Fragmentos de um discurso amoroso

“Fica comigo esta noite” reúne doze impecáveis contos da escritora portuguesa Inês Pedrosa
Inês Pedrosa, autora de “Fica comigo esta noite”
01/10/2007

O encontro entre duas pessoas é possível, todos sabemos, todos sabem. O desdobramento de um encontro assim também é possível, todos sabem, todos sabemos. Mas, efetivamente, e depois? O que acontece ou pode acontecer depois de um encontro entre duas vidas? Uma relação a dois pode sim fluir, caminhar, com frutos, perfume, brisa suave, temporadas idílicas. Mas há pelo menos outra hipótese, não há? Inês Pedrosa apresenta, em Fica comigo esta noite, doze possibilidades narrativas sobre o amor. Doze contos sobre a impossibilidade do que alguns chamam de ser feliz. Doze narrativas publicadas originalmente em impressos e retrabalhadas para a edição em livro. Doze textos, é preciso salientar, de ficção visceral. Doze inventários sobre os descaminhos do coração humano.

Amor, no universo ficcional de Inês Pedrosa, pode se resumir a uma febre azul que outros chamam só sexo. Amor, nas páginas de Fica comigo esta noite, pode fazer com que um mate o outro após desilusões, auto-engano e sobriedade excessiva. Amor, no imaginário de Inês Pedrosa, pode ser um eco passado, de repente “é o calor do corpo dela que trazia o cheiro do teu tabaco, era esse odor ácido que me despertava”. Amor, recriado literariamente pela escritora portuguesa, pode ser o impedimento de o marido conviver com a esposa na mesma casa devido à presença dos filhos: “e nesse mesmo instante entra pela janela um pássaro — uma pomba, um corvo, seria? — que leva no bico a tua aliança, e voa, outra vez, para muito longe”. Amor, na comovente prosa lírica pedrosiana, pode ser traição: e um adultério, quem sabe, faça muito bem a relacionamento quase morto ou esfacelado pela roda do dia-a-dia. Amor — Fica comigo esta noite sinaliza — pode ser linguagem.

O que a beleza é?
Inesperadamente, uma interrupção. Dary Jr., da banda Terminal Guadalupe, canta: “O que a beleza é?/ Eu vou tentar descrever”. E a beleza, enfim, acontece, também (como não?), em meio às 159 páginas de Fica comigo esta noite. Ao acaso, um fragmento da página 10 e, ali, beleza por meio de linguagem:

Adormeci todas as noites da minha vida nos teus ombros estreitos de adolescente eterno. Nunca foste bonito, mas possuías um não sei quê de juventude ancorada que te tornava imediatamente comovente. Usavas e abusavas desse não sei quê. Não acreditavas em nada, vivias num aquário de sonhos impossíveis que fazia de ti um anjo negro, abismo de lágrimas congeladas.

O que a beleza é se não, por exemplo, a prosa literária presente no parágrafo anterior? E, neste instante, outra interferência. É aqui. Bem perto. Renato Russo a cantar: “Quem inventou o amor?/ me explica por favor”. Pausa. Inês Pedrosa reinventa o que pode ou pôde ser o amor. E ao fazê-lo, faz beleza, faz com beleza:

Tinhas acabado de limpar as lágrimas, e desta vez não era por mim que choravas. Vinhas sem pintura, com o cabelo revolto, não pediste desculpa da hora e meia de atraso, não disseste nada. Nem parecias tu. Nos noventa e dois minutos em que esperei por ti senti que qualquer coisa mudava, pela primeira vez era eu quem estava à tua espera, eu que nunca esperei nada de ninguém.

E, sem nada esperar, não mesmo, de nada, de ninguém, o belo se manifesta. Uma surpresa que dialoga com este texto, com o livro de Inês Pedrosa, com você, leitor, leitora do Rascunho: Fernanda Takai, do Pato Fu, canta agora, escute: “Me explica/ Havia você e o céu/ Havia você e o mar/ Já não há/ Me explica/ Me diz onde vim parar/ Pois quem sempre esteve aqui/ Já não está”. E alguém já esteve aqui, ali, aí, e não está mais — e isso também se dá na ficção pedrosiana, assim:

Tu tens alma de cão vadio, sabes amar sem desconsolo. Se fosses morrer daqui a dois ou três meses, como eu, saberias fazer-te encontrado comigo? Talvez soubesses. Da última vez que te vi — há nove anos, no cinema —, aproximei-me para te pedir um cigarro e disse-te, mesmo antes de ti: “Que disparate. Deixaste de fumar há uma semana, bem sei, desculpa”. “Como é que sabes?” — perguntaste-me, atónito. Sorri, encolhi os ombros, não cheguei a responder-te. Como é que eu sabia? — Ora, como sei tudo de ti. Através dos sonhos.

E através ou por meio dos sonhos chegam novas e nem estou aqui nem aí para conversas de senso crítico, baixo a guarda para essas coisas, e canais abertos apenas na sintonia beleza. “O que a beleza é?”, pergunta — de novo — cantando, Dary Jr., do Terminal Guadalupe. E respondo eu, a Dary Jr., e a você leitores: beleza está no texto literário de Inês Pedrosa, nos contos reunidos no livro Fica comigo esta noite.

Amor I love you
O músico curitibano Marcelo Oliveira recorda que há sim melodia — música — em textos escritos e que escritores são, ou podem ser, músicos. Inês Pedrosa faz literatura. Literatura que também é música — Fica comigo esta noite poderia, então, ser um álbum, um álbum com doze canções. Silêncio, escute: “A ausência das tuas ininterruptas certezas, das tuas gargalhadas, dos teus passos saltitantes, dos teus vestidos cor-de-rosa, começou a irritar-me ligeiramente. Se tu não viesses, teria de sair de casa, procurar um ruído de fundo que afogasse a falta do teu espetáculo”. Leu? Escutou? Ouviu? E, sentiu?

A literatura de Inês Pedrosa abre possibilidades inéditas no imaginário, aponta sugestões antes dela impensáveis: clicks perturbadores, assim como “é uma fotografia banal, dessas que saem das máquinas em três minutos, quando é preciso renovar o bilhete de identidade. […] Nenhum dos seus traços transborda para os meus sonhos, uma senhora num sorriso de três minutos”.

Pause. (O inferno olfativo, texto que Gabriel García Márquez publicou num jornal, em setembro de 1950, fala de um sentido. “Um dia inteiro não é outra coisa senão uma vaga sucessão de odores”, escreveu Gabo. O que é a vida, então, senão uma sucessão de odores? Márquez ainda observa: “J.R.J. perguntava: ‘A que cheira o amor?’. Poder-se-ia responder-lhe: ‘Cheira a verde’.” O olfato e a memória dão as mãos e você — leitor, leitora do Rascunho — pode me dizer, pelo e-mail [email protected], qual é o cheiro do amor. A leitura de Fica comigo esta noite insinua muito sobre a questão. Mesmo). Play.

Essas memórias, crônicas e declarações reelaboradas literariamente por Inês Pedrosa tocam a eternidade por recriar o amor, e isso também inclui doses e momentos de amor entre pais e filhos, sobretudo no derradeiro texto do livro: “A minha filha vai morrer sem ter sentido o calor do ouro nos seus pulsos, o brilho de um anel no mais longo dos seus dedos. O esplendor da Europa sobreviveu sempre do fascínio pelas coisas quotidianas da beleza”. E beleza, como já se mencionou nesta resenha, se dá em todo e qualquer momento, nas entrelinhas, no silêncio até deste livro magnífico que reinventa a literatura (e a nossa língua) — e a nós brasileiros (humanos, leitores) desnuda todo um oceano a ser navegado, lido, descoberto enfim.

Fica comigo esta noite
Inês Pedrosa
Planeta
159 págs.
Inês Pedrosa
Portuguesa nascida em 1962. Trabalhou como jornalista nas principais redações de jornais e revistas de Portugal. Escreveu e teve publicados diversos livros nesta já consagrada trajetória autoral: Faz-me falta, Nas tuas mãos, Fotobiografia de José Cardoso Pires, 20 mulheres para o século XX, Anos luz — Trinta conversas para celebrar o 25 de abril, Carta a uma amiga, Do grande e do pequeno amor.
Marcio Renato dos Santos

É jornalista e escritor. Autor de Minda-Au e Mais laiquis, entre outros.

Rascunho