O jornalista e escritor Roberto Pompeu de Toledo foi o oitavo convidado da temporada 2007 do Paiol Literário, projeto realizado pelo Rascunho, em parceria com o Sesi Paraná e a Fundação Cultural de Curitiba. A partir de uma pergunta inicial — qual a importância da literatura na vida cotidiana? —, Pompeu de Toledo falou de mercado editorial, literatura, leitura, imprensa, história, entre outros assuntos.
• A criação do mundo
Estou convencido não só de que a literatura muda o mundo, mas também que ela criou o mundo. O que seria da Grécia se não fosse Homero, por exemplo? Homero criou a Grécia. Não existiria Grécia sem Homero. Que seria da Itália sem a Divina comédia? Ou da língua portuguesa sem Camões? O que seria da nossa concepção de inferno se não houvesse Dante? O que seria da nossa concepção de conflito humano se não houvesse Shakespeare? Isso não significa que todas as pessoas sejam tão seduzidas ou fascinadas pela literatura como alguns de nós. Acho que somos uma seita — muitas pessoas sentem os efeitos da literatura sem saber. Eu não imagino a minha vida sem a literatura — esta é uma forma de dizer que ela foi quase tudo. Para se ligar na literatura, primeiro deve-se ter um perfil meio solitário, meio de curtir a sua relação com essa coisa inanimada, que é o livro. Eu imagino que isso seja uma coisa cada vez mais difícil para as novas gerações, que estão cercadas de objetos animados, mais animados que o livro. E depois há algo meio misterioso: a pessoa ter certa inclinação para determinadas coisas, uma inclinação para a fantasia, para pensar o mundo — essas coisas que nos levam a ser seduzidos e fascinados pela literatura.
• Apoio para a vida
Desde cedo sempre achei um momento muito prazeroso estar com o livro. Eu preferia a companhia de um livro de Monteiro Lobato à brincadeira da rua. Na minha adolescência, comecei a querer escrever. Essa história de achar que há um apelo muito forte em torno da literatura, que pode dar (não digo um sentido a sua vida, porque não sei se a vida tem sentido) uma justificada para sua vida, alguma coisa para você se apoiar.
• Grandes homens
A literatura não tem mais o prestígio que teve. Se você comparar o que representou a literatura no século 19, quando talvez tenha sido o seu auge, no começo do século 20, com a atualidade, há uma queda de prestígio. A literatura sofre uma concorrência muito grande; não tem mais o monopólio. A literatura de ficção não tem mais o monopólio de contar uma história; há outros meios, há outros veículos que fazem isso igualmente. Não tem mais o monopólio do lazer quando a pessoa se recolhe para casa depois de um dia de trabalho. Não era o monopólio, mas, enfim, era quase a única possibilidade de lazer, de fantasia, de escape que a pessoa tinha. Hoje há múltiplas ofertas desse tipo. A concorrência que a literatura sofre ocasiona também a quebra de prestígio. Os grandes homens do século 19 eram escritores. Grandes homens é um conceito de que eu gosto, é meio passado, meio antiquado, mas enfim, existiam os grandes homens. O Nelson Rodrigues falava do grande jornalista. Que na redação tal passava o grande jornalista; hoje não existe mais o grande jornalista. Mas o escritor era o “grande homem”. Na França do século 19, o Victor Hugo era o grande homem; teve um enterro majestoso, o maior já visto em Paris; e os exemplos se multiplicam. O Dickens, na Inglaterra, foi o paradigma da sua época, da sua geração. Mesmo no começo do século 20, você tem estas grandes figuras, não mais talvez de grandes homens, mas do artista supremo — o Proust, o Joyce. Hoje, acho que não existe mais isso. A não ser em certos casos muitos especiais. Pode-se imaginar, por exemplo, nos anos finais da União Soviética, os dissidentes de certa forma encarnavam a consciência da nação. Nesse sentido, eles voltavam a ser uma referência, mesmo até escritores de qualidade duvidosa, mas eram ainda momentos excepcionais na história. As coisas hoje estão muito difusas, muito espalhadas. Em momentos muito específicos pode surgir uma liderança, pode surgir uma figura, não apenas um escritor, uma figura que encarne um desejo, uma tendência histórica.
• Em defesa do humano
Como reflexão sobre a condição humana, a literatura, na sua feição mais nobre, faz com que o homem se sinta homem, que os humanos se sintam humanos e defendam essa condição. Mas a literatura não tem essa exclusividade, o cinema pode ter um papel humanístico semelhante, pois também trabalha na ficção e pode assumir este caráter. Não é pelo fato de a literatura estar em desprestígio que não haja outros recursos para a defesa do humano, do protagonismo do homem, da condição humana. Não acredito que todos os outros meios que concorrem e que de certa forma contribuem para essa diminuição do papel da literatura estejam a serviço da desumanidade. Não. Todos eles também têm feições que podem se colocar a serviço da defesa do que nós consideramos o papel mais relevante, mais nobre da condição humana.
• Vender para milhões
Há muitos escritores que servem para vender. Eu não sei qual a receita que eles têm: o cara diz “vou escrever para vender” e vende. Não sei se alguém acerta desse jeito. Não acredito que grandes vendedores de livro, como o García Márquez, por exemplo, tenham planejado ser um escritor para vender. Aconteceu. No caso do García Márquez, ocorreu de ele escrever um estrondoso sucesso: Cem anos de solidão, e depois o resto veio em conseqüência. É claro que há o mercado e seus enormes interesses econômicos envolvidos; as grandes corporações, grandes editoras, a indústria cinematográfica, que de certa forma se acopla à criação literária. Agora, quanto à figura do escritor, para mim é um mistério. Mesmo o Paulo Coelho, eu não sei se ele planejou alguma vez: “vou escrever para vender milhões”.
• Um cânone
Hoje falta um cânone literário. A gente não sabe mais direito quem são os bons; está tudo muito disperso. O Brasil é muito grande, tem muita gente escrevendo. Evidentemente que a grande parte do que se escreve não tem qualidade. O que tem qualidade? Era tão fácil de estabelecer isso até 50 anos atrás. Nos anos 30, por exemplo, era muito fácil saber quem estava escrevendo. Olha, quem está escrevendo é o Graciliano Ramos, é o Jorge Amado. Havia os críticos, havia gente que estabelecia. Percebia-se uma tendência na literatura, sabia-se mais ou menos para aonde estava indo e aquilo refletia, aquilo dava certo sentido ao país naquele momento. E ajudava a produzir mais literatura. Hoje, não vejo a literatura conduzindo uma tendência ou mesmo dando uma cara para o país.
• O mercado editorial
Não conheço por dentro o mercado editorial, não sei o que se passa. Eu fico perplexo diante da imensa quantidade que se publica. Imagino que o editor seja um pouco um jogador apostando num cavalo. Então, ele aposta em dez ao mesmo tempo. Por isso, precisa publicar muito, uma vez que dentre os dez, um deles emplaca. Um deles paga o prejuízo que os outros vão dar. Vai ver que é isso, não sei. Uma coisa que me deixa perplexo é a quantidade de coisas que se publica. É uma das coisas que dificultam ter um retrato do que é literatura hoje.
• Dupla identidade
Esta dupla identidade (jornalista/escritor) é velha como o mundo. Tive a idéia de ser escritor, quer dizer, eu fui seduzido pela idéia de ser escritor antes de ser jornalista. Depois me engajei no jornalismo para ganhar a vida e porque achei que era uma profissão meio afim, que podia ajudar na construção de uma carreira de escritor. Foi um grande engano. O jornalismo acaba te tomando a vida de uma maneira que sobra pouco tempo para outra atividade. Além disso, opera numa onda diferente, numa faixa de onda diferente da do escritor. Estou me referindo ao ficcionista. O escritor de ensaio, de prosa conceitual, não-ficcional, é mais próximo ao jornalismo. E na medida em que você se aprofunda, se acostuma com a escrita jornalística, opera por razões profissionais, por razões de subsistência. Enfim, o seu dia-a-dia está tomado pelo ofício de jornalista. Você vai se afastando de meditar, de pensar e de treinar a sua faceta de ficcionista. Aos poucos, esta faceta foi sendo renegada na minha vida. Agora, recentemente, eu retomei o meu projeto de escritor, quando minha vida de jornalista deu chance a isso.
• Clave de ficcionista
Antes de chegar à conclusão de que tinha alguma coisa publicável — o romance Leda —, fiz várias tentativas de coisas que não passaram pelo meu crivo. Eu demorei a atingir um ponto em que considerasse algo publicável. Porque é uma coisa bastante diferente. Quem não tentou as duas coisas (jornalismo e literatura) talvez não tenha isso muito claro, mas é mais ou menos como um barítono tentar virar tenor. Quer dizer, é possível cantar em outra faixa. O Plácido Domingos era barítono e virou tenor. É até possível, mas precisa de grande esforço das cordas vocais, de treino e de persistência muito grande. Então, essa clave de ficcionista foi uma coisa que demorei a atingir. Leda trata da história de dois biógrafos, um escrevendo a biografia do outro. O narrador dá como certo que o próprio leitor já ouviu falar naquilo que ele vai revelar, uma história que o leitor já conhece. O leitor conhece aquele grande historiador de quem ele está falando. Isso remete um pouco ao jornalismo. Mas de qualquer forma há toda uma elaboração de imaginação e de técnica de escrever diferente. As outras tentativas, muitas vezes, fracassaram pelo tom jornalístico muito pesado. Por vício ou pela pesada formação, a coisa acaba adquirindo mais um tom de jornalismo, de crônica do que de ficção.
• Historiador amador
Em meu trabalho de historiador, de historiador amador, digamos, porque não sou formado em História, eu não pesquiso documentos inéditos, não tenho condições de fazer isso, não saberia fazer. Em A capital da solidão, fiz uma história da cidade de São Paulo, que me custou uma pesquisa de quatro anos. A minha pesquisa foi em cima de materiais publicados, ou publicados em livros ou mesmo documentos, mas não documentos inéditos. Juntei os pontos e busquei publicações esquecidas. Mas esta prosa não é muito diferente da prosa jornalística. Inclusive, a minha sedução pela história é antiga e muitos dos meus trabalhos jornalísticos, meus artigos, minhas colunas, têm como tema a história. Então, eu não era um estranho no ninho.
• Impasse criativo
Estou num impasse com relação a um romance que comecei a escrever e parei, mas pretendo retomar. Enquanto durou este impasse, escrevi alguns contos, a publicação ainda está distante, não está no horizonte. Os contos são poucos ainda e o romance, não sei quando vou retomar, quando conseguirei romper a barreira que surgiu em minha frente. Você está lá escrevendo e parece navegar em mar de almirante e, de repente, vem um precipício e você se afunda. Daí é preciso procurar alguma coisa para sair disso, para conseguir respirar de novo e tocar em frente.
• A literatura nos jornais
A cobertura da literatura dos jornais é muito em cima da proposta das editoras. Não sei se devia ser de outra forma. Eu esperaria que pudesse ser de outra maneira, mas não sei como fugir disso. Evidentemente o jornalismo tem de falar de novidade, tem de falar dos lançamentos, mas está muito em cima da editora que tem mais força, com poder de marketing, com mais presença, com mais simpatia, que cativou mais os jornalistas. Não sei se o que sai na imprensa é realmente aquilo que de melhor está sendo produzido. Eu sinto falta do jornalista de literatura. Muitos dos críticos se refugiaram na universidade e não mostram mais a cara. Não mostram mais a cara para um primeiro combate. Você [José Castello] é um dos poucos que ainda ousam exercer esta função. Eu não sei se a crítica feita na universidade — é claro que tem todo um trabalho a desenvolver — pode se chamada de crítica. É um estudo literário, tem todo seu valor, mas é outra coisa. Quando saiu Grande sertão: veredas, o Sérgio Milliet, que era crítico militante na época, escreveu no dia, no jornal da época: “este é um dos livros mais surpreendentes, mais espantosos que eu já vi na minha vida”. Eu imagino se o Grande sertão fosse lançado hoje, pessoas que estão na universidade não tomariam conhecimento dele, talvez senão daqui a dez anos.
• Grandes reportagens
Os veículos que poderiam publicar grandes perfis, por exemplo, rareiam. Há algumas tentativas, como, por exemplo, a revista Piauí. Acho que é uma tentativa recente de fazer um jornalismo com um sopro literário no meio. É uma revista inspirada na New Yorker, que é um padrão, um marco neste sentido, uma revista que lançou grandes autores, jornalistas-escritores, como Tom Wolff, e até livros como Hiroshima, de John Hersey, que é extraordinário; é uma reportagem feita um ano depois da explosão da bomba de Hiroshima. Ele foi mandado pela New Yorker e voltou com uma reportagem ouvindo testemunhas, contando as histórias de personagens que sofreram aquele fatídico 6 de agosto de 1945. Hersey chegou a Nova York com uma reportagem de tal porte e tamanho que ocupou a revista inteira. E eles não hesitaram em publicar, a revista inteira foi tomada por isso, e virou um livro, um clássico. E o Truman Capote fez a mesma coisa: saiu a serviço da New Yorker para fazer uma reportagem sobre um caso criminal e voltou com um livro: A sangue frio.
• Textos curtos
Na década de 90, voltei para a revista Veja para fazer a coluna — que era publicada um número sim, outro não — e grandes reportagens. Fiz algumas coisas, inclusive, com temas históricos, como Canudos. Fui lá e fiz uma longa reportagem, que ocupou umas vinte páginas da revista sobre o centenário da Guerra de Canudos. Também escrevi longa reportagem sobre Hiroshima. Hoje não tem mais nada. Nas redações dos principais órgãos de imprensa vigora um sentimento de que o leitor não gosta de ler. Não sei se já houve uma sondagem na alma de cada leitor para saber se isso corresponde à realidade, mas o que vigora é isso.
• Ler sempre
Sem a leitura não há bom jornalista. Hoje em dia estou meio afastado das redações, trabalho em casa há muitos anos, não tenho contato, não sei o que se passa na redação. Não sei como está sendo a formação, como é a nova geração. Para começo de conversa, ninguém sabe escrever sem ler, aprende-se a escrever lendo. Enquanto a escrita durar, vai necessitar de gente que tenha treinado, que seja treinado em leitura, para poder se comunicar na escrita.
• Leituras
Eu tenho duas vertentes de leitura: literatura e história. Eu já me dispersei mais na vida. Hoje, raramente vou pegar um livro que não seja dessas duas áreas. A minha prioridade são os clássicos e estou muito nas releituras. Eu acho que a vida é curta e me sobra pouco para ler os contemporâneos. Tenho de saldar uma enorme dívida com certas coisas. Agora, estou lendo a Divina comédia porque nunca cheguei ao fim. Também me empenho muito na leitura sobre a história do Brasil. Neste caso, leio tanto os clássicos como os bons lançamentos. Há muitas coisas ao alcance do leitor comum. Durante muito tempo, a história virou terreno exclusivo dos historiadores. Assim como a guerra é uma coisa muito séria para deixar na mão dos generais, a história é coisa muito séria para deixar na mão dos historiadores. Historiador fica lendo um ao outro e não sai para o público. No Brasil, até pouco tempo, havia aqueles livros históricos, aquelas pesadas teses acadêmicas, que acabam virando publicações impenetráveis, indecifráveis para o público. Isso está mudando um pouco, até por interferência dos jornalistas que andaram botando a mão nessa seara. Isso representa uma reação, uma novidade, uma reação dos historiadores acadêmicos que começam a escrever livros que o público compreende. Aliás, o José Murilo de Carvalho, vamos fazer justiça, está fora disso, porque ele sempre escreveu livros muito legíveis. O Ewaldo Cabral também é outro exemplo de historiador que faz livros importantes e legíveis ao público.
• A poesia
Eu escrevi poesia na juventude, sempre muito influenciado pelo João Cabral, que é o meu grande poeta. Aliás, há uma concorrência: o Jorge de Lima, que andei relendo ultimamente, é um grande poeta. Hoje, muito menos lido, com menos prestígio do que a trindade Bandeira-Drummond-Cabral, mas acho que imerecidamente. A trindade poderia virar um quarteto. O Jorge de Lima está atropelando por fora para, quem sabe, disputar cabeça a cabeça com o João Cabral. Tenho muita dificuldade com a poesia produzida contemporaneamente. Acho que se caminhou para um estado de hermetismo na poesia que, para mim, é cada vez mais complicado achar a epifania buscada na leitura. Gosto muito de poetas estrangeiros. Baudelaire e Eliot são os meus preferidos. São poetas que estou sempre lendo. Ultimamente, quando calha de eu escrever alguma coisa, é mais uma poesia bufa. Outro dia, publiquei na Piauí umas coisas nesse sentido, meio esculhambadas.
• Grandes autores
O grande livro brasileiro é Grande sertão: veredas; é extraordinário, mas eu não devo nada a ele no sentido de influência. Não se aprende a escrever com Guimarães Rosa porque ele é uma outra coisa. Aliás, em certa época as pessoas queriam escrever como Rosa; e nada mais lamentável do que essa literatura manca, um Guimarães manco. O grande escritor brasileiro é Machado de Assis. É um autor que eu li desde sempre e aprendi a escrever com ele, se é que eu sei escrever. Outro grande romancista que eu li desde sempre é o Eça de Queiroz. Graciliano Ramos, não leio mais com o mesmo prazer com que lia. Gosto muito de Memórias do cárcere. Mas aí não é ficção, é um dos melhores livros de depoimento pessoal, história, meio biográfico, não sei como se chama isso. Mas é um livro de uma experiência pessoal, que ao mesmo tempo é uma experiência histórica extraordinária, magnífica, fantástica. Já a ficção dele, pelo menos o Angústia, que peguei outro dia, não gostei como eu gostava na minha mocidade. Os grandes romances são os do século 19. Jamais se repetirá uma coisa tão fértil em matéria de literatura de ficção como aconteceu no século 19. O meu autor desse período é o Flaubert: com ele, eu aprendo, procuro aprender. Gosto de tudo, talvez um pouco menos do Salambô, mas gosto do Madame Bovary; entre os contos, tem um que considero extraordinário: Um coração simples, uma obra-prima da literatura universal. Gosto de Bouvard et Pécuchet, um livro extraordinário. Para mim, é um livro que resume o século 19 e anuncia o 20. Aliás, o Borges — não o citei até agora, mas é outro autor ao qual eu volto sempre; em matéria de América Latina, é o Borges: o resto é resto — dizia que Bouvard et Pécuchet anunciava o Kafka. É um livro circular, que não se resolve nunca, que você acha que vai e não vai. Isso é fascinante. É uma coisa esplêndida. É a história de dois solteirões aposentados (Bouvard e Pécuchet) que decidem dedicar o enorme tempo livre que têm a absorver a sabedoria universal, por partes. Daí, começam a estudar a biologia, mas chegam a beco sem saída e percebem que não é a biologia. Vão para a psicologia, e acontece alguma coisa e não é isso também, e buscam coisas mais simples. Em seguida, resolvem cultivar flores e estudam tudo a respeito do assunto; e assim vai o livro. Contando desta forma, não dá nem uma migalha do sabor que tem narrado por um grande escritor, em que o humor se reveza com a reflexão filosófica.
• O texto para Veja
Preciso entregar o texto [publicado semanalmente na última da revista Veja] na quinta-feira. Às vezes, chego neste dia e não tenho idéia do que vou escrever. Agora, uma coisa me norteia: tentar escrever uma coisa diferente do que já foi escrito. Como é uma revista semanal, chegará depois que os jornais já bateram exaustivamente nos diversos assuntos da atualidade. Então, ou abordo um tema completamente diferente daqueles que estiveram nos jornais, ou os abordo por um ângulo diferente. É a tentativa de sempre escrever alguma coisa que não martele naquela mesma tecla, tento fugir da repetição. Quanto ao fazimento propriamente, o artesanato da coisa, uma coisa é fundamental: saber onde vou concluir, onde vou chegar. É preciso resolver qual vai ser o desfecho, o fim da coisa. Aliás, isso vale para literatura também, à medida que você vai caminhando às cegas é complicado. Nem sempre é exatamente o fim, é a conclusão, o espírito da coisa. E escrevo com absoluta liberdade. Tenho absoluta liberdade para escrever o que eu quiser. O que me dá prazer é o texto bem realizado, seja qual for o assunto. Quer dizer, quando sinto que consegui expressar o que queria. E inversamente me irrita muito quando não consigo — o que acontece com freqüência.
• Os leitores de literatura
O futuro da literatura estaria arriscado se todo mundo fizesse como eu [só lesse os clássicos]. Mas o leitor comum não faz, quem faz são os profissionais da literatura, quer dizer, gente que encara a literatura profissionalmente, uma coisa mais vital. A maioria das pessoas está aí para ler os lançamentos, a última novidade, a coisa que apareceu no jornal, a coisa que a livraria está expondo na entrada da livraria. Então, a literatura está nas mãos dessas pessoas, elas garantem que ela prossiga.
• O Brasil acabou
Essa questão é a mais difícil do dia [pergunta sobre um artigo publicado na Veja, dizendo que o “Brasil acabou”]. Você veio de Pato Branco [um dos participantes viajou cerca de 500 quilômetros para assistir ao Paiol Literário com Roberto Pompeu de Toledo] para me botar nessa fria (risos). Aquele artigo foi escrito no momento de uma conjunção astral muito infeliz: desastre aéreo, escândalo no Congresso. Um desastre aéreo que revelou todo um desgoverno que não se limita ao setor aéreo; percebeu-se a descoordenação vigente somada a escândalos crônicos no Congresso. Então, peguei como mote uma entrevista do Fernando Henrique, ao João Moreira Salles, em que ele dizia: “Se esperar o quê? O Brasil é isso mesmo”. Somava-se essa frase dele com o sentimento geral que me perturba também. Sou uma pessoa que pensa obsessivamente no Brasil desde sempre, desde minha juventude, e esperava alguma coisa… Hoje, chego à conclusão de que não vai ser no meu tempo de vida, não vai ser. Tenho absoluta convicção de que o Brasil melhor, mais justo, mais equilibrado, não é para mim e não sei se vai ser para meus filhos. Então, esse artigo evidentemente tem uma força de retórica: “O Brasil acabou”, mas o Brasil, a gente sabe, não acaba, não é assim que acontece. As coisas acabam quando acaba a esperança. Para mim, a consciência de que não vai ser no meu tempo de vida é uma coisa dolorosa, uma coisa funda. Então, o artigo tem essa força retórica, mas não é uma mentira. Eu acho que é isso. Agora se você me perguntar: “É esse governo?” Não é esse governo, mas é esse governo também. É governo? É governo também, mas é a sociedade também. Então, é uma coisa que não é circunstancial e que se possa apontar. É por isso que eu acho que o Brasil acabou, por uma série de coisas.
• História na imprensa
Hoje em dia a pauta da história está mais ou menos presente nas publicações. Tenho a sensação de que hoje aparece mais história nos jornais e revistas do que já apareceu. Inclusive porque se publicam livros de história. Então, o jornalismo cultural volta e meia tem de se voltar para isso. Não que sejam matérias memoráveis, mas, enfim, o assunto vem à tona com mais freqüência do que vinha. O Brasil sempre foi muito ignorante de sua história, o brasileiro é muito ignorante de sua história. O fato de a imprensa se preocupar um pouco mais com isso vem para o bem. No jornalismo político, inclusive, é fundamental a pessoa ter o conhecimento da história do Brasil, senão “vai achar que nunca antes na história desse país”… É preciso saber o que aconteceu antes no país. O Brasil está sempre começando de novo.
• O futebol brasileiro
É escandaloso o que acontece com o futebol brasileiro. O Brasil voltou à condição de colônia do século 19, de exportador de matéria–prima. Isso tudo envolvendo, evidentemente, esquemas de corrupção. Infelizmente, nessa coisa a imprensa não botou a mão, nunca se esclareceu. Todo mundo sabe o que acontece, os interesses escusos que levaram a essa situação. É uma situação que daqui a pouco acaba; o futebol brasileiro tem um desinteresse que já avança e em breve será completo. Os campeonatos são cada vez menos interessantes; uma seleção brasileira de gente com a qual o público já não se identifica, mal conhece a maioria dos jogadores.