciência da fragilidade e insuficiência do meio em que foi criado e marca o início de seu derradeiro afastamento. Dá-se conta de que “seu destino era o de ser esquivo às ordens sociais e religiosas”. O processo é todo enevoado por visões, digressões, lembranças confusas e todo um passado que se acumula em palavras igualmente esquivas. Momentos em que Joyce aproxima-se do mistério e nos leva junto com ele. Quando sua grandeza como autor revela-se por ser oblíqua e velada. Quando a linguagem parece esgotar-se em sua capacidade expressiva e as imagens ganham formas e sentidos.
Um retrato do artista quando jovem é considerado o preâmbulo para os experimentalismos mais radicais de Joyce, que culminam no quase ilegível Finnegans Wake. Ulisses fica entre um e outro, revelando as intenções e realizações de Joyce e, por incrível que pareça, tornando seu universo mais acessível ao leitor. Uma leitura que não precisa ser “compreendida”, mas sim absorvida em sua fluidez.
A tradução
A nova tradução do livro, de Bernardina da Silveira Pinheiro, reproduz o amadurecimento de estilo interno do romance e consegue tornar a prosa de Joyce acessível ao leitor brasileiro contemporâneo, apesar de perder alguns jogos de palavras que precisariam de uma adaptação melhor para uma perfeita compreensão, como no diálogo:
Havia duas camas no quarto e em uma delas estava um colega; e quando eles entraram ele gritou:
— Alô! É o jovem Dedalus! O que é que há?
— Há o céu — disse o Irmão Michael.
É possível encontrar algum sentido no diálogo, com algum esforço. Mas, em inglês, a brincadeira não pressupõe grandes vôos metafísicos:
There were two beds in the room and in one bed there was a fellow: and when they went in he called out:
— Hello! It’s young Dedalus. What’s up?
— The sky is up, Brother Michael said.
Porém, não há tradução consensual, e Bernardina há de ter justificativas plausíveis para todas as suas opções e soluções. O que vale ressaltar é a dificuldade de traduzir mais do que palavras e conseguir transpor para outra língua e cultura o espírito de uma prosa complexa e fortemente pessoal de um autor como Joyce, ou no caminho inverso, de um Guimarães Rosa, para qualquer outro idioma.
Como a tradutora diz: “Por entender a importância e a beleza do estilo inovador de Joyce, por perceber e admirar a relevância da sonoridade de suas palavras, da melodia, cadência e ritmo de sua linguagem e por respeitar o que ele próprio desejava que fosse preservado em sua obra, procurei, na tradução literária de Um retrato do artista quando jovem, manter, dentro da diferença lingüística e sonora, na medida do possível, o estilo, a melodia e a cadência que, acredito, ele gostaria de encontrar em uma versão brasileira de sua obra, sem saber, na verdade, se minha preocupação básica atingiu o alvo”. Isso, dona Bernardina, jamais saberemos e nem mesmo Joyce poderia dizer. A partir de um determinado momento, a tradução deve ser vista como uma obra em si, pois o original torna-se inacessível.