Goethe e a modernidade de Fausto

Durante 60 anos, Johann Wolfgang von Goethe trabalhou em sua obra titânica. Fausto busca o desenvolvimento insaciavelmente, almeja o universalismo, a construção do progresso, a objetividade, o desejo
Ilustração: Ramon Muniz
01/10/2007

Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) escreveu dois Faustos. No Urfaust (Fausto Original ou Fausto Zero, como vem sendo chamado), Goethe se mostra claramente influenciado por sua ardorosa juventude interior e pelo fogo exterior do Sturm und Drang. Fausto não alcança a redenção, mas desaparece com Mefistófeles, enquanto Margarida — a Gretchen da tradição alemã — grita, de longe, para que volte, chamando-o de Henrique, nome pelo qual o conhecera. Assim, o Fausto do Fausto Original (cuja cópia foi reencontrada apenas em 1887) é o símbolo de uma humanidade que errou buscando desesperadamente um caminho que a levasse a um ideal mais elevado.

O Fausto em sua versão acabada seria concluído apenas pouco antes da morte de Goethe, em 1832. Nessa verdadeira tragédia do desenvolvimento, o autor já passou do Romantismo ao Classicismo, abandonando uma visão que era opressiva e lacrimosa e adotando uma postura moderna — e clássica — frente ao desenvolvimento. Neste Fausto, dividido em duas partes bastante distintas, a vida do homem aparece como uma harmonia que se desfaz para voltar a se formar por suas próprias forças, através da experiência da realidade.

A primeira parte é quase o Urfaust, diferindo dele entre outras coisas pelo fato de ser precedida de um Prólogo no Céu — cujos protagonistas são Deus e Mefistófeles —, de apresentar as cenas do pacto e mais uns acréscimos de lavra e buril, sobretudo na versificação. Ainda marcadamente subjetiva, ela foi publicada em 1808. No diálogo (disputa) do prólogo, Deus, crente de que Fausto é um dos seus, dá permissão a Mefistófeles para tentá-lo. E Mefistófeles vai à colheita…

Logo no princípio, Fausto divaga, monologando, retirado em seu gabinete. Pensa em sua própria existência e na inutilidade que a domina. As “trêmulas visões” invocam nostalgia e dor, objeto e mote da escrita ao mesmo tempo. Descontente com a sabedoria infrutífera alcançada nos livros, ele decide ir em busca de um contato mais íntimo com a natureza. Fausto abre o livro de Nostradamus e o Gênio da Terra aparece de súbito, aterrorizando-o. Mas é através da força da natureza que, desde logo, ele julga poder alcançar a completude da verdadeira experiência, que logra ultrapassar as fronteiras do lugar-comum em busca da totalidade.

O Macrocosmo e o signo do Gênio da Terra, belos e harmônicos no livro de Nostradamus, ao mesmo tempo em que o deslumbram, dão-lhe consciência de que não é mais que um

Verme, que, faminto,
No pó se nutre; e ao qual, enquanto escava a vasa,
O pé do caminhante esmaga, arrasa.

mas ao mesmo tempo lhe deixam claro que está distante, muito distante, de ser deus.

Logo em seguida, Wagner, o fâmulo, que já adentrara o quarto de Fausto antes, volta a aparecer. Ambos dialogam, e o estudante desaparece. Fausto, desconsolado, pensa no suicídio e chega a levar à boca o veneno letal. O repicar dos sinos e o canto das mulheres e dos anjos fazem com que ele pense, por um momento, ser o próprio Jesus Cristo redivivo e Fausto abandona o cálice. Um novo mundo surge a seus olhos. Mas um passeio com Wagner logo volta a fazer com que Fausto se dê conta do conforto auto-satisfeito e estúpido que reina no povo em volta dele, açulando suas contradições interiores e tornando-as ainda mais dolorosas. É quando Fausto admite a existência de duas almas dentro de si que Mefistófeles aparece.

Depois de aparecer nas feições de um poodle negro, Mefistófeles o faz desdenhar mais ainda o saber acadêmico, rejuvenesce-o na cozinha da bruxa, leva-o ao gozo, ao amor e à aniquilação. Fausto exige que Mefistófeles o conduza a Gretchen, cuja imagem ele vira no espelho mágico da bruxa. A tragédia já se anuncia na incondicionalidade do pedido. Querendo gozar a filha sem a presença incômoda da mãe, solicita o veneno de Mefistófeles para fazer a velha dormir — e ela acaba morrendo. Depois quem morre é Valentin, o irmão que tenta defender a honra da moça e, em duelo com Fausto, acaba sendo morto quando Mefistófeles intervém. Por fim, grávida, Gretchen acaba matando o fruto de seu amor com Fausto e é acusada de infanticídio.

Após a Walpurgisnacht (Noite de Valpúrgia) e seu festim simbólico-diabólico, no qual vislumbra Gretchen, já morta, Fausto obriga Mefistófeles a levá-lo de volta. Os dois cavalgam rumo à prisão, onde está a infanticida-seduzida. Com um molho de chaves, materializado pela magia de Mefistófeles, Fausto entra na prisão da amada, que aguarda a morte, louca. Ele a liberta e incita-a a fugir. Ela se recusa e, quando vê Mefistófeles, entrega-se ao julgamento divino. O poder do mal mostra suas fronteiras diante da mulher tocada pelo amor ainda mais nitidamente quando Mefistófeles alega não ter poder sobre ela. E Fausto e o demônio se afastam, ouvindo os gritos de Gretchen a chamar pelo amado.

O Fausto romântico da primeira parte de Goethe proclama o fracasso da ciência, a insuficiência de nossa capacidade de conhecer e saber. Quer ciência sim, mas também uma nova dimensão para a vida, quer dilatar os horizontes humanos a fim de abarcar o universo. E, para isso, ele deixa os livros acadêmicos e se volta para a magia natural, buscando a força que lhe possibilite passar dos limites “proibidos”. Tudo é resumido na frase de Mefistófeles: “Gris, caro amigo é toda teoria/ E verde a áurea árvore da vida!”.

Na segunda parte de Fausto, publicada apenas em 1832, é que se desenrola a grande tragédia do desenvolvimento. É ela que faz de Fausto uma suma operística não apenas da vida e da obra de Goethe — o titã das letras alemãs trabalhou cerca de 60 anos, com interrupções, em sua obra titânica —, mas de todo o mundo moderno.

A referida segunda parte inicia tempos depois do fim da primeira, numa “região amena”, em que Fausto, exausto, é embalado pelo canto de uma série de entidades divinas e mitológicas. O amanhecer o impele à atividade. O tempo e a distância parecem apagar o remorso e a dúvida engendrados por seu narcisismo e sua luxúria sequiosa.

Fausto e Mefistófeles se encontram com o Imperador, e Mefistófeles acaba inventando o papel-moeda, salvando o Imperador das dívidas. O dinheiro, garantido pelos tesouros enterrados no subsolo do palácio, reaviva a economia do país ao lançar a turba popular ao delírio do consumo. Reproduzido em quantias maiores do que o lastro, contudo, o dinheiro mais tarde acaba engendrando a inflação e a crise, e o povo começa a insurreição. Depois da segunda “Noite de Valpúrgia”, de uma série de aventuras cheias de seres fabulares e híbridos, filósofos antigos e divindades da natureza, de um conjunto cenas carregadas de simbolismo — entre elas o encontro com Helena de Tróia, a criação do Homúnculo por Wagner, agora um estudioso respeitado —, Mefistófeles induz Fausto a ajudar novamente o Imperador para, em troca, receber o campo onde promoverá seu ideal desenvolvimentista, pautado na visão do próprio Goethe, que acreditava auspiciosas as conquistas da nascitura indústria, principalmente por seu desenvolvimento na França e Inglaterra.

O ideal desenvolvimentista de Fausto, contudo, não hesita em passar por cima de Filemon e Baucis, benfeitores de náufragos, queimando-os junto com sua casa, por não abandonarem o espaço em meio ao campo, onde o herói planeja construir sua torre de observação. No final, Fausto recebe, à meia-noite, a visita de quatro mulheres: a Falta (Der Mangel), a Culpa (Die Schuld), a Inquietação (Die Sorge) e a Miséria (Die Not). Três delas desaparecem por não terem lugar na casa opulenta: A Falta, por tornar-se sombra e não existir; a Culpa, por tornar-se nula e também não existir; e a Miséria por ter a vista desviada de si.

Fausto permanece apenas com a Inquietação, e, como se recusa a reconhecer seu poder, ela sopra em seu rosto e o deixa cego. É a vitória definitiva da Inquietação. Fausto está, agora, disposto a morrer e a hora se acerca. Chegam os Lêmures e recolhem Fausto em seus braços, deixando-o cair ao solo. Mefistófeles convoca seus diabos gordos, de chifres retos e curtos, e seus diabos magros, de chifres longos e recurvos, a fim de que a alma de Fausto não lhe escape. Mas ele mesmo se distrai — ocupado com seus mundanos apetites e sinalizando para uma homossexualidade infrene — contemplando os “apetecentes” anjos que poderiam “sem desonra andar mais nus”.

Os anjos baixam do céu ao encontro da alma de Fausto. A cena é grotesca e pletórica de vitalidade. No final, os mesmos anjos se elevam aos ares levando consigo a alma do pactário e, lentamente, de esfera em esfera, entre os coros dos bem-aventurados, sobem ao céu. A quem sempre buscou com tanto afã, eles podem redimir, é esta a mensagem. E, ao contrário do Fausto original, este alcança a redenção, com o direito de reencontrar Gretchen no Céu, para guiá-lo e orientá-lo como se fora a Beatriz do novo Dante.

As origens da lenda
Fausto teria existido de verdade. O doutor Fausto, Johannes Faustus (ou Georgius, como mostram alguns documentos, embora não se saiba se de fato se trata da mesma pessoa, ainda que muito parecida nas atitudes), pseudo-humanista e mago, pseudomédico e alquimista, aventureiro, dito philosophus philosophorum, nasceu provavelmente em Knittlingen, condado de Würtenberg, por volta de 1480. Fez seus estudos na Universidade de Cracóvia (alguns relatos dão conta de que teria estudado em Heidelberg, outros em Wittenberg), onde era ensinada a magia, e se apresentava como astrólogo, mágico, quiromante e conhecedor de todas as ciências ocultas.

Fausto afirmava ser capaz de fazer todos os milagres que Jesus Cristo fez, inclusive o de ressuscitar os mortos, e de poder colocar à disposição do público todos os escritos perdidos de Platão e Aristóteles, Plauto e Terêncio, e os recitava a estudantes fascinados e atentos. Teria morrido obscuramente em 1540, e a lenda que se mesclava à sua fama em vida, apoderou-se dele mais fortemente após sua morte.

A existência de Fausto é testemunhada por várias pessoas que cruzaram seu caminho, amigos e inimigos, entre eles Melanchton, humanista, que o teria encontrado entre 1525 e 1532, e o qualificou de “turpissima bestia et cloaca multorum diabolorum”. Até mesmo Lutero teria tido contado com o pactário. Precavido, este último dizia a amigos que o tal feiticeiro chamado Fausto não teria, com demo e tudo, poder nenhum contra ele. Fausto também teria sido preceptor dos filhos de Franz von Sickingen, em Kreuznach, a partir de 1507, aos quais foi acusado de sodomizar — cometeu, segundo escritos da época, um “turpissimum fornicationis genus” —, e recebeu dez florins de ouro de um bispo para fazer seu horóscopo. Já a seus contemporâneos, Fausto pareceu “uma espécie de encarnação vivaz do espírito alemão da época, rico de forças em ebulição, mas também de contradições e caos, bruscamente oscilante entre os impulsos de um individualismo jactancioso e tendencioso e os recuos de uma consciência obcecada pelo problema religioso” e manifestando a “angustiada preocupação luterana pela presença operante do diabo”.[1] Se Fausto tinha poderes extraordinários, aquela era uma época conturbada, cheia de mudanças, em que a fantasia popular andava de rédeas soltas e que, conforme disse Friedrich Engels, precisava de gigantes e criou seus gigantes. A lenda de Fausto, que adquiriu vigores de mito, teve incontáveis cristalizações em obras literárias e musicais.

O relato apócrifo de suas façanhas, que virou livro editado por Johann Spies em 1587, é a fonte a partir da qual emanam todas as outras narrações sobre o homem que vendeu sua alma. O diabo com o qual Fausto firma o pacto, já tem um nome próximo ao que Goethe viria a imortalizar mais tarde, Mephostophiles — o próprio diabo o escolheu e sua origem seria grega ou hebraica e indicaria ou “falta de amor à luz” ou “destruição do bem” — e no livro já aparece Wagner, o fâmulo, um estudante inocente.

Fausto nasce filho de camponeses e faz brilhantes estudos universitários de medicina e teologia (daí o fato de Adrian Leverkühn, o Fausto de Thomas Mann, ter estudado teologia; Adrian, assim como o Fausto do relato, também especula com os elementa e recebe 24 anos de prazo para cumprir sua obra genial, A lamentação do doutor Fausto). Aflito por saber tão pouco e desejar compreender tanto, e também gozar, Fausto pactua impondo cinco cláusulas a serem respeitadas pelo demônio que, em troca, lhe impõe outras cinco, chegando a dar ao pactário a impressão de que o diabo não é tão negro quanto o pintam, nem o inferno tão terrível quanto parece.

Fausto adquire, assim, poderes de dominação sobre os animais (um touro furioso cai aos seus pés incólume e depois desaparece, lembrando Riobaldo ao dominar o cavalão, lão, lão depois do pacto que não houve nas Veredas Mortas) e o gozo dos mais finos manjares que lhe entram a voar pela janela. O diabo não recomenda o casamento a Fausto, mas promete-lhe todas as mulheres, uma para cada noite, sempre em figura diferente, como se a precaver o pactário do mal do hábito, que Balzac disse ser o inimigo mais terrível da união estável. Fausto vai conhecer o terror do inferno e, em seus périplos noturnos, negocia vantajosamente com judeus, constrói palácios mágicos, come feno e até achincalha o papa. O último ano que lhe é concedido, ele o passa com Helena de Tróia — que voltaria a ser tão importante no Fausto de Goethe — e tem com ela um filho, Justum Faustum. Antes da morte, Fausto faz Wagner seu herdeiro.

No final do livro, o pactário sucumbe à sua própria impiedade e é condenado para sempre. Há uma tendência moralizadora explícita. A narração é pontilhada por alertas bíblicos e tem como objetivo servir de “terrível exemplo e leal advertência” a “todos os homens soberbos, presunçosos e obstinados”.[2] Dogmática, a obra tenta chamuscar a orientação panreligiosa de sábios como Paracelso, que especulavam com um saber desligado da fé, um saber que, segundo a moral luterana, só poderia terminar em danação e morte. E a morte de Fausto é terrível. O Diabo o atira de uma parede a outra do estúdio, na meia-noite do dia em que se esgotou o prazo que recebeu para atuar com a ajuda dos ínferos. Pela manhã, os estudantes, amigos do doutor, não o encontram. Vêem apenas as paredes salpicadas de sangue, seu cérebro esmigalhado e seus olhos e dentes espalhados pelo chão. Por fim, acham os restos do corpo de Fausto jogados sobre um monte de esterco, no pátio.

Além dos aspectos religiosos — e luteranos —contra a ousadia de quem usa da magia e da nigromancia, “o pior e mais pesado pecado contra Deus e contra o mundo”,[3] há também aspectos políticos. Fausto é filho da baixa classe social dos camponeses e se destaca com brilhantismo nos altos estudos da teologia, magia, astrologia e medicina. E nasce, como literatura, cinqüenta anos depois do esmagamento da rebelião dos camponeses pelos príncipes, apoiados por Lutero. É o homem saído do povo que comete a hybris de não apenas ser contra as normas religiosas e o puritanismo da Reforma, mas também contra a organização social e política vigente e, até por isso, é castigado com a morte.

Georg Rudolf Widmann publicou a sua versão do Fausto em 1599. A tendência moralista e religiosa é ainda mais patente, e inclusive os amores de Fausto são suprimidos da obra. O título é, traduzido: Verdadeiras histórias dos horrendos e execrandos pecados e vícios, assim como das muitas e maravilhosas e estranhas aventuras que o doutor Johannes Faustus, o famoso nigromante e arquimago, passou, por obra de sua nigromancia, até seu terrível fim.

Em 1674, Johannes Nicolaus Pfitzer publicou uma versão bastante modificada da lenda, na qual pela primeira vez aparece o amor de Fausto por uma moçoila pobre, que veio a ser desenvolvida no Fausto de Goethe. A versão de Pfitzer é aquela que Goethe mais usou, mais leu e releu, a mais importante depois do teatro de marionetes, que o fascinava desde a mais rala infância, conforme reconhece no princípio de Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister.

Em 1683, com o nascente espírito racionalista dos estudiosos, muitos dos episódios do Fausto tiveram sua veracidade questionada. Passadas duas décadas do novo século alguém publicou, sob o pseudônimo de “Bom Cristão”, uma edição reduzida de apenas 48 páginas (a última fora de 635), limitando a obra àquilo que parecia digno de fé. Permanecia o tom de admoestação e advertência aos “empedernidos pecadores”. O nome de Mefistófeles toma sua forma definitiva, e Fausto, ao firmar o pacto com seu próprio sangue, se compromete, entre outras coisas, a não possuir mulher, e, quando cai em tentação, é castigado. A moça pobre volta a aparecer e não se sabe se a Gretchen de Goethe surgiu daí, da obra de Pfitzer ou da vida real. Alguns alegam que ela foi a maneira ficcional que Goethe encontrou para lidar com seu amor real por Friederike Brion, outros que baseou a personagem na infanticida Susanne Margaretha Brandt, executada em Frankfurt em 1772, episódio aliás referido por Goethe em sua autobiografia Poesia e verdade. Fato é que o Fausto do “Bom Cristão!” seria seguidamente reimpresso até o fim do século; a última edição conhecida é de 1797.

Incontáveis peças teatrais trabalharam o tema de Fausto. A mais conhecida e representativa delas é a de Christopher Marlowe (1564-1593). A trágica história do Doutor Fausto remonta principalmente ao Volksbuch de Spies, mas perde seu forte moralismo e tem acréscimos louváveis de picardia e chacota. Seria o drama de Marlowe que daria fundamento às versões de teatro de marionetes, inclusive as apresentadas na Alemanha. Na Alemanha, aliás, o iluminismo transformou Fausto em um ilusionista e obscurantista ridículo, até que o crítico iluminista avançado e pai da pátria literária alemã, G. E. Lessing, resgatou sua figura, apresentando-a sob uma luz nova e positiva.

O romantismo alemão produziria um número quase incontável de Faustos, que responderiam aos apelos de liberdade e às ambições titânicas dos jovens escritores. Para citar apenas dois deles, Friedrich Maximilian Klinger e Nikolas Lenau escreveram seus Faustos. Também os “jovens alemães” Christian Dietrich Grabbe e Heinrich Heine escreveram seus Faustos e o último já reveste seu poema dançante de um caráter mais sardônico. Isso sem contar as narrativas que tangenciam o tema, como o Peter Schlemihl de Adelbert von Chamisso, aliás autor também de um pequeno Fausto em forma dramática.

Ilustração: Osvalter

De volta a Goethe
Mas é em Goethe que o Fausto alcança a devida profundidade para encarnar em si, na mais vívida essência, a ânsia do espírito moderno, do qual já era, por consenso, símbolo. É em Goethe que Fausto mostra todo seu voluntarismo visceral, seu dinamismo, sua vontade de dominar o estranho.

O poema dramático, em seu caráter totalizante, é uma súmula da modernidade. Em seu caráter enciclopédico, ele abarca a tradição popular, o plágio shakespeariano,[4] a cultura medieval e renascentista, a antiguidade clássica, as revoluções alquímicas e as descobertas científicas. E Goethe ainda dá ao Fausto todas as características da modernidade. O personagem busca o desenvolvimento insaciavelmente; almeja o universalismo, a construção do progresso, a objetividade, o desejo, o Vir-a-ser. Tem o olhar voltado para o futuro e, mesmo que tenha de aniquilar a subjetividade em nome do ideal objetivo, segue adiante.

A rigor, é o Fausto da segunda parte o verdadeiro símbolo do desenvolvimento. Toda sua ação está dirigida para um objetivo e é só esse objetivo que ele vê diante de si. O mesmo Fausto que sonha com o desenvolvimento universal e drena o charco (“Espaço abro a milhões — lá a massa humana viva,/ Se não segura, ao menos livre e ativa.”), no entanto, cobiça a pequena casa e as tílias de Filemon e Baucis, velhos benfeitores de náufragos, dizendo:

Das tílias quero a possessão,
Ceda o par velho o privilégio!
Os poucos pés que meus não são
Estragam-me o domínio régio.

E Fausto ainda alega, racionalizando, que a teimosia já o deixou cansado de ser justo

A resistência, a teimosia
O esplendor todo me atrofia,
E é só com ira e a muito custo
Que me conservo ainda justo.

e acaba ordenando a expulsão de Filemon e Baucis. Assim, legitima, embora a débil revolta depois de vê-los mortos, a ação exterminadora de Mefistófeles, que os queima junto com a casa. Nesse instante, só interessa a Fausto o fim a ser atingido; é a soberba da razão, triturando o passado em favor da construção do futuro. Filemon e Baucis são excluídos pelo progresso, apesar de sua bondade, se não por causa dela. Estão no caminho do desenvolvimento e, mais que isso, são a personificação do que há de melhor num mundo que tem de ser vencido e, por isso, uma possível ponte de volta para a calidez do mundo antigo depois da catástrofe.

Mas o Fausto de Goethe não tem por objetivo nenhum êxito egoísta, nem a simples acumulação de capital. Ele é o mais acurado símbolo de um mundo em intensa transformação, cada vez mais dinâmico, que exigia um progresso retilíneo, uniforme e imediato. E, assim, Fausto levou a cabo a missão de quebrar os valores da tradição e dos costumes e de derribar os mitos religiosos. Foi o protagonista por excelência da dessacralização do mundo comunitário e do obscurantismo medieval-romântico da época. A dominação da natureza pelo trabalho exaustivo, pelo sofrimento e pela organização, em nome do desenvolvimento e da universalização, a libertação humana dos desejos e das necessidades, foram seu fim último e sua tragédia pessoal. Fausto é, assim, segundo Marshal Berman, o sujeito que acaba com o deserto exterior em prol do desenvolvimento, mas acaba se desertificando interiormente.[5]

Coletivo e tipicamente moderno, o objetivo de Fausto foi dominar o tempo e a ação de vencê-lo realizou-se através da conquista do espaço, como qualquer ação moderna de desenvolvimento e de progresso material. Seu grande desiderato:

Quisera eu ver tal povoamento novo,
E em solo livre ver-me em meio a um livre povo.
Sim, ao momento então diria:
Oh! Pára enfim — és tão formoso!

culmina em ilusão, e a vitória da coletividade objetiva significa sua própria aniquilação subjetiva, conforme havia sido estipulado no pacto desde o princípio, que determinava a vitória de Mefistófeles no momento em que Fausto, vendo que já não precisava mais continuar sua busca, dissesse ao momento presente que poderia parar. Mais que a expressão de um espírito vital, que se encontra além do bem e do mal, os erros de Fausto acabam fazendo com que ele sofra e sucumba a suas próprias ações, arrependido, para ao fim ser salvo apenas por ter buscado com tanto afã aquilo que mais desejava.

Epifania e nova edição
Na Alemanha, o pacto fáustico daria pelo menos mais uma obra decisiva depois do Fausto de Goethe, o já citado Doutor Fausto, de Thomas Mann, no qual o destino do homem que vendeu sua alma ao diabo é unido intimamente ao destino da Alemanha Nazista e aos caminhos da arte no século 20 através da vida e da obra do compositor Adrian Leverkühn. No mundo, autores do quilate de Estanislao del Campo, Fernando Pessoa e Paul Valéry se ocupariam extensivamente do tema, enquanto Julio Cortázar trataria dele em um conto genial chamado El perseguidor.

Os ecos de Fausto também chegariam ao Brasil. Depois de uma série de experiências de menor vulto, como um conto de Lima Barreto (Um que vendeu a alma), de vários contos e citações de Machado de Assis, mais um poema de Vicente de Carvalho, entre outras obras, o pacto fáustico receberia versão bem brasileira em uma das maiores obras da história de nossa literatura: o Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa.

Isso indiretamente; diretamente, o Fausto de Goethe chegou através das traduções portuguesas de Agostinho D’Ornellas (1867) e de Antonio Feliciano de Castilho (1872), sem contar a versão de João Barrento (1999) e a tradução das cenas finais do quinto ato da segunda parte encaminhada por Haroldo de Campos. Eis que agora a única tradução brasileira integral da obra, feita por Jenny Klabin Segall, ganha nova e cuidadosa edição — bilíngüe! — pela Editora 34, com ilustrações de Max Beckmann. Além do trabalho quase goethianamente titânico de Segall, além das ilustrações, a edição apresenta também os comentários do professor Marcus Vinicius Mazzari, que trabalhou com várias edições críticas alemãs para chegar a uma bela síntese. Os comentários abarcam tanto a obra global em vários de seus aspectos, como as cenas individuais e ainda versos específicos, cujo alcance é precisado pelos comentários de Mazzari. Indo mais além, Mazzari traduziu alguns trechos carregados de obscenidade da primeira “Noite de Valpúrgia”, que haviam sido censurados pelo próprio Goethe e acabaram ficando fora da versão definitiva da obra monumental. A edição dá bem o valor da obra de Goethe, tão multifacetada que não tem igual em riqueza de formas métricas, em multiplicidade de versos, em variação de estilos; uma verdadeira dança vertiginosa além da fronteira dos gêneros, pois é poema, é drama e é narrativa, e tudo isso ao mesmo tempo.

Notas

[1] G. Gabbeti, Diccionario Literario, Tomo V, 1ª. edição, Barcelona, Montaner y Simões, 1959, p. 64. Tradução minha.

[2]SPIES, Johann, Historia von Doktor Fausten. In: Deutsche Volksbücher. München: Rowolth, 1968, p.61.

[3] Idem, p. 63.

[4] GOETHE diz, conforme Eckermann (Eckermann, Gespräche mit Goethe in den letzten Jahren seines Lebens. Berlin und Darmstatt: Deutsche Buch-Gemeinschaft, 1958), na conversa de 18.01.1825: “Então meu Mefistófeles entoa uma canção de Shakespeare (referindo-se à canção de amor da louca Ofélia no Hamlet)? E por que não poderia fazê-lo? Porque eu deveria me dar o trabalho de criar algo próprio, se a canção de Shakespeare cabia à maravilha e dizia exatamente aquilo que era preciso?”.

[5] Ver Marshall Berman, Tudo que é sólido desmancha no ar, 1.a edição, São Paulo, Companhia da Letras, 1986.

Fausto
Uma tragédia
Segunda parte
Johann Wolfgang von Goethe
Trad.: Jenny Klabin Segall
Editora 34
1.085 págs.
Marcelo Backes

Nasceu em Campina das Missões (RS), em 1973. É escritor, tradutor e professor, autor de Três traidores e uns outros e Maisquememória. Vive no Rio de Janeiro (RJ). O romance O último minuto será publicado pela Companhia das Letras em maio.

Rascunho