O fetichista e a adúltera

Entre 1851 e 1856, Flaubert travou uma infatigável luta com as palavras para escrever a obra-prima Madame Bovary
Ilustração: Ramon Muniz
01/11/2007

Gustave Flaubert escreveu Madame Bovary entre 1851 e 1856. Na verdade, “escrever”, neste caso, é um eufemismo. O verbo não dá conta de todos os estados emocionais experimentados durante a execução do projeto e, muito menos, do confronto ocorrido — não só naqueles anos — entre o escritor e as palavras. Mas podemos acompanhar os altos e baixos da relação autor/obra lendo a correspondência de Flaubert, da qual uma pequena parte foi traduzida no Brasil[1].

No início de novembro de 1851, ele escreve à amante, Louise Colet: “[…] Avanço penosamente no meu livro. Eu gasto bastante papel. Quantas rasuras! A frase demora a vir. Que diabo de estilo escolhi! Que desgraça os temas simples!”. E conclui: “Eis-me comprometido por um ano pelo menos”. Poucas semanas mais tarde, em fevereiro de 1852, percebe que previu mal o futuro: “[…] Isso está tomando proporções formidáveis em termos de tempo. Com certeza, eu ainda não terei terminado até o início do próximo inverno”. E as dificuldades persistem: “Não escrevo mais que cinco ou seis páginas por semana”.

Mal abril começou, ele está desesperado:

Estou mais cansado do que se empurrasse montanhas. Há momentos em que tenho vontade de chorar. É preciso uma vontade sobre-humana para escrever e eu sou apenas um homem. […] Você sabe quantas páginas eu vou completar dentro de oito dias desde que voltei daí? Vinte. Vinte páginas em um mês e trabalhando pelo menos sete horas por dia; e qual o fim de tudo isto? O resultado? Amarguras, humilhações internas, nada em que se amparar a não ser a ferocidade de uma fantasia indomável.

Ainda escrevendo a Louise, sua privilegiada interlocutora, a 24 de abril ele experimenta sentimentos contraditórios:

Eu completei […] vinte e cinco páginas (vinte e cinco páginas em seis semanas). Foram duras de conseguir. […] Eu as trabalhei tanto, recopiei, mudei, remanejei, que no momento não vejo mais nada. […] Levo uma vida áspera, deserta de qualquer alegria exterior e onde não tenho nada em que me apoiar a não ser uma espécie de raiva permanente, que às vezes chora de impotência, mas            que é contínua. Eu gosto do meu trabalho com um amor frenético e pervertido, como um asceta do cilício que lhe arranha o ventre. Às vezes, quando eu me encontro vazio, quando a expressão se furta, quando, depois de ter garatujado longas páginas, descubro que não fiz nem uma frase, caio no meu divã e fico ali paralisado num pântano interior de tédio.

Eu me odeio e me acuso por essa demência de orgulho que me faz arquejar atrás da quimera. Um quarto de hora depois, tudo mudou; meu coração bate de alegria. Na última quarta-feira, eu fui obrigado a me levantar para apanhar meu lenço de bolso; é que as lágrimas corriam sobre o meu rosto. Eu me enterneci escrevendo, eu gozava, deliciosamente, da emoção de minha idéia e da frase que a revelava e da satisfação de tê-la encontrado.

Até o início de junho de 1856, as cartas oscilarão do júbilo ao cansaço, do desespero ao encontro repentino de forças para perseverar, da repugnância ao prazer de conseguir a palavra correta para o que ele deseja dizer.

“Passo várias horas a procurar uma palavra”, afirma em maio de 1852. No dia 23 do mesmo mês, sente-se “estéril como uma pedra”. Mas em 18 de julho, comemora: “Quinta à noite, às duas horas da manhã, eu me deitei tão animado com meu trabalho que às três me levantei e trabalhei até o meio-dia. […] Eu ainda sinto o gosto dessas trinta e seis horas olímpicas e fiquei contente, como na felicidade”. Entretanto, passados quatro dias, se diz pronto a “recopiar, corrigir e rasurar toda a primeira parte”, concluindo: “Que coisa desgraçada é a prosa! Não termina nunca; tem-se que refazer sempre”. E logo depois, a 27 de julho, a constatação lapidar: “Ao escrever esse livro, eu sou como um homem que tocasse piano com bolas de chumbo sobre cada falange”.

No dia 26 de outubro, afirma ter “vinte e sete páginas (quase prontas) que são o trabalho de dois grandes meses”. Em janeiro de 1853, diz ter conseguido 65 páginas em cinco meses. Em abril, contando a partir de janeiro, alcança a marca de 39 páginas. E em meio à “fadiga” e à “fetidez do tema”, que se alastram por todo o abril, ele lamenta: “Há três semanas que estou a escrever dez páginas! Passo dias inteiros a mudar palavras repetidas, a evitar assonâncias! E quando trabalho bem, estou menos adiantado no fim do dia do que no começo”.

Quando chega outubro, ele detesta o livro e a si mesmo:

Este livro, no ponto em que estou, me tortura de tal modo (e se eu achasse uma palavra mais       forte, eu a empregaria) que eu fico às vezes doente fisicamente. Há três semanas que tenho com freqüência dores de fazer desmaiar. De outras vezes, são opressões, ou melhor, vontade de vomitar na mesa. Tudo me desgosta. Acho que hoje me teria enforcado com delícia, se o orgulho não me tivesse impedido. É certo que às vezes sou tentado a mandar tudo se foder, e a Bovary em primeiro lugar. Que santa idéia maldita eu tive em apanhar um tema semelhante! Ah! eu bem os conheci, os pavores da Arte!

No entanto, pouco antes do Natal, a 23 de dezembro, às duas da madrugada, Flaubert, apesar de “fatigado com a lentidão” e de temer “o despertar, as desilusões das páginas recopiadas”, é um homem seduzido pela escrita:

[…] Bem ou mal, é uma coisa deliciosa escrever, não ser mais para si mesmo, mas circular em toda             a criação de que se fala. Hoje, por exemplo, homem e mulher tudo junto, um e outro amante ao mesmo tempo, eu passeei a cavalo, numa floresta, por uma tarde de outono, sob folhas amarelas, e eu era os cavalos, as folhas, o vento, as palavras que eles diziam e o sol vermelho que fazia entrecerrar as pálpebras afogadas de amor. É orgulho ou piedade, é o extravasamento néscio de uma auto-satisfação exagerada? Ou então um vago e nobre instinto de religião? Mas quando eu rumino, depois de tê-las sentido, estas alegrias, vejo-me tentado a fazer uma oração de agradecimento ao bom Deus, se eu soubesse que ele me ouviria. Que ele seja bendito por não me ter feito nascer negociante de algodão, escritor de vaudeville, homem espirituoso etc.!

Mais tarde, em 18 de abril de 1854, ele reclamará novamente: “Quando é que virá o dia bem-aventurado em que escreverei a palavra fim? Em setembro, vão fazer três anos que estou neste livro. É muito, três anos passados sobre a mesma idéia, a escrever com o mesmo estilo […], a viver sempre com os mesmos personagens, no mesmo meio, com os flancos de encontro à mesma ilusão”.

No ano seguinte, 1855, em maio, escrevendo ao amigo Louis Bouilhet, diz temer que o fim do romance pareça “acanhado, pelo menos como dimensão material”. Quando setembro está prestes a terminar, trabalha “mediocremente e sem gosto ou talvez com desgosto” e se diz “verdadeiramente cansado”. Finalmente, a 1º de junho de 1856, revela a Bouilhet ter enviado o manuscrito ao editor — mas só depois de suprimir “cerca de trinta páginas, sem contar nisso aí muitas linhas subtraídas”, além de detalhar vários outros cortes.

Método e paixão
Se há várias maneiras de narrar uma história, há um número quase infinito de se escrever uma biografia. Esse período de 1851 a 1856 poderia ser visto sob diversos prismas, mas prefiro pensar nesses anos torturados como uma seqüência de meses centrais na carreira do escritor, não apenas por terem resultado em Madame Bovary, mas principalmente pelas centenas de páginas jogadas no lixo, pelo número inexprimível de palavras rasuradas e frases refeitas, pelas horas de angústia e pelo gozo, ainda que efêmero, de chegar a um resultado — uma infatigável luta com as palavras.

Flaubert não estabeleceu apenas um método de trabalho. Sim, ele sabia que “todo talento de escrever não consiste senão na escolha das palavras. É a precisão que faz a força” — diz a Louise Colet, a 22 de julho de 1852. Mas não se tratou somente de disciplina. Flaubert tinha consciência das correntes que o prendiam, maiores que os seus próprios limites. Sabia que a expressão humana é claudicante, falha, imperfeita; que há um abismo separando a idéia e o discurso, a emoção e a palavra. O narrador de Madame Bovary conclui em certo trecho que “a palavra humana é como um caldeirão rachado, no qual batemos melodias próprias para fazer dançar os ursos, quando desejaríamos enternecer as estrelas”. Ter a clara consciência da imperfeição, da rudeza dos meios humanos, do idioma, e ainda assim persistir, demanda mais que obediência a um método: exige obsessão, exige viver em um mórbido estado de vigilância e pesquisa, cuja primeira conseqüência é a solidão, e, logo a seguir, a visão fatal de seus semelhantes como uma horda de estúpidos e insensíveis. De fato, em 22 de abril de 1853, ele escreve: “O único meio de viver em paz é colocar-se, de um salto, acima da humanidade inteira e não ter nada em comum com ela, a não ser pelo olhar”. Se Flaubert agiu corretamente ao se transformar em um tipo especial de misantropo, isso não importa. O que interessa é que, pensando dessa forma e agindo como agiu, exatamente por esses motivos, deu vida a Emma Bovary.

Em seu ensaio sobre Flaubert[2], Henry James chama nossa atenção para a personalidade de Emma: “[…] Ela mergulha cada vez mais fundo em duplicidade, dívidas, desespero, e encontra um fim trágico […]. E faz tudo isso enquanto permanece absorvida pela visão e pela intenção românticas, e permanece absorvida pela visão e pela intenção românticas enquanto rola na lama”. Ora, a febre de Emma reflete a febre de seu criador. Flaubert não escreve apenas, mas se espoja nos rascunhos da obra, cego a tudo que não seja o romance, reclamando do que o obriga a interromper seu trabalho e procrastinando o mais que pode os encontros com Louise Colet, dedicado exclusiva e apaixonadamente à literatura, escrevendo e devorando Rabelais, Cervantes e Montaigne — a vida que ele chamou de uma “orgia perpétua”.

Fetichismo
Mas para se viver em uma “orgia perpétua” faz-se necessário desejar não somente o clímax do prazer — esse gozo que se aproxima tanto do estertor. O bom amante sabe que a volúpia é feita também do amor aos detalhes; às vezes, do apego fetichista a este ou àquele pormenor. E Flaubert demonstra ser o amante perfeito. Uma cena, para ele, requer a evocação de tantas minúcias, que chegamos a nos perguntar se, de fato, tudo é imprescindível. Mas tudo é imprescindível. Um editor malevolente poderia suprimir algumas frases — e Madame Bovary continuaria genial —; perderíamos, entretanto, uma série de elementos que, combinados, não só forjam verossimilhança, mas seduzem, modelam o mundo do qual nos aproximamos como animais curiosos, sedentos de uma realidade que não seja a nossa.

Quando Charles Bovary visita pela primeira vez a propriedade dos Bertaux, onde Emma vive com o pai, a quinta se revela para o leitor em meio à sonolência do médico. Amanhece, e não bastasse o vapor úmido que se eleva de uma grande estrumeira, “sob o telheiro havia duas grandes carroças e quatro charruas com seus chicotes, seus cabrestos, sua equipagem completa, entre os quais as peles de carneiro pintadas de azul sujavam-se com o pó fino que caía dos celeiros”. Ao penetrar na casa, Bovary vê o almoço dos criados fervendo ao redor do fogo, as roupas úmidas secando na lareira, e “a pá, as pinças e os foles, todos de proporções colossais”, que “brilhavam como aço polido”, e a “abundante bateria de cozinha onde se refletiam de forma desigual a chama clara do fogão juntamente com os primeiros raios de sol que entravam pelas vidraças”. É a exaltação do detalhe. Mas não há um único elemento que, ao ser retirado, possamos dizer: — Realmente, era desnecessário.

Nas seguidas visitas que Bovary faz aos Bertaux, Emma, ao se despedir,

sempre o acompanhava até o primeiro degrau da escada externa. Enquanto não traziam seu cavalo, ela permanecia ali. Já se haviam despedido, não se falavam mais; o ar livre a rodeava, levantando em desordem os pequenos e loucos cabelos de sua nuca ou sacudindo em seus quadris os cordões do avental que se enroscavam como bandeirolas. Uma vez, num dia de degelo, a casca        das árvores ressumava no pátio, a neve fundia nos telhados das construções. Ela estava na soleira da porta; foi procurar a sombrinha, abriu-a. A sombrinha de seda furta-cor que o sol atravessava iluminava com reflexos móveis a pele branca do seu rosto. Embaixo, ela sorria no calor tépido e ouviam-se as gotas d’água, uma a uma, que caíam sobre o chamalote esticado.

O jogo de luz, a brisa e a leve tensão da despedida, ampliada pelo silêncio de Emma e Charles. E as gotas d’água a entrecortar o silêncio, propagando ainda mais a tensão — Flaubert interliga os elementos, e semeia no leitor o desejo de estender a mão para conceder à cena o sentido que falta: o tato.

Algum tempo depois do casamento, os Bovary são convidados ao castelo do marquês de Andervilliers. Emma penetra em uma galeria na qual se sucedem, “sobre a madeira escura do lambri”, as pinturas que retratam os antepassados da família. Ela tenta, em vão, captar todas as imagens, sorver cada detalhe, mas é impossível:

Depois, mal se distinguiam os que vinham em seguida, pois a luz das lâmpadas, caindo sobre o tapete verde do bilhar, deixava flutuar uma certa sombra na sala. Escurecendo as telas            horizontais, quebrava-se contra elas em finas arestas seguindo as fendas do verniz; e, de todos         aqueles quadrados negros debruados de ouro saíam, cá e lá, uma porção mais clara de pintura, uma fronte pálida, dois olhos que fixavam o observador, perucas que caíam sobre os ombros empoeirados dos trajes vermelhos, ou então a fivela de uma jarreteira no alto de uma panturrilha roliça.

A miríade de pormenores, a volúpia por descrever, por chafurdar num oceano de cores, formas e perfumes, se repetirá sempre. Flaubert agoniza para dar conta de toda a realidade, e parece, a cada novo parágrafo, próximo do paroxismo ou do êxtase, o que configura uma sobrecarga emocional permanente. Quando Emma retorna do castelo, sofrendo pelo fato de abandonar aquele mundo ideal, fecha “piedosamente na cômoda seu belo vestido e até seus sapatos de cetim […]”. Mas não só. Falta algo à frase. E então Flaubert nos oferece o complemento preciso: “[…], cuja sola amarelara-se com a cera deslizante do assoalho”. A busca pelo pormenor exato faz com que Flaubert escreva a um passo do esgotamento; mas ele se dispõe a pagar o preço, a fim de que nada escape ao leitor.

Amor e ódio
Esse extremo cuidado com os detalhes nos fornece indícios da personalidade de Emma desde as primeiras páginas do romance. Em uma das visitas de Bovary à quinta dos Bertaux, o futuro casal bebe licor. Depois de servir a si mesma uma dose pequena, Emma leva o copinho à boca: “Como estava quase vazio, ela inclinava-se para trás, para beber; e com a cabeça deitada, avançando os lábios, com o pescoço retesado, ria por nada sentir, enquanto, passando a ponta da língua entre os dentes finos, lambia aos poucos o fundo do copo”. A adúltera já não está toda nesses gestos? Sua luxúria não freme na ponta dessa língua ágil e ardente, louca para se libertar?

Flaubert descreve bem inclusive quando recusa pormenores ao leitor. Depois de reencontrar Léon Dupuis em Rouen, Emma iniciará seu segundo caso de adultério, agora com o jovem escrevente, que conhecera em Yonville. Quando saem da catedral e se fecham na carruagem que passa a trafegar por toda a cidade, nada mais sabemos. O escritor não precisa dizer o que ocorre por trás das cortinas — e também não precisamos ter, sob os olhos, um mapa de Rouen, a fim de acompanhar a sucessão de ruas. O infindável e tortuoso percurso alimenta num crescendo a nossa desconfiança e, ao mesmo tempo, explica tudo. À nossa imaginação bastam a mão nua que passa sob as cortinas e joga fora a carta de despedida que Emma havia escrito a Léon, agora transformada em pedacinhos de papel — e depois de horas fechados ali, a mulher que desce sozinha, “caminhando com o véu abaixado e sem virar a cabeça”. Minutos depois, sabendo que o marido a aguarda em Yonville, o narrador arremata nossa certeza, dizendo que Emma sente “no coração aquela covarde docilidade que é, para muitas mulheres, ao mesmo tempo como o castigo e o preço do adultério”.

O escritor nos faz amar e odiar Emma Bovary, mas principalmente amar. Poucos homens não se encantariam ao ver a clara nudez dessa mulher contrastando com o carmim das cortinas de má qualidade e, a melhor parte, depois que não existem mais segredos, ela, tão experiente em dissimular e trair, agindo como uma menina envergonhada:

A cama era uma cama de casal de acaju em forma de barca. As cortinas de levantina vermelha que desciam do teto fechavam-se baixo demais, perto da cabeceira que se alargava; e nada havia no mundo de mais bonito do que sua cabeça morena e sua pele branca destacando-se sobre aquela cor púrpura quando, com um gesto de pudor, ela fechava os dois braços nus, escondendo o rosto nas mãos.

Nossa imaginação despreza as cenas chulas e o vocabulário mortalmente cru ao nos depararmos com uma descrição que oferece, melhor que as palavras grosseiras, o frenesi da entrega e da devassidão sem limites:

Despia-se brutalmente, arrancando o fino cordão do seu corpete que lhe sibilava ao redor das ancas como o escorregar de uma cobra. Ia na ponta dos pés nus ver ainda uma vez se a porta estava fechada; depois, com um único gesto, deixava cair, juntas, todas as suas roupas; — e, pálida, sem falar, séria, abatia-se contra seu peito, com um longo estremecimento.

Mas ela se entrega apenas quando ama. Chantageada, oprimida pela cobrança das dívidas e das promissórias, pelo processo e pela penhora dos bens, pode insinuar a Léon que ele deveria roubar para ajudá-la, mas não aceita ser seduzida pelo notário de Yonville. Revolta-se, tenta persuadir Rodolphe, o primeiro amante, a lhe dar dinheiro, e quando percebe que está perdida, manipula ainda uma última vez. Demonstrando a argúcia e a agilidade de reflexos que a tornam exuberante, manipula para poder se matar. E a mesma avidez daquela língua que buscava o fundo do copo de licor, reencontramos na mão que, arrancando a rolha do pote de veneno, mergulha para retornar cheia do pó branco que Emma se põe a comer sofregamente.

A contradição
Numa carta de setembro de 1852, Flaubert escreve a Louise Colet sobre a dor das mulheres, de como se aproximou delas e as observou para escrever seu romance: “Eu conheci suas dores, pobres almas obscuras, úmidas de melancolia guardada, como estes pátios fundos das casas de província, cujos muros estão cheios de musgo”. Pergunto-me o quanto esta afirmativa é sincera. Quem escreve não é o homem que pretendia viver acima da humanidade, sem nada ter em comum com ela, “a não ser pelo olhar”? A contradição do escritor revela mais que a mera simpatia pelo drama alheio. O intenso desejo de perfeição, a busca febril dos detalhes e das palavras precisas — essas forças certamente dominam Flaubert. Mas no íntimo desse homem há lugar para algum tipo de solidariedade que o aproxima de seus semelhantes. Caso não fosse assim, ele não teria criado uma personagem tão múltipla, em relação à qual não só ele, mas todos nós, com maior ou menor exatidão, podemos dizer: Madame Bovary c’est moi.

Notas

[1] Flaubert, Gustave. Cartas exemplares (organização, prefácio e notas: Duda Machado). Imago Editora, RJ, 1993.

[2] James, Henry. Gustave Flaubert. Livraria Sette Letras Ltda., RJ, 1996.

Madame Bovary
Gustave Flaubert
Trad.: Fúlvia Moretto
Nova Alexandria
360 págs.
Gustave Flaubert
Nasceu em 1821, em Rouen, na França, filho de um médico de família abastada. Sua mãe descendia de uma das famílias mais antigas da Normandia. Tentou cursar a faculdade de Direito em Paris, mas, sendo reprovado nos exames, dedicou-se à carreira de escritor. Seu livro mais conhecido, Madame Bovary, foi publicado em 1856. O romance causou escândalo na França, e seu autor foi julgado sob a acusação de ser imoral. Apesar de a corte o absolver, os críticos puritanos da época não o perdoaram pelo tratamento que deu ao tema do adultério. Flaubert escreveu ainda Salambô (1862), Educação sentimental (1869), A tentação de Santo Antônio (1874) e Três contos (1877). Deixou inacabada uma sátira sobre a futilidade do conhecimento humano e a onipresença da mediocridade: Bouvard e Pécuchet, publicada postumamente, em 1881. O escritor morreu em 1880, aos 58 anos.
Rodrigo Gurgel

É escritor, editor e crítico literário.

Rascunho