A distância e o detalhe

No ensaio "Tolstói ou Dostoiévski", George Steiner adentra os mundos de dois gênios da literatura universal
George Steiner, autor de “Tolstói ou Dostoiévski”
01/12/2007

A crítica é um grande gênero. É o mais civilizado dos atos se considerarmos a observação de Jorge Luis Borges acerca do ato de ler (menos “ofensivo” que o de escrever) e somando a isso o complemento criativo de expressar verbalmente o lido. Há leitura em diversos níveis até que se passa ao estágio pleno (menos civilizado?) de escrever sobre o que se leu. Para um dos críticos mais citados e relidos de nosso tempo, George Steiner (Paris, 1929), a crítica é um ato de amor. A considerar seu Tolstói ou Dostoiévski, a afirmação é provada a cada parágrafo.

Steiner, logo no começo de seu ensaio, livro com que estreou, em 1959, já com plena consagração, lembra Virginia Woolf (1882-1941), para quem, após esses dois romancistas, praticamente não há nada mais o que se fazer. (Crítica e amor se confundem nesse vaticínio.) Exagero mais que perdoável, compreensível de Virginia, que vivia o parto do Modernismo onde o olhar narrativo ameaçava perder-se no caleidoscópio e a psicologia acenava com uma voracidade capaz de engolir qualquer outro tema igualmente importante.

A seguir, com estudada lentidão, mais sobrecarregada da consistência do observado do que do ritmo da escrita, rigoroso ao extremo mas elegante e, assim, apreensível no andamento natural da leitura, sem que tenhamos de voltar atrás subjugados pela inteligência do ensaísta (iluminada mas sempre dialogando), vemos as correlações inevitáveis por autores que antecederem os dois russos e também autores que, contemporâneos deles, os influenciaram, os desencantaram, e por eles foram influenciados.

Freud, segundo Steiner, apressou-se em entender Dostoiévski e pegou o trem errado. Para Tolstói, Stendhal atingiu o tom certo do Realismo, sabendo dosar as emoções e dando-lhes o espaço devido no conjunto das ações de seu projeto social, político, histórico — aspectos indissociáveis do ficcional. Isso foi ponto de partida para o autor de Guerra e paz, Anna Kariênina (que no ensaio suplanta com sobras seu “gêmeo” Madame Bovary, de Flaubert), Ressurreição e A morte de Ivan Ilitch, o quarteto em que Steiner se apóia para chegar ao coração do “urso”, imagem com que ele desenha a figura do invencível conde.

Em Dostoiévski as referências, além dos inescapáveis Crime e castigo e Os Irmãos Karamázov, a análise debruça-se sobre Os demônios e O idiota.

Retomemos um dos nortes a guiar Steiner. A crítica como ato de amor. O afeto que não se encerra no crítico tampouco se derrama, mas vai, sim, sendo destilado em doses mais que homeopáticas, quase afogando o coração com uma plenitude (culpa da grandeza dos ficcionistas estudados) controlada até onde é possível. E é possível. Esse controle chama-se disciplina, e Steiner constrói sua leitura passo a passo, perseguindo, incansável — sem pressa, sem vagar — a energia de dois criadores que demonstram, a cada obra, uma vocação para o fôlego.

O “urso” e o desesperado
Fôlego, bem entendido, em diversas acepções. Haverá livro já escrito que, incorporado de excelência literária, exija mais fôlego que Guerra e paz? Haverá um painel tão vasto — considerando-se a perspectiva dramática a olhar, não de cima, mas de dentro, das pulsações da miséria humana e da vertigem de sua sede de ascensão mística e emocional — quanto Os irmãos Karamázov? E Anna Kariênina, quase infindável, refletindo sem perdão e simultaneamente de um modo ajustado, inflexível, os costumes, a luta insana da mulher naqueles ermos morais? E Os demônios, também um romanção do qual nada há para cortar (os excessos aí, como em outros livros do autor, são elementos indissociáveis da composição, alimentando o estilo, a escrita nervosa, a atmosfera febricitante dos protagonistas e, até, do cenário), um retrato impiedoso e perturbador do fanatismo onde derrubar o poder, erigir o poder, mexer com um deus humano — a política — e outro igualmente humano (mais do que em Tolstói, cujo deus parece beatífico e mais justo) é uma ação na qual todos os limites, morais e não, caem por terra enquanto forças incalculáveis demonstram sua fúria, seu ressentimento, sua ambiciosa intenção.

O amor crítico de Steiner não perde um movimento, e segue a incandescência dostoievskiana tão de perto que às vezes, reconheçamos, é preciso parar e adiar a continuação da leitura. Fraqueza nossa, acostumados a uma crítica sem amor, feita só de vaidade ou pretensão e ambas sustentadas pelo fácil que elegem para mais facilmente “interpretarem”.

O fôlego citado é sinônimo, claro, de força. Tolstói (que vê na História o grande estopim, e a pinta tomando uma suprema precaução: a da distância), comenta Steiner, era um homem da altura e da espessura de uma porta. Dostoiévski (o minucioso sem o medo do erro, antes buscando neste o que pode haver de essência tanto do humano quanto do divino) não chega a tanto. Todavia, movido por um demônio que parece corroê-lo por fora mas por dentro empresta-lhe explosão, não pára quando muitos já teriam parado. E além de continuar, não continua apenas, porém atinge regiões destinadas ao não-descobrimento estivesse o livro em curso (qualquer um) nas mãos de um ser “normal”.

Tudo isso parece muito exclamativo, ameaça perder a consistência crítica (a do resenhista) em razão de um perfil que mais impressiona que se explica. Eis aí outro acerto de Steiner, que explica sem pôr em curso a impressão que nos causa mas que ele, Steiner, a ela não sucumbe — não seu texto.

Se se tratam de dois fenômenos (e são), é preciso entender como chegaram a isso. Para tanto, Steiner revisa a ficção que vinha sendo publicada em toda a Europa naqueles idos, os fatos históricos que precipitaram a reação de um nobre (Tolstói) que abraçou uma causa tão grande quanto ele e um visionário (Dostoiévski) que tornou doença, vício e tragédias familiares em respostas tão alucinadas quanto a antecipação romanesca que promoveu.

A erudição de Steiner vai pontuando lá e cá os referenciais que fecundaram o território cultural, os indícios a marcar fundamente o entorno de um espaço geográfico de dimensões tão volumosas quanto o produto literário da dupla de escritores. Mas a mastodôntica Rússia e seu tamanho no mapa seriam uma explicação por demais óbvia. As condições climáticas, as tortuosas circunvoluções econômicas, a variedade de classes sociais e a ortodoxia de uma religiosidade (paradoxalmente criando profetas, hereges, seres no limbo separados por uma única decisão entre o sublime o hediondo) constituem matéria de carpintaria para o rigoroso, exato, humaníssimo — propugnando, sem beatice, uma justiça divina inabalável — Tolstói ou para a divinização posta em xeque por um êmulo de Sófocles — caso de Dostoiévski, em cujos livros essa segundo versão do aparentemente deus único russo é julgada pelos homens, seus dessemelhantes.

Tolstói ou Dostoiévski
George Steiner
Trad.: Isa Kopelman e Luana Chnaiderman de Almeida
Perspectiva
296 págs.
George Steiner
Nasceu em Paris, em 1929. Com 11 anos, mudou-se, com a família, para Nova York. Diploma-se, aos 20 anos, pela Universidade de Chicago, em matemática, física e letras. Em 1952, vai a Londres trabalhar como jornalista em The Economist. Logo depois, a convite da Universidade de Princeton, retorna aos EUA. Edita seu primeiro livro, Tolstói ou Dostoiévski, pela editora dessa universidade. Novamente na Inglaterra, leciona em Cambridge e, afinal, assume a cadeira de Literatura Comparada em Oxford. Crítico da New Yorker, sem contar outros periódicos menos importantes, publica a partir da década de 1960 cerca de dez livros de importância similar ao da estréia, entre os quais se destacam A morte da tragédia (1961) e Linguagem e silêncio (1967).
Paulo Bentancur

É escritor. Autor de A solidão do diabo, entre outros.

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