Erico Verissimo costuma ser pouco — ou nada — lembrado como um autor de contos. Sempre nos vêm à mente os seus painéis de proporções épicas, sobretudo o inventário da história do Rio Grande do Sul que é a caudalosa trilogia O tempo e o vento. Ou, então, o romancista de histórias urbanas, bem narradas, queridas pelo público e que alcançaram popularidade nos tempos em que a literatura de qualidade tinha espaço nas listas de mais vendidos, caso de Clarissa, Caminhos cruzados ou Olhai os lírios do campo. Podemos nos lembrar até do Erico mais alegórico e político de O senhor embaixador, O prisioneiro e Incidente em Antares. Mas dificilmente pensaremos no Erico contista, mesmo porque ele lançou apenas um volume de narrativas curtas, Fantoches, seu primeiro trabalho, que veio a público em 1932. Depois disso, escreveu contos de maneira esparsa.
Fiel à intenção de reeditar com capricho toda a obra do escritor de Cruz Alta, a Companhia das Letras solta agora justamente Fantoches e outros contos, unindo o volume que colocou Erico no mercado aos outros contos escritos ao longo da carreira. Só que desta vez a editora caprichou um pouco demais. Na primeira parte do livro — Fantoches —, a Companhia das Letras se baseou na edição comemorativa de 40 anos da publicação original, em que Verissimo, já consagrado e a poucos anos de sua morte, relê os textos juvenis e faz comentários acerca deles nas margens das páginas. São anotações, brincadeiras, desenhos, referências, dicas de onde vieram as idéias dos enredos. E acima de tudo autocrítica: ele só conseguia ver ali a imaturidade do autor iniciante (“pecadilhos da mocidade”), que abusa do lugar-comum, das expressões pomposas, das frases infelizes, das repetições (“outra vez essa palavra!”) e que beira o plágio quando apenas deveria parecer influenciado.
Então o que há de errado na decisão da editora de resgatar essas anotações? De fato são documentos históricos, essenciais para compreendermos a composição e o conteúdo das histórias, além de constituir uma rara oportunidade de penetrarmos a intimidade do artista, seu modus operandi e, caso raro, sua modéstia e insegurança (e de serem um luxuoso quitute para os fãs). O mais correto, no entanto, seria colocar tudo isso como apêndice ao fim do livro. Na opção pelo fac-símile, as constantes anotações, riscos, ilustrações e sublinhados ao longo do texto dificultam bastante a leitura, além de distrair a atenção. Lê-se uma frase e, como está sublinhada, vai-se ao canto da página ver o que Erico tem a dizer a respeito dela. É um tanto dispersivo e incômodo. Na segunda parte, a dos outros contos, a diagramação é normal — um alívio.
Boa parte dos relatos da juventude é escrita em forma de peça. É o caso de Os três magos, que abre Fantoches e outros contos, de atmosfera vaudeville, beckettiano antes de Beckett. A trama não é situada em lugar algum; parece encenada em um palco. Nela, três homens sem nome, um poeta, um proxeneta e um ladrão se encontram em um banco de praça na noite de Natal. Entediados e deprimidos com sua solidão e suas vidas inócuas, resolvem “brincar de Natal” e encarnar os Três Reis Magos em busca do menino Jesus. O conto é uma bela surpresa, pois a linguagem seca e sem sentimentalismos de Erico (“na roda literária que eu freqüentava, a pieguice era considerada um pecado mortal contra o bom gosto”, explica) faz com que percebamos a miséria e a insensatez das figuras sem que entremos em contato direto com elas. O contrário ocorre em A dama da noite sem fim, também escrito como peça, em que quatro homens devaneiam em uma fazenda. O autor aqui tentou recriar o clima de loucura de Os três magos, porém pesou demais a mão e essa impressão acabou ficando forçada. Todos falam coisas sem sentido, meio bêbados, sem a sutileza da outra narrativa, em que a naturalidade com que os personagens agem só acentua a insanidade deles.
Fantoches segue nesse ritmo incerto, alternando momentos interessantes (poucos) e fracos (a maioria). É possível observar em todos os relatos as sementes do grande autor do futuro. Por outro lado, não dá para ignorar a quantidade de clichês que atravessa todas as histórias. Chico é, provavelmente, o pior conto do livro. O próprio Erico comenta, em uma notinha: “Se um dia houver um concurso de lugares-comuns acho que vou me inscrever nele com este conto”. A modéstia não redime os defeitos dele. Chico é um menino pobre, órfão de pai, a mãe caída inútil na cama, o irmão beberrão e violento. Na noite de Natal, auge da solidão, descobre que Jesus é o filho de Deus e vai até a igreja pedir que a sua vida melhore. Há a previsível epifania, a redenção e até a reviravolta no final.
É o único dos textos que resvala no sentimentalismo, é preciso que se diga; os outros, mais grave do que serem piegas ou mal escritos, são esquecíveis. Não há enredos que prendam, que comovam, que divirtam. Outro defeito grave é a falta de ousadia do autor no trato da localização das histórias e na psicologização dos personagens. Quase todos são “bonecos de tinta e papel” — fantoches —, sem substância, sem desenvolvimento interior. Erico, mais maduro, percebeu essa hesitação: “Por que fugia tanto o autor das personagens de carne, ossos, sangue e nervos da vida real”. Quanto aos cenários esquálidos, ele se questiona: “medo das brutais realidades do cotidiano da minha terra natal?”. Por um ou dois momentos, como no citado Os três magos (por ser o primeiro, antes que o leitor enjoe do artifício?), funciona. Depois, fica banal. Até porque Erico nunca foi um alegorista do porte de um Kafka ou um Beckett. Seu território ideal de trabalho é o realismo. A não ser que realidade e fantasia se misturem sem que o primeiro deixe de ser a matéria principal, como em Incidente em Antares.
Triângulo amoroso
O gaúcho ainda não sabia a hora de parar quando acertava. Criador versus criatura é o melhor texto da primeira parte de Fantoches e outros contos. Começa como uma história básica de triângulo amoroso. Um flerte, o crime contra a honra consumado. O marido entra, dá o flagrante e mata o amante. Não tem coragem de dar cabo da esposa. É então que os três (inclusive o morto) se revoltam com o destino imposto a eles e chamam o autor para exigir que ele desfaça a desgraça, a la Pirandello ou o Woody Allen de A rosa púrpura do Cairo. É bom lembrarmos que em 1932 a metalinguagem ainda não era um recurso literário tão batido quanto hoje. Foi uma solução bem interessante, além de bem-humorada. O problema é que ao longo do livro aparecem outros quatro contos com a mesma prerrogativa dos personagens que abandonam a ficção e se voltam contra o autor. Para que tanto? Surge até uma explicação frouxa e ingênua para essa “revolta” dos personagens: “Se o infeliz solta o poema aos ventos da publicidade… adeus! Os pobres versos passam a pertencer ao mundo, deixam de ser propriedade do artista, poluem-se, transformam-se, invertem-se, desfiguram-se”.
As narrativas melhoram bastante no segundo segmento do livro. Aqui vemos o Erico que fez história — injustiçado, aliás, tido por alguns como um escritor de segunda linha. É verdade que ele não promove as ousadias formais de Guimarães Rosa, os questionamentos metafísicos de Clarice Lispector ou a angústia talhada a frases curtas de Graciliano Ramos. Mas poucos souberam contar uma história como ele. E em tempos em que o pós-modernismo reduziu o humanismo e a vida da literatura a truques e jogos opacos de linguagem, é essencial resgatar alguém com zelo tão especial pelo narrar.
Em comum nessas narrativas, a profunda solidão que acomete seus protagonistas. Um pai de passado alcoólatra ignorado pelo filho, pianista brilhante, e pela esposa (As mãos do meu filho). O suicida que agora se encontra em um barco escuro e onírico, ignorado pelos vultos que passam para lá e para cá (O navio das sombras). O general que degolava a torto e a direito para conter a revolução e agora está moribundo, dependente de empregados (Os devaneios do general). O empresário milionário corroído pelo ciúme que sente pela esposa bem mais jovem (Esquilos de outono). O professor de piano que se apaixona por uma aluna (Sonata). E o homem com câncer que se sente culpado por nunca ter voltado à cidadezinha onde nasceu e onde deixou mãe e namorada (A ponte). Em meio a enredos convencionais, simples e não simplistas, Erico até mostra algum arrojo. Em Sonata, o pianista vê que vinte anos no tempo parecem ter voltado sem que ninguém, além dele, percebesse. No final o presente volta: uma reflexão sobre a textura temporal, a sua circularidade e seus efeitos. O medo de morrer do personagem de A ponte remete à recente novela de Philip Roth, Homem comum.
É quase impossível acreditar que o autor das primeiras duzentas páginas de Fantoches e outros contos (um “negro passado literário”) seja o mesmo das cem últimas. Uma notável evolução, a de Erico Verissimo.