O romance morreu. Viva um outro romance

A quantas andam a saúde e a auto-estima da melindrosa e volúvel literatura brasileira?
Ilustração: Marco Jacobsen
01/11/2007

Neste texto para o Rascunho me proponho a fazer um apanhado, ainda que incompleto e aleatório, de algumas reflexões que imaginei incluir algum dia num ensaio, do qual logo desisti ao ponderar com os botões de minha preguiça: meu negócio é fazer ficção e não proselitismo, divulgação de idéias, etc., menos ainda descobrir a pólvora ou consertar o mundo. Empresa de tal envergadura tem de ficar mesmo a cargo das novas gerações, que invariavelmente cultivam o saudável e edificante hábito de inventar ou reinventar todas as coisas, e tudo realizar, tudo ou quase tudo, de maneira rápida, eficiente, infalível e completa. E olha que atualmente no Brasil há “novas” gerações à beça, para todos os gostos e proveitos, algumas datadas e outras se autodenominando disso e daquilo — geração 90, dos transgressores, etc. —, com muita gente boa, além de jovem, transgredindo principalmente o vernáculo. Sem pudor, sem gentileza, sem o menor savoir-faire, alguns despetalam, amarfanham e até pisoteiam a última flor do Lácio, ô doideira!, inculta e bela. Não raras vezes, com o incentivo e o aplauso de alguns setores da mídia. Pudera! Por motivos que se conhecem, embora inconfessáveis, há gente também nesta área interessada no empobrecimento do texto literário, empenhada em nivelar tudo por baixo, devido principalmente a razões de paridade e simetria. Não, não, Freud não explica isso — para ser franco, Freud não explica quase nada. Quem o explicou e dissecou em pormenores, tintim por tintim, foi o clarividente Balzac, em Ilusões perdidas, o sétimo volume de A comédia humana, e nos dois panfletos que compõem Les journalistes, livro finalmente editado no Brasil, com boa apresentação de Carlos Heitor Cony (Ediouro, 2004). Atualíssimos, Ilusões perdidas e Os jornalistas (este ficou fora, até como apêndice, de A comédia humana) deveriam ser leitura obrigatória nas redações, que os devorariam a um só tempo como bíblia e breviário. E mais: freqüentemente relidos e, a seguir, postos em discussão, digamos, uma vez por mês, antes de uma reunião de pauta. Fica a sugestão.

Tornemos à vaca-fria.
Não fiz anotações para este texto, mas tomara que ele dê pano para mangas, rendendo incontáveis papos, conversas infindáveis, assuntos mil, ou seja, assuntos para 673 tangos e três mil milongas. Com uma condição: sem polêmica. Porque em geral polêmica não respeita diversidade de opiniões, e pior: polêmica gera tão-somente confusão, acúmulo e aguçamento de conflitos nas relações interpessoais, o que não leva a lugar algum, apenas deteriorando de vez o que já não presta e parece sem conserto — o mundo.

Respeitadas as diferenças de pontos de vista, talvez me ocorra algo de substancial a dizer a quem esteja apto e disposto a ouvir. Um só que seja — um só “ouvinte” — já está bom.

Em outros tempos, seria o caso de se deitar manifesto, posto que os manifestos, particularmente aqueles versando sobre arte, pululavam mais que pulga em barriga de vira-lata sem dono ou piolho em cabeça de guri abandonado, só perdendo em termos de estatística para as guerras: por alto, tivemos quinze mil guerras nos últimos cinco mil anos, o que dá uma média de mais de três guerras por ano, sem contar as patrocinadas por Bush pai e Bush filho.

TODOS GRITAM MAS, POR DEUS, ALGUÉM ‘TÁ A FIM DE ESCUTAR?
Como porém uma coisa decorre de outra, pois que tudo se interliga, se enlaça e se entrelaça, num fluir constante — “panta rhei” (tudo flui), para não esquecer o supracitado Heráclito —, algumas indagações incômodas se impõem, entre as quais a seguinte: —

Adiante-se uma constatação, tão certa como a morte e os impostos, da qual os intelectuais em geral não se dão conta: em todas as linhas, o Ocidente fracassou, malogrou-se, naufragou. Gangrenou-se. Foi pro brejo. Se lascou. Totalmente. Sem clemência. Sem remissão. Até virar terra arrasada. Culturalmente, e não só culturalmente, o Ocidente já era. Se houvesse culpa — e culpa não existe, culpa é invenção ou criação do pensamento, logo, arbitrária, irreal, sem substância, pois tudo que provém do pensamento não tem sustentação, nem o próprio pensamento —, se nos inclinássemos a buscar culpados, pergunto: de quem seria a culpa do malogro do Ocidente? Dos intelectuais, ora, ‘tá na cara. A começar por Aristóteles, o grande, o magnífico sábio de Estagira. De forma geral, parece-me impossível não mencionar, ainda que en passant, e mais adiante, um pouco da perversa herança recebida dos gregos, precipuamente do Estagirita — esta, sim, sem trocadilho, um verdadeiro presente de grego: cavalo de Tróia, pomo da discórdia, túnica de Nessus. Para citar, completíssimo, o mitológico presentão. De grego. Não dos gregos. Por que de e não dos? Porque mesmo no mundo helênico parece que havia escapatória, alternativa, se tivésssemos tomado outra via, abraçando corrente de largo curso e caudalosa, a do pré-socrático Heráclito, por exemplo. Isso contudo é coisa anterior ao tempo em que Berta fiava, não carece e tampouco adianta chorar agora, afinal o deus do bispo Macedo assim o quis e o diabo não ligou.

— Como vai a literatura contemporânea brasileira? Sorridente, coquete, boazuda, sacudida, bem-maquiada, bem-produzida, sarada, boa de cama (opa! de leitura) e gostosona? Ou, pelo contrário, perrengue, maltrapilha, azeda, meio corcunda, gaguinha, magriça, sifilítica e cheia de achaques? A quantas andam a saúde e a auto-estima da melindrosa e volúvel solteirona?

Mal, eis a resposta. Muito mal. Bah! Ela caiu num fundo de poço de dar dó. De arrancar lágrimas aos olhos da Vênus de Milo — sem braços e mãos para secá-las, tadinha! — ou à estátua de Iracema em praia do Ceará. A última notícia nos põe ao corrente de que a distinta e caquética dama foi levada, desfalecida e esquálida, pra UTI (unidade de terapia intensiva) do Hospital das Letras. Escapará? Seu mal tem cura? Há esperança quando nada para alguns dos seus parentes e aderentes? Não, não há esperança, não se vendo sequer vestígio de cura no horizonte. Menos ainda uma data para a enferma deixar a UTI.

ALÔ, MÁRCIA DENSER! SABE DE ONDE ESCREVO?
Da bacia do Araguaia, minha querida, de um lugar inóspito denominado No Orobó do Urubu — isto mesmo, No Orobó do Urubu —, onde, justo agora, recordo o fato de que, sem conhecê-la, assisti ao lançamento de seu livro de estréia, o Tango fantasma, da Alfa-Omega, do Fernando Mangarielo, no Sindicato dos Jornalistas em San Pablo — há quanto tempo, hein, Mam’selle? Então, você conservava um M. de Maria no meio do nome, ó Imaculada! Como vê, minha memória de elefante sofre cada vez mais de elefantíase. E desde aquela noite de autógrafos jamais a vi, ma reine, embora nunca a perca de vista, registrando-se inclusive um período em que sabia coisas vindas de você de cor e salteado, tatatá, tatatá, na pontinha da língua, pois não! Contos, fique bem entendido.

Bom, falei de Márcia Denser de propósito e a propósito, visto que ela sintetiza, simboliza e representa, a meu ver, a parte vigorosa da literatura contemporânea brasileira, vigorosa quando nada no que concerne à linguagem — a parte que não morreu. Nela, sim, ao lado de outros gatos-pingados — gatas também? —, vocês podem e devem confiar, desde que mandem pro inferno — “E que tudo mais vá pro inferno” — o estribilho daquela outra canção, um hit da Bossa Nova, “Não confie em ninguém com mais de trinta anos”. Título? Ah, sim, Com mais de 30, de Marcos Valle & Paulo Sérgio Valle. Confiram aí.

Ao contrário do que apregoava esta pérola da MPB, hoje, tanto em literatura quanto em outras manifestações artísticas, só dá para confiar — unicamente, exclusivamente — em quem tem mais de 50 janeiros. E ainda por cima de maneira extremamente seletiva.

D’accord, Mam’selle? (Oui. Merci.)

QUEM TEM MEDO DE ARISTÓTELES?
Por duplo motivo ou dupla e necessária limitação — espaço cedido pelo jornal e indelicadeza do tema —, ficaremos apenas nos prolegômenos. Quer dizer, as formulações terão por força que ser rápidas, curtas, grossas, telegráficas — a típica abordagem de raspão, o que pode inviabilizar a intenção, comprometer o projeto, tornando-o ininteligível, ô chefinho. Mas é o jeito. Não há outro remédio. Tentemos.

De cara confesso que, ao contrário do saudoso e precoce Campos de Carvalho, o qual — ao perceber a lua vindo da Ásia — tratou de matar logo aos 16 anos o seu professor de lógica, eu de minha parte só consegui promover o meu a defunto, apunhalando-lhe o coração, decorridas mais de trinta primaveras. Mas o fato é que matei. Agora, com o velho morto e sepultado, sem o menor vestígio de remorso — porque o remorso manifestamente nasceu da culpa, e, conforme já se sabe, culpa, no frigir dos ovos, não existe, é invenção da mente perturbada —, cumpre lembrar o óbvio, e o óbvio indica que, grosso modo, Aristóteles tem a maior responsabilidade na construção do edifício cultural do Ocidente. Tendo tal evidência assente e presente, talvez fosse o caso de se perguntar:E se o diabo da lógica aristotélica estiver errada? Hã?

Ora, se as premissas forem incorretas, falsas — e são —, o resultado final, não importa em que área seja e do que estejamos tratando, fatalmente redundará em catástrofe.

Longe de mim evocar o episódio da Gameleira, para não macular o nome do grande poeta Joaquim Cardozo, mas se um engenheiro se engana nos cálculos e manda erguer trinta andares sobre fundações feitas para agüentar somente dez, mais cedo ou mais tarde a edificação trincará e um dia — ploft! — implodirá. Tal é a situação do Ocidente, onde todas as coisas, sem exceção, encontram-se de cabeça para baixo e de pernas para o ar. Cada vez mais para baixo, cada vez mais ao deus-dará. Isto porque o nosso modo de existir — de viver e conviver, e viver basicamente é conviver — se encontra preso, submetido, agregado, subjugado, jungido ao racionalismo, ao dualismo, ao individualismo e outros ismos afins, dos quais a vida necessariamente escapa, aos quais a vida em hipótese alguma se sujeita, se deixa aprisionar. No Ocidente, as grandes e pequenas questões, vale dizer, todas as questões passam pelo racionalismo e seus símeis de um modo bem menos metafórico e muito mais primário, grosseiro mesmo, que o camelo pelo fundo da agulha bíblica.

De relance, à moda do turista que só dispõe de duas horas para dar uma olhadinha em todas as maravilhas do Louvre, ou da Galleria degli Uffizi, em Firenze — e portanto deixa Paris sem conhecer o Louvre e a terra de Dante apenas com uma vaga reminiscência das paredes do palácio Pitti —, vejamos algumas dessas questões, rapidinho, repito, como quem vê um filme, ou melhor, o trailer de um filme. Mas, mesmo para isso, necessita-se de coragem — a coragem de não seguir cegamente, feito robô ou autômato, o rebanho, que por sua vez se deixa abater, ou, em outras palavras, se deixa conduzir pelo líder — religioso, político et cetera —, sabendo-se de antemão que líder, mas que palavra oca, dispensável, apenas serve para rotular uma espécie de indivíduo absolutamente pernicioso, nocivo, cuja ação tende tão-somente a inibir e, mais grave ainda, a impedir o desenvolvimento real e integral do homem que ele se propõe a dirigir, o mesmo homem que, por ignorância, abre mão do governo de si próprio. Ah, as massas, grande piada são as massas! O que não falta, aliás, é quem queira liderá-las. Quem nos queira liderar. Quem nos queira “salvar”. No plano terreno e no plano divino. Ditador, presidente da República, governador, prefeito, congressistas, excelências, majestades, autoridades civis e militares em geral, miúdas e graúdas, Papa, Dalai Lama, santos, gurus, pastores evangélicos e por aí afora. Todos a fim de comandar e “salvar” a macacada. De graça? Nunca. Sempre a troco de alguma coisa, pois que tudo no mundo — família, inclusive — gira em torno das relações de troca, em função da propriedade. E buscam nos liderar lançando mão de diferentes armas mortíferas, a partir da mais eficiente e perigosa delas, a palavra, essa ferramenta de embuste — imprescindível nas relações de troca — também dos escritores, esses entes imbatíveis em matéria de competitividade, individualismo, vaidade, ambição e egolatria, centrada esta na aquisição de prestígio, de fama e outras quimeras.

Falávamos há pouco da coragem, da coragem não de discordar — discordar não vem ao caso, pois discordar contém sempre algo de destrutivo —, mas da coragem de não reconhecer, de deixar de lado, de não invocar a opinião de quem quer que seja — de Aristóteles, seus seguidores, de cambulhada também os êmulos, idealistas ou materialistas, não importa quem — em quaisquer áreas, inclusive estética. Por que se faz imprescindível perder o medo de Aristóteles como símbolo da autoridade? — pergunto. Exatamente por causa da autoridade, eis a resposta iniludível e inelutável. Pois onde há autoridade, essa sanguessuga perversa e pervertida, esse leviatã pernicioso, prevalecem o medo, a desordem, o caos, a destruição. E mais: miséria, sofrimento e dor, estagnação, escravidão, morte e conflito, além da mais completa e absoluta falta de criatividade. Tangível ou intangível, a autoridade jamais deixa de corromper, posto que a corrupção lhe é intrínseca, inerente, plasma do seu sangue. Como ela não subsiste sem seguidores, os quais por sinal a mereceram e se fizeram dignos dela no jogo de atração mútua e interação há milênios estabelecido, os condicionamentos acabam levando homens e mulheres a um estado de resignação que às vezes degenera em masoquismo, comprazendo-se o ente humano com a impossibilidade de andar por conta própria, de gerir a própria vida, até mesmo de pensar. Mas, bolas, pensar para quê, né?, se outros — filósofos, teólogos, antropólogos, sociólogos, o escambau — já pensaram por nós e para nós. Não só pensaram como também concluíram, ficando conosco apenas a fácil e mecânica tarefa de macaquear a conclusão. Ainda por cima com a agravante de que o pensamento é estreito e terrivelmente limitado, e por se encontrar preso ao passado jamais conseguirá resolver qualquer dos problemas fundamentais do homem, posto que tais problemas e sua respectiva solução transcendem a razão, o intelecto ou que outro nome se queira dar à nossa estrutura cerebral.

Em lugar de resolvê-los, o pensamento estorva, atrapalha, fecha o caminho. Muitos homens de gênio sabiam e sabem disso. Einstein, por exemplo, não descobriu somente a Teoria da Relatividade mas também o caminho que o pensamento bloqueia. Tanto que Einstein escreveu: “Penso noventa e nove vezes e nada descubro; deixo de pensar, mergulho em profundo silêncio — e eis que a verdade me é revelada”. Não creio que alguém terá o topete de dizer que Einstein não sabia das coisas. Em sua maioria, escritores não sabem, mas Einstein sabia. Será que o romance não pode ser conduzido por este caminho que o pensamento bloqueia? Poeta, William Blake o conhecia. Os dadaístas de Tristan Tzara tiveram um vago vislumbre de onde ele partiria. Os surrealistas de André Breton e Philippe Soupault o pervagaram, indo um pouco mais longe. A escrita automática no mínimo irrompeu como ousada tentativa. Mas ninguém foi fundo, ninguém o percebeu com clareza e avançou pelo caminho de forma resoluta e correta. Ainda. Tratando-se de ficção, isto é possível? Alguém o fará?

Este, no entanto, constitui tópico a ser tratado com vagar, quem sabe adiante. Caso haja espaço. Ou em outro dia.

Por enquanto, cumpre enfatizar que a autoridade imposta por outrem formou a bitola, o padrão, o background a partir do qual se pode vislumbrar o cenário de onde brotam os “heróis” e “mártires”, todos de fancaria, quando não psicopatas que comandaram guerras e revoluções, erigirindo-se em “estadistas”, sendo que dúzias deles escaparam por pouco de cumprir destino de serial killer ou de Raskólnikov em carne e osso. Aí se engloba a totalidade dos chamados grandes homens ou “heróis”, na realidade pseudo-heróis, já que heroísmo não passa de patarata, conceito inconseqüente, construção mental, vagabundagem da mente. Em Homero até que eles aparecem bonitinhos e, a braços com os deuses do Olimpo, a começar por Zeus, ficcionalmente se apresentam divertidos, a exemplo de outros que entretêm as crianças nos contos de fada, sem esquecer o folclore, etc., pena que tudo isso tenha dado um trabalhão dos diabos a Joseph Campbel na composição do clássico em que desvela as mil faces dos mitos e símbolos produzidos pela psique. Fora daí heróis inexistem, nunca existiram, não passando o heroísmo de criação da mente, substrato do mundo dos conceitos, projeção, fuga, preenchimento de carências do animal humano.

Bom, não poderia ser diferente, mas cabe o registro: o romance tradicional trabalha fundamentalmente com heróis e vítimas, ou com o anti-herói, que essencialmente nada altera. Pelo contrário, confirma e sustenta o insustentável “herói” e a pobrezinha da “vítima”. Na melhor tradição e de acordo com a nomenclatura que adotamos, com eles, “heróis” e “vítimas”, lida toda a família ficcional brasileira, ou seja, o romance e sua irmãzinha, a novela, sem esquecer o conto, o filhotinho querido, o porquinho-da-índia, o brinquedinho predileto, o bichinho de estimação. 

POÉTICA, ÉTICA, RETÓRICA: EM TODAS O ESTAGIRITA DANÇOU
Prevalece o consenso de que, não obstante as adaptações a momentos e conjunturas sociais e históricas, tudo o que se formulou ou se escreveu até hoje, no mundo, a respeito das artes da palavra, traz a marca e a assinatura daquele que já foi chamado de o “rei do equilibrismo e da esperteza filosófica” — Aristóteles. A assertiva tanto vale para a arte de persuadir (Arte retórica, Livro I, de Aristóteles), quanto para o da Arte poética, que trata de literatura e que o filósofo teria deixado incompleto. Na Ética Nicomáquica, dedicada ao seu filho Nicomachos, ele como que a universaliza, o que soa como algo risível, pois reduziu a ética em certos trechos a um manual de boas maneiras, o que parece mais hilariante ainda. Grosso modo, tal concepção universalizada fatalmente desaguaria no mar de cinismo, hipocrisia, impudicícia e imoralidade em meio a cujas procelas o ente humano atualmente se debate, afogado em dor e desespero, sem descortinar praia e, muito menos, um porto à vista. Variando de lugar para lugar, deste para aquele grupo, ética, moralidade e quejandos são convenções e nunca uma armadura que o Bem, o mocinho, utiliza contra o Mal, o eterno e asqueroso vilão, na luta maniqueísta que ambos estariam travando — e na verdade realmente a travam, mas tão-somente dentro da cabeça barulhenta e confusa das pessoas. Homens como Einstein (cf. em Escritos da maturidade) alcançaram a mais clara e perfeita percepção do tema. O que — podem perguntar — o escritor tem a ver com ela, a Ética Nicomáquica ou aristotélica? Tudo, claro, e caso o valor dela seja nulo, nenhum, a ficção que a tomou como background, et pour cause, corrompeu-se, apodreceu, nulificou-se, fato de que mais cedo ou mais tarde o leitor de per si irá se dando conta.

Já a retórica e, em especial, a poética de Aristóteles formam a parte espessamente trevosa, sinistra e intransponível do peculiar labirinto em que a literatura e outras artes da palavra se meteram, não havendo possibilidade de o romance tradicional, nosso anti-Teseu, escapar, visto que o seu fio de Ariadne há muito já se partiu e se perdeu. Da perspectiva aristotélica, o valor atribuído à comédia — imitação dos homens inferiores — soa tão arbitrário quanto o conferido à tragédia, que de mãos dadas com a epopéia produziria a mimese envolvendo seres humanos de padrão superior. Em termos de forma-pensamento, esta acaso terá sido a pior semente, o veneno mais letal que Aristóteles inoculou no Ocidente. E notem que já houve quem visse o Estagirita menos como filósofo e mais como habilíssimo sistematizador de idéias, acrescentando que, homem poderoso em Atenas, entre as suas mais altas virtudes não se incluía a firmeza de caráter. No seu encalço vieram outros pensadores, até mesmo — pasmem! — Pascal, que pretendeu transacionar com Deus. Algo impensável, digamos, em Emerson, que escreveu: “Viajar é o prazer dos tolos”. E é. O que não impede você de ser um globe-trotter, de correr mundo, deleitando-se com a beleza das paisagens. O próprio Emerson viajava. Mas imagino que psicologicamente não gastou nada e em nada se comprometeu com suas viagens, inclusive à Inglaterra. Emerson certamente quis dizer que a única viagem necessária, imprescindível, é a de volta para casa, para o interior, para dentro de si mesmo. Que eu saiba, o único escritor a levar essa diretriz hoje às últimas conseqüências é J. D. Salinger. O resto prefere reproduzir, macaquear o padrão. Eu, inclusive. Contudo, se não empreendermos tal viagem — chamem-na de autoconhecimento ou o que seja —, continuaremos escrevendo romances que, excetuando-se a forma, o virtuosismo, o ornamental, nada acrescentarão. Ou melhor, acrescentarão: mais confusão à confusão generalizada.

ACHAQUES DA VELHA SENHORA: OS DE ANTES E OS PÓS-MODERNIDADE
Tantos são os achaques que acometeram a literatura e as artes em geral ao longo do tempo — menos a música erudita, obviamente — que não podemos descrevê-los, nem sequer enumerá-los num apressado artigo de jornal. E, para cúmulo, a ficção, a distintíssima e dengosa macróbia das letras, sofre ainda de uma doença grave, incurável, cuja etiologia confunde-se com a dos males de toda a humanidade, não convindo, a propósito, esquecer que nós somos a humanidade, cada ente humano é a humanidade, pouco importando sua posição e profissão no mundo — escritor, pedreiro, etc. Como o meu espaço chega ao fim, corramos com o andor, ainda que o barro do santo espatifado caia sobre a nossa cabeça e nos emporcalhe a roupa. Então, vamos a jato, na base de pílulas, do pot-pourri. Combinado? Combinado. Vejam a seguir.

• TEMPO: Vários escritores preocuparam-se com o tempo. Houve algum progresso, mas não muito, porque faltou uma ruptura com o próprio tempo. E, mais importante: conhecer, saber o que é o tempo, a distinção entre tempo cronológico e tempo psicológico, o que precisa ser extinto, etc. Sem isso, nada feito.
FLUXO DE CONSCIÊNCIA: Desde que Édouard Dujardin o inventou, escritores de todo mundo usam fartamente o monólogo interior. Já afirmaram que Joyce o levou às últimas conseqüências no famoso monólogo que encerra o Ulisses. Levou nada. Joyce andou longe mas sem sair do lugar, visto que o devaneio de Molly Bloom se desenrola todo dentro e de acordo com as categorias do velho padrão — ciúme, medo, passado, etc. Tanto que começa com um Sim e termina com outro Sim. Simbolicamente, uma dupla confirmação de que os conteúdos da mente não se alteraram.
AMOR: Não existe e jamais se escreveu sequer um único romance de amor no mundo. Simplesmente porque o que chamamos de amor — a palavra mais deturpada da Terra — pode ser tudo, menos amor. As montanhas de volumes e as miríades de palavras gastas com o tema referem-se geralmente ao mundo dos desejos, do prazer, que não tem o menor parentesco com amor. Desejos e prazer enquadram-se na sentença do comediógrafo Terêncio (192 a.), que juristas antigos gostavam de citar em latim: Homo sum: humani nihil a me alienum puto, quer dizer, “Sou homem: não julgo alheio a mim nada do que é humano”. Lembrem-se: tudo o que é meramente humano é corrupto, corruptível e corruptor. No entanto, temos de vivê-lo. O prazer, por exemplo. Mesmo cônscios de que não há prazer sem dor. Prazer e dor andam juntos, onde um se apresenta logo a outra comparece. Já amor, não. Amor é incondicional, nada pede em troca, dispensando declaração, intenção e adjetivos. De sorte que para escrever romances de amor, se isto for possível (e é), temos de praticá-lo, o que absolutamente não fazemos nem nas relações interpessoais, cotidianas, nem em quaisquer outros tipos de relações que envolvam o nosso “universo” sensorial. A questão seria: é possível, sem negá-lo, ultrapassar o humano em ficção? Se não, ficaremos indefinidamente escrevendo variações acerca do mesmo tema, repetindo titicazinhas sobre triângulo amoroso, ciúme, “paixão”, medo, culpa e outras banalidades. Há possibilidade de emendar a sentença terenciana, completando-a? Embora a matéria de que tratamos não guarde parentesco com esoterismo, superstição e religiões formais, vai um exemplo: um religioso (e não da religiosidade cósmica de Einstein) arriscou a seguinte formulação: “Sim, o preceito terenciano está correto, mas só pela metade. Falta-lhe a outra parte da dualidade, para compor a unidade na diversidade, que o tornará perfeito. Ficaria assim: ‘Sou homem. Logo, não julgo alheio a mim nada do que é humano. Mas o divino também me é familiar”. Transcrevi o complemento em itálico negritado unicamente à guisa de registro. Para quem acredita no divino. Para os que não crêem, eu diria: imagino que continua sendo perfeitamente possível e factível introduzir conteúdos novos na ficção brasileira. A MPB já o tentou com sucesso. Por exemplo: com Raul Seixas. Até certo ponto e independentemente da pobreza estética da maioria das letras dele, Raulzito acertou. No mais, pensem em Nietzsche. Em Emerson. Em Einstein. Em tantos outros. E verão que é possível, sim, empreender um outro tipo de romance, em substituição ao que ainda cultivamos. Este com efeito já morreu, como fruto do passado, do conhecimento acumulado, adquirido, tão distante do conhecimento real.

Epa! O espaço acabou. Não dá para ir além. Havendo interesse, a gente retoma este assunto num outro dia. Pode ser?

Antônio José de Moura

Antônio José de Moura é autor de Cenas de amor perdido, Quilômetro um, Mulheres do rio, Dias de fogo, Sete léguas de Paraíso, entre outros.

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