O que fizeram com Zizi

Conto de Sonia Coutinho
Ilustração: Osvalter
01/11/2007

Quanto tempo faz que conversei com Zizi, no Jardim Botânico? Engraçado, neste momento, aqui sentada em minha cadeira de balanço, não consigo lembrar.

Foi há dois dias? Duas semanas? Dois meses? Ou dois anos? Tudo parece meio desfocado, minha cabeça já não anda bem.

Talvez eu não consiga contar sua história completa, Zizi. Mas, pelo menos, alguma coisa tentarei dizer.

Conto que, na hora combinada, percorri a aléia dos abricós de macaco, em plena floração, e cheguei ao portão principal do Jardim, onde Zizi, naquele instante, descia de um táxi, bem em frente.

Segundos depois, enquanto ela se aproximava de mim, fixei o olhar em seu rosto, à procura da Moça Bonita de Antigamente; mas não achei nenhum vestígio daqueles traços.

Encontrei, sim, uma espécie de espelho, com imagens sem nenhum glamour. Eu/ela, os rostos enrugados de duas professoras de ensino médio aposentadas (ganho um pouco mais), já com quase 70 anos.

Zizi, divorciada de Um Marido que Nunca lhe Deu Nada; eu, uma estranha solteirona, com uma longa e perigosa história de amores e desamores, mas que ficou para trás; agora é o vazio.

Meu Deus, o que faz a passagem do tempo!

Logo depois, porém, sem lamentar nem comparar mais, entreguei-me à alegria de rever, depois de tantos anos — mesmo ela agora macilenta, mesmo feia e desmazelada (será que sempre fora assim, ou eu, simplesmente, esquecera?) — minha Antiga Amiga Zulmira, ainda moradora em Solinas, onde ambas nascemos, e em rápida visita ao Rio.

Na véspera, Zizi me telefonara:

— Tatiana, nunca me esqueci de você. Desejo muito te ver. Não liguei antes porque perdi o número do seu telefone e só hoje uma velha conhecida me disse qual é. Pena que já estou voltando para Solinas.

Então, combinamos a visita ao Jardim Botânico, porque um dos grandes prazeres da minha vida, atualmente, é mostrar este lugar que amo aos amigos de Solinas que visitam o Rio, para onde vim há muitos anos, trazida pela oferta de emprego feita por um amigo do meu pai.

Sua história, Zizi… Sim, a que você me contou e eu quero contar. É uma história que poderia ser resumida numa única frase, ou em duas linhas. Uma frase que, se bem os conheço, estão dizendo neste momento todos os moradores de Solinas. Algo como: “A mulher que foi roubada… O filho dela…”

Mas é uma frase que ainda não consigo inteiramente dizer, são duas linhas que não consigo inteiramente escrever.

A história de Zizi, considero agora, sentada em minha cadeira de balanço, é do mesmo gênero de uma história de estupro. Que mulher estuprada gostaria de falar do que lhe fizeram? E se achassem que fora ela quem provocara tudo, como costumam pensar?

Paguei o ingresso de Zizi — o meu, não pago, sou sócia — e entramos no Jardim Botânico.

Enquanto falávamos sobre banalidades, eu rapidamente revia, em minha cabeça, o roteiro que pretendia cumprir com ela. Mas, vendo como estava alquebrada, já não sabia se seria capaz da longa caminhada que, no entanto, estou acostumada a fazer todos os dias.

Do portão principal até o Orquidário e o Bromeliário, passando pelo Jardim Japonês, Roseiral, Chafariz, Lago Frei Leandro…

Apesar de tudo, havia animação nela, quando começamos a caminhar. Fomos do portão principal diretamente para o Jardim Japonês e, para observar o nado sinuoso das três gordas carpas, entramos no abrigo de madeira construído em cima da represa.

A etapa seguinte eram as rosas, mas Zizi não estava mais atenta. Mesmo antes de chegar ao roseiral, começou a contar, com uma veemência que me espantou, O Que Tinham Feito com Ela.

Dizia, ahn… que lhe haviam tirado tudo, acabara pobre e sozinha. E de nada adiantava reclamar, protestar, enfatizou.

Depois de algumas frases, porém, Zizi se interrompeu.

— Na verdade, tenho tentado, com todas as minhas forças, não conversar mais sobre essas coisas — disse. — Passei anos em que só conseguia falar sobre isso, a ponto de as pessoas se cansarem de mim, perdi todas as minhas amizades. E fiquei doente, e envelheci. Mas vou contar só um pouquinho, só um resumo de tudo, para você ter uma idéia do que tem sido a minha vida nesses anos em que não nos vimos. Se não, você não entenderá quem eu sou agora.

Engasgada, à beira dos soluços, Zizi silenciou, nós duas paradas numa das aléias circulares do roseiral.

Aproveitei para observar os maciços de rosas — brancas, vermelhas, chá, lilases, e um tipo curioso, a amarela com as bordas rosadas.

O tempo estava agradável, nem quente nem frio, com uma leve brisa. O sol, amenizado por algumas nuvens brancas e fofas, iluminava a folhagem num claro-escuro.

As altas copas das árvores movimentavam-se levemente ao vento, tendo ao fundo os montes verdes, prolongamentos do Corcovado.

Pouco depois, continuamos a caminhar e Zizi retomou sua conversa fragmentada e inconclusa.

Disse que, no início, tentava contar tudo a todo mundo. Mas, sentindo a reação negativa das pessoas, acabava por se arrepender e recuar, suplicando a todos que não levassem a sério o que contara.

A ela própria, disse, sua história parecia inacreditável, havia momentos em que pensava que nada daquilo havia de fato acontecido.

Como eu previra, assim que saímos do roseiral Zizi se cansou — e nos sentamos num dos bancos em torno do Chafariz Central.

O ruído de água caindo se misturou às suas palavras, enquanto ela dizia que perdera suas economias de uma vida inteira, o dinheiro guardado para a velhice.

Além do evidente sofrimento, um dos motivos que atrapalhavam Zizi, quando se dispunha a contar sua história, segundo disse, era não ter conseguido, até aquele momento, que acreditassem nela.

— Em Solinas — declarou — acham que enlouqueci.

— Há quanto tempo isso aconteceu, Zizi? Essa perda do seu dinheiro?

— Não sei — ela respondeu. — Meses, talvez. Ou anos. De certa forma, admito, entrei numa espécie de loucura, fiquei sem memória ou sem lucidez, com o choque que levei.

Do apartamento de uma prima sua, no Leblon, onde estava hospedada, naquela manhã mesmo em que nos encontramos, Zizi já dera dois telefonemas para Solinas, como contou.

Um deles, para seu ex-marido, de quem se divorciara décadas atrás, depois de uma Ostensiva Traição dele (as não ostensivas, ela engolira); o outro, para a sua ex-melhor amiga — a ambos pedindo que esquecessem o que lhes revelara.

Ao ex-marido, o pai do seu único filho, disse:

— Você mesmo, quando lhe contei, declarou que eram especulações minhas, que não tenho provas. Então esqueça, passe uma borracha nisso.

O ex-marido, disse Zizi, procurou encurtar a conversa e logo desligou. Claro, desde o início ele não dera a menor importância às suas palavras, acrescentou, com raiva.

Quanto à sua ex-melhor amiga, que deixara de ser porque nada fizera em seu favor, tudo indicando que houvera até uma conivência dela com Os Que a Roubaram, Zizi dissera:

— Estou reconstruindo minha vida, não me interessa mais procurar culpados, descobrir como foi que isso pôde acontecer. Telefono, agora, para lhe pedir que esqueça o que lhe contei, apague tudo da sua memória.

— É o melhor que você pode fazer — disse a ex-melhor amiga, com voz melosa e cheia de uma bondade hipócrita. (Como Zizi nunca reparara em sua falsidade, antes?)

— Gostei de conversar com você — a outra acrescentara, de forma ainda menos convincente, despedindo-se.

E Zizi desligou sentindo a completa inutilidade daquelas chamadas e lamentando ter sobrecarregado com elas a conta telefônica da sua hospedeira no Rio, outra aposentada.

Mas não, Zizi, concluo agora, claro que não posso respeitar o desejo, por você manifesto, de que eu sepulte sua história. Do que você tem medo? Do que o seu filho possa fazer? Sim, os papéis se inverteram, é ele quem a intimida, agora.

Seja como for, não resisto a tentar contar O Que Fizeram com Zizi e nem acredito que ela própria resista, mesmo que não contemos tudo.

Sim, conto em parte, aos arrancos, como a história saiu dos lábios da minha Antiga Amiga, naquela manhã de tempo ameno, no Jardim Botânico, com a brisa agitando as muitas folhas marrons e amarelas, espalhadas pelo chão do outono.

— Não foi meu filho, foi a mulher dele… — disse Zizi, a certa altura. — Aquela mulher ambiciosa, querendo sempre mais… Não, foi ele mesmo…

Mas, outra vez, interrompeu-se.

Sua irmã, a única pessoa com quem falara do caso, tinha recomendado: “Perdoe seu filho. Assim, sua vida ficará bem melhor”. Só que, disse Zizi, não se tratava de perdoar ou não: “Meu filho me odeia, eu sabia que havia um ressentimento dele, mas não a esse ponto”.

Tive vontade de perguntar o motivo de tamanho ódio, mas desisti. Não queria ir tão fundo assim, de fato eu também já desejava muito, àquela altura, encerrar o assunto e sair caminhando sozinha pelo Jardim — porque assim egoístas somos todos nós.

— Não foi a mulher dele, foi meu próprio filho — admitiu Zizi, afinal.

Fosse quem fosse, o dinheiro desaparecera. Sim, toda a poupança que ela acumulara durante 40 anos, uma vida — o fruto de suas estóicas economias, sua esperança de compensar a aposentadoria minúscula e o fato de que o seu ex-marido Nunca lhe Dera Nada.

— Quando se sofre uma coisa desse tipo — disse ainda Zizi, aquela manhã — as pessoas se afastam, em vez de oferecer apoio. Parece que é mais fácil ser amigo do criminoso do que da vítima — insistiu, enquanto nos levantávamos e seguíamos agora para o Lago Frei Leandro.

Em vez da solidariedade que esperava, Zizi só conseguiu um consenso, em Solinas, quanto à sua culpabilidade. Sim, como mãe, acharam todos, com certeza ela fizera alguma coisa para provocar as ações do seu filho.

Zizi ficou com má fama, virou a bruxa que as mulheres mais velhas e sozinhas tendem a ser consideradas.

A caminho do Lago, paramos diante de um tosco banco de pedra, embaixo da velha jaqueira.

Eu poderia ter contado a ela, mas não contei, que dali Frei Leandro, o primeiro diretor botânico do Jardim, observara os escravos escavarem o lago e, com a terra retirada, elevarem um pequeno morro, no qual agora está um busto do frade.

Mas qualquer informação desse tipo já parecia fora de propósito, a nada Zizi prestava atenção. Só na beira do Lago pareceu lançar um olhar de certo interesse para a estátua da deusa greco-romana Tétis, a mulher do Oceano, colocada numa ilhota, com sua ânfora vertendo incessantemente água.

E como, logo adiante, quis outra vez se sentar, fomos para o banco com telheiro, voltado para o Lago, onde em geral se instala um guarda, mas que estava desocupado.

E ali Zizi prosseguiu:

— Ninguém quer tomar partido, em questões de família — disse. — Pior, ninguém tem verdadeira simpatia para com as vítimas de um logro. Quem ganha leva tudo — enfatizou — até conquista novos amigos. Quem perde fica sem nada, nem dinheiro nem amigos.

Estendeu seu ressentimento à nossa cidade inteira:

— Quando eu era feliz, todos me sorriam, em Solinas. Só depois entendi que estavam à espreita. Esperavam uma brecha, para atacar. Atacariam quando eu apresentasse o primeiro sinal de fraqueza, mostrasse minha vulnerabilidade — o que acabou acontecendo. Então, a máscara dos falsos sorrisos despencou — atrás, havia a cara feia da inveja.

Acrescentou, com uma raiva que me espantou:

— Cidadezinha horrorosa. Lá, as pessoas jogam lixo na rua. E as calçadas cheiram a urina e cocô.

Talvez você tenha exagerado um pouco, em alguns comentários, mas que a história aconteceu, claro que acredito, Zizi.

Jamais duvidei de qualquer das suas palavras e adivinho o seu duplo/triplo/quádruplo sofrimento, não apenas pelo fato em si, mas pela reação de incredulidade que ele provocou.

O que chegamos a percorrer, aquela manhã, no Jardim Botânico? Ah, quase tudo. Fomos até o Bromeliário, com suas plantas exóticas, e ao lindo Orquidário azul e branco.

Depois, fiquei preocupada, achando que insistira demais para ela fazer tanto esforço de caminhada; lembrei que já tivera um enfarte.

Sim, a dor no peito, que sentira pela perda do dinheiro e a traição do filho, materializara-se assim.

O enfarte acontecera uma semana depois que Zizi Descobriu Tudo. Ou que Teve Certeza de Tudo porque, há algum tempo já desconfiava que alguma coisa estava errada, só não tivera coragem, até então, de procurar o gerente do banco.

Zizi sobreviveu; mas, como disse, ficou meio aleijada.

Deixou de gostar do seu próprio filho. Se não deixasse, explicou, a dor a mataria. Com a incrível (ela mesma achou) indiferença final, veio uma anestesia.

E assim se tornou incapaz de gostar de quem quer que fosse, neste mundo, disse. Suas entranhas viraram gelo.

— De alguma forma, todo o amor morreu em mim, não sei se você pode avaliar o que é isso. Não gosto mais de gente. Não gosto de criança. Não gosto nem de bicho. Não posso mais gostar, é como um aleijão.

Zizi ficou “pobre, paupérrima,” declarou, porque sua aposentadoria quase não dá para viver. Mas, apesar das privações, contou, acabou juntando um dinheirinho para a passagem aérea e veio passar aquelas duas semanas no Rio, hospedada com a prima.

De repente, num raro momento de animação, Zizi me contou que estava até pensando em pintar seu apartamento, já todo manchado pelo tempo. E, depois, quem sabe conseguiria comprar um fogão novo, o seu tinha apenas uma boca funcionando.

Depois, disse que vinha lendo muitos livros de religião, procurando educar-se, como deseja sua irmã, para o Perdão e o Esquecimento. Concluíra que era a única saída para preservar sua saúde.

Vários comentários tolos me vieram à cabeça, àquela altura, mas felizmente não verbalizei nenhum. Eram do tipo: “Não se pode confiar em ninguém, nem no próprio filho”, ou “Nesta vida, devemos estar preparados para tudo”.

Dois dias, dois meses ou dois anos depois do nosso encontro no Jardim Botânico, aqui estou, em meu pequeno apartamento, sentada em minha cadeira de balanço, lembrando sua história, Zizi.

Você, exatamente você, a quem uma coisa dessas jamais poderia ter acontecido. Você, tão cuidadosa com tudo, você se privando, ao longo de anos, de tantas pequenas alegrias, só para economizar um dinheirinho.

Os livros e CDs que deixou de comprar, meses sem roupa nova, nenhuma viagem, férias a fio, amealhando cada tostão para colocar na Poupança e depois, na velhice, poder viver com Algum Conforto.

Tenho certeza de que, mesmo se chegarem a acreditar nela, os perversos solinenses não se cansarão de comentar maldosamente O Que Aconteceu com Zizi — embora seja uma história de Sofrimento Terrível e as pessoas de lá prefiram sempre histórias engraçadas.

A Mulher Roubada Pelo Filho, assim ela será designada, em Solinas, até o final dos tempos.

Você emagreceu dez quilos Zizi, você envelheceu dez anos da noite para o dia, mas temo não conseguir contar direito sua história — como você não conseguiu.

Com o tempo a dor cessou, ou quase, o punhal foi arrancado do seu peito, mesmo que apenas pela metade. Mas você ficou estranhamente mais magra, estranhamente mais velha, e com uma expressão contorcida no rosto, um olhar aéreo de louca. E suas roupas, Zizi, aquela manhã no Jardim Botânico, eram cafonas e desleixadas, como as de uma pessoa doente que não tem quem cuide dela.

Lembro ainda que perguntei:

— E, como você tem sobrevivido financeiramente, como conseguiu, depois disso?

— Eu tinha outra poupança, mas bem menor, em outro banco — respondeu Zizi.

Eu devia estar com uma cara terrível porque, inesperadamente, ela mudou de tom e tentou tranqüilizar-me.

— Não se preocupe, Tatiana, pego sempre DVDs numa locadora, sabe, não sai caro e me divirto muito, vendo tantos filmes. Peço indicações ao rapaz do balcão — nada de violência, nada de tragédia, só quero ver comédias.

Quando nos levantamos do banco do guarda, que já nos observava, a certa distância, com o ar urgente de quem precisa sentar-se, caminhamos em direção ao orquidário.

E paramos, lembro bem, diante de uma quaresmeira florida, uma festa de pequenas flores roxas por entre o verde das folhas veludosas.

— E seu filho, Zizi, o que está fazendo, agora? — perguntei.

Ela fez uma careta, mas respondeu.

— Neste momento, está em Paris, com a mulher. Viajam muito. E estão comprando uma casa de praia. Estouram dinheiro. O meu dinheiro.

— Vocês ainda se falam?

— Sim, de vez em quando, pelo telefone. Em geral, quem liga sou eu, para perguntar uma coisa ou outra. Mas nunca mais o vi, nem quero.

— Como foi que você tratou do assunto, com ele?

— Não tratei nunca.

— Meu Deus! E não tentou conseguir um bom advogado para investigar tudo, recuperar seu dinheiro?

— Não tenho poder para isso, Tatiana. Meu filho e a mulher dele são muito mais poderosos do que eu. A família dela tem relações com a cúpula de Solinas. E, já lhe disse, as pessoas não acreditaram, ou fingiram não acreditar em mim. Ninguém me deu apoio. Além disso, claro, sem dinheiro não poderia pagar a um advogado.

Droga, uma coisa dessas não podia acontecer! Vocês dirão que há calamidades maiores, mas ainda sinto vontade de vomitar, quando penso nO Que Fizeram Com Zizi.

Puxa, queria contar sua história direitinho, mas acho que não conseguirei. Essa história, um sonho de infinita paciência.

As economias que você fez a vida inteira, você indo de banco em banco, em Solinas, pesquisar com os gerentes quais seriam os melhores investimentos. E aí, o filho.

Sim, seu único filho, o filho que, contra sua vontade, foi mais criado por seu ex-marido e a nova mulher dele do que por você, o filho em quem incutiram preconceitos contra você, o filho e a mulher do seu filho, aquela mulher exageradamente bem vestida e sempre querendo mais alguma coisa, como disse você, o filho para quem, um dia, você — por quê, Zizi, queria mesmo atrair a desgraça? — falou dos seus investimentos, o filho para quem, tempos depois, você passou uma procuração em branco.

Foi isso? Ou algo parecido? Já não sei mais.

Uma das coisas que mais me impressionaram, naquela nossa conversa, foi quando você descreveu o punhal encravado em seu peito. Como acordava no meio da noite chorando de dor. O punhal que lhe causara o enfarte e ainda não fora inteiramente arrancado.

“O que resta para mim”, disse você, “é uma velhice pobre e solitária”. A você, que se preparou tanto para evitar uma coisa dessas.

Sim, talvez, eu já possa contar. Falar, por exemplo, de um gerente de banco cujo rosto aparece agora, constantemente, em seus pesadelos, Zizi.

Imagino, ociosamente, esse gerente do banco em mangas de camisa, uma camisa social cor-de-rosa e uma gravata com listras cor de vinho, em diagonal. Usava um relógio caro, de boa marca, e óculos do último modelo, sem aros; por trás, os olhos azul claro a examinavam, visivelmente penalizados.

A ponta dos dentes dele, muito brancos e brilhantes, aparecia sob seus lábios, todas as vezes que o gerente abria a boca — você registrou tudo isso, Zizi, cada mínimo detalhe amplificado pelo horror.

Sim, tudo fora passado para outra conta, disse o homem, como ele acabara de verificar.

— Que conta? — você perguntou, num grito.

— A conta de Adriana Lustosa — respondeu o gerente, com gotas de suor surgindo em sua testa, apesar do ar condicionado — a senhora não passou uma procuração para seu filho, nesse sentido?

Meu Deus, aquela procuração em branco que seu filho dissera que era para colocar a mulher dele como dependente sua, no clube…

Assim, para Adriana fora transferido todo o seu dinheiro, tostão por tostão, as blusas que você não comprara, os discos e livros, as viagens que você não fizera, tudo na conta da mulher do seu filho.

Claro que a gente não consegue, claro que ela não conseguiu e eu nem eu, e não conseguirei nunca! Claro que a vida é sempre outra coisa, muito diferente do que a gente um dia esperou! Mas assim também é demais, seu caso foi um exagero, Zizi.

Aquela manhã no Jardim Botânico foi bem diferente do que eu imaginara. Planejara uma visita breve, mostrando algumas coisas a ela. E recebi sua história, esta história, como um soco na boca do estômago.

Depois que ela tomou outro táxi e foi embora (tornarei, algum dia, a ver Zizi?), voltei para casa pensando em velhice, no desamparo dos velhos — e continuo pensando e não gosto nada disso.

A velhice, entre outras coisas, é uma espécie de loucura.

Eu e as íngremes e sombrias escadas do meu prédio, que desço todos os dias porque tenho medo de elevador.

Eu e o talismã do qual não me separo, o saquinho que carrego em minha bolsa, sem ele não ouso sair de casa, e que contém algumas sementes, contas de um colar de santo partido e uma minúscula moeda grega, com uma corujinha.

Eu e minhas excentricidades.

Mas as pessoas não reparam nos velhos, as pessoas não ouvem não vêem mais os velhos e então temos a liberdade de fazer o que quisermos quase sem ser notados, não temos simpatia mas há certa tolerância, embora mesclada com uma leve zombaria.

Ora, penso eu, dias depois, num tardio consolo, caminhando mais uma vez pelo Jardim Botânico, como faço diariamente, pelo menos não tive filhos, não deixei para ninguém o legado da nossa miséria…

E, graças a Deus, minha aposentadoria dá para viver.

Eu, Tatiana, estou muito velha, minha memória às vezes falha, mas ainda me lembro de muita coisa. Pode ser que daqui a pouco eu esqueça mas, neste momento, lembro quase palavra por palavra o que Zizi me contou aquela manhã e até o que apenas decifrei, em seus silêncios.

 E agora quero contar a Terrível História da minha amiga Zulmira, a quem todos passaram a chamar de Zizi.

Sim, sua história, Zizi. Que poderia ser contada em apenas uma frase, ou escrita em duas linhas.

 Mas é uma frase que não consigo inteiramente dizer, são duas linhas que não consigo inteiramente escrever.

Talvez porque tudo o que sei vem de uma única conversa que tive com ela, certa manhã, no Jardim Botânico.

Sonia Coutinho

Autora de Os venenos de Lucrécia e O último verão de Copacabana, entre outros.

Rascunho