Quem gosta de futebol e já era grandinho nos anos 80 há de se lembrar do Canal 100. Quando as luzes da sala de cinema se apagavam, a tela se enchia de bolas coloridas de variados tamanhos, explodindo como se fossem fogos de artifício, e se ouvia em alto e bom som a musiquinha inesquecível: pananan nanammm…
Nesse momento abriam-se, de par em par, as janelas do sonho. E por elas atravessávamos de corpo e alma, entregues à grandiosidade das imagens, à magia da câmera lenta, ao encanto de uma voz potente e familiar que narrava cada lance da partida como se fosse uma decisão de Copa do mundo.
Criado no final da década de 50 por Carlos Niemeyer, o Canal 100 surgia como um telejornal provocador. Não era como os pequenos números da televisão: 2, 3, 5, 6, 7. Era o canal 100 ora essa, faça-me o favor!
Exibido antes das sessões de cinema, e renovado a cada semana, o telejornal abordava assuntos do momento, mas seu forte mesmo eram as matérias sobre futebol. Às vezes o filme em si era fraquinho e saíamos do cinema com aquela sensação de tempo perdido. Quer dizer, quase perdido. Por pior que fosse o filme, tínhamos assistido antes ao Canal 100 e isso já fazia valer o ingresso.
Em artigo para o site Cinemascópio, Kleber Mendonça Filho lembra bem o que era aquilo: “o futebol do Canal 100 tinha releituras de jogadas impossíveis de serem vistas das arquibancadas ou na televisão, um futebol em 35 mm, gingado nos seus mínimos detalhes. Mulheres na platéia geralmente amavam as imagens ampliadas de coxas musculosas dos atletas, os jogadores escarravam elegantemente ansiosos em câmera lenta, a tensão de uma barreira de homens preocupados com um chute potente, a bola rodopiando doida em direção à rede”.
Era isso. E era mais do que isso. Quando assistia às sessões do telejornal, ficava em mim a vaga intuição de que aquilo não era apenas efeito da arte de um grupo de cinegrafistas de primeira linha, com destaque para Francisco Torturra. Havia algo mais, que não se podia explicar pela técnica do cinema. Quem sabe fosse alguma coisa no campo da intuição, do espírito, talvez uma fagulha divina que se insinuava em algum lugar indecidível entre a câmera, a arquibancada, o gramado e, se metendo em meio aos torcedores, jogadores, juiz, bandeirinhas, gandulas, repórteres, encontrava o espaço exato para o indizível, para o que não se pode pegar com a mão.
Minha intuição ganhou força quando um cinema do Rio, o Estação Botafogo, resolveu apresentar sessões mais longas do telejornal. Não seriam sessões que antecedessem as de um filme qualquer, nada disso, o Canal 100 deixaria de ser o jogo preliminar e passaria a ser ele mesmo o grande clássico. Seriam sessões editadas, reunindo séries de apresentações de modo a compor cada uma mais ou menos o tempo de duração de um longa-metragem.
Não me lembro bem de quando de quando se deu o festival do Estação, mas me lembro do que pensei quando soube da notícia: não vai dar certo.
O Canal 100 funcionava justamente porque era curto e porque antecedia o longa-metragem. Colocado assim, no meio do palco, sob a luz dos holofotes, o coitado corria o risco de dar vexame, de gaguejar na frente da platéia, de esquecer a fala e ser vaiado ostensivamente por espectadores raivosos. Confesso, fiquei com pena do Canal 100. Nutria por ele um carinho fraternal e me doeu o coração saber que estaria exposto ao ridículo.
Claro que não poderia me furtar ao compromisso de assistir. Afinal, era quase um irmão que estava lá, na berlinda. Escolhi uma sessão que apresentava um histórico dos clássicos entre Flamengo e Botafogo.
Botafoguense de carteirinha, achei que não deveria ir sozinho. Seria fundamental convidar um flamenguista, já que o programa, se tinha a ver com futebol, exigia uma cerveja depois, acompanhada de apaixonado embate. Convidei meu amigo Miguel Falbo, músico de primeira e jogador de segunda, que apesar de tudo se dizia grande entendedor do esporte bretão.
Quando entramos na sala de cinema, o que vi foi absolutamente insólito. Todos os lugares praticamente tomados (tivemos que ficar espremidos num cantinho lá na frente) por alucinados torcedores, alguns portando enormes bandeiras, a maioria com latas de cerveja ou refrigerante nas mãos. Ao meu lado, um senhor estava sentado sobre uma almofada rubro-negra que trouxera de casa e tinha um radinho de pilha colado no ouvido. A almofada até dava para entender, fora um capricho, mas radinho de pilha!
Como diria o velho Simão Bacamarte, saído da pena genial de Machado de Assis: “insânia, insânia, e só insânia”.
Eram na maioria homens os espectadores, mas havia mulheres também. E muitos usando as camisas dos times (não entendi a presença de um moço branco, magro, pálido, com a camisa do Vasco — talvez tivesse errado de sessão, ou talvez fosse um poeta romântico em busca de emoções fortes). Boa parte da platéia fumava desbragadamente, o que tornava ainda mais nebuloso o cenário, de onde surgiriam dali a pouco as tão esperadas imagens na tela. Aquilo não era uma sala de cinema, era uma mistura de bar e Maracanã em dia de decisão.
Começa a sessão. Bolinhas coloridas pipocando na tela, música: pananan nanammm… Delírio da galera, bandeiras desfraldadas, uivos. Insânia, insânia, e só insânia. Diante de tudo isso, desse clima de paixão prestes a explodir, não era de se estranhar que, a cada cena passada na tela, os torcedores reagissem como se estivessem assistindo ao jogo ao vivo!
Quando Paulo César Caju deu um toque de classe, a turba alvinegra gritou em coro: PC! PC! PC! Quando Zico bateu uma falta que passou arrancando tinta do travessão, foi a vez dos flamenguistas soltarem um urro vindo do fundo d’alma: uhhh!!! Um gol do Gérson quase fez o cinema vir abaixo. Um gol, aliás, vindo de que lado fosse, era seguido de verdadeira apoteose.
Todos sabiam de cor e salteado o resultado dos jogos. Para os que não se lembrassem, um cartaz na porta do cinema ainda ajudava, anunciando os jogos (com placar e tudo) que seriam exibidos naquele horário. A maioria já havia assistido aos lances — boa parte mais de uma vez até —, e no entanto todos torciam como se fora a primeira vez.
Na condição de quem estava ali para analisar o fenômeno e quem sabe utilizá-lo como matéria-prima para um conto futuro, resistia o quando podia ao frenesi coletivo. Mas quando olhei do lado e ouvi o Miguel mandando o Mozer (do Flamengo) ir tomar naquele lugar, percebi que o caso estava perdido.
Não havia volta. Aquelas pessoas reunidas na sala de cinema eram a nata da nata do manicômio e o grande louco, na verdade, era eu. Eu era o próprio Bacamarte, era o estrangeiro, o estranho no ninho e só havia um jeito de salvar minha alma. E este jeito tomou forma quando surgiu a ocasião: um zagueiro do Flamengo deu um carrinho por trás, uma entrada criminosa no centroavante do Botafogo, e o juiz nem falta marcou. Então me levantei, convicto, e do alto da minha doida sanidade gritei a plenos pulmões: ladrão!
Pronto, estava decretada enfim minha entrada no país do delírio. Um garoto passou vendendo cerveja numa caixa de isopor e isso, claro, me pareceu perfeitamente normal, cheguei a perguntar onde é que ele estava que não havia chegado antes.
Comprei duas latinhas, dei uma para o meu amigo. Quando houve um pequeno intervalo na projeção, brindamos como se nossas latinhas fossem grandes canecas de vinho tinto nas mãos de valorosos guerreiros vikings. E enquanto bebíamos olhávamos desconfiados um para o outro, na breve trégua que antecedia o segundo tempo.