O grande nome da final da Copa do Mundo de 1950 não foi Giggia, autor do gol que deu a vitória (2×1) ao time uruguaio, para desespero de um Maracanã com quase 200 mil torcedores e motivo de luto oficial no país por um bom tempo. O nome do jogo foi o capitão do Uruguai, Obdulio Varela, que, segundo comentário de Nelson Rodrigues, nos tratou a chutes e pontapés. Com sua força, seus gritos, Obdulio comandou os uruguaios numa batalha heróica, cujo desfecho nem o mais pessimista dos brasileiros poderia esperar.
Pois dizem que depois do jogo, enquanto a equipe uruguaia comemorava a conquista num hotel no Flamengo, Obdulio saiu solitário pela cidade. No dia seguinte, numa entrevista concedida a um jornal de seu país, ele diria que naquela noite, caminhando por um Rio de Janeiro absolutamente vazio, o capitão se deu conta da tragédia que havia ajudado, e muito, a consumar.
Fico imaginando o que ele teria visto pela cidade, o que chegou a pensar, o que sentiu quando viu caída na calçada a primeira página de um jornal qualquer, com a foto do escrete brasileiro e a frase: Campeão do Mundo. Frase e foto que, publicadas na manhã daquele mesmo dia, anteviam uma festa que só se realizou para os visitantes.
Em pareceria com Adolfo Lachtermarcher, escrevi o roteiro de um curta-metragem, A noite do capitão, resgatando o episódio. A história é contada sob a ótica de um jovem repórter que sai pela noite seguindo Obdulio, em busca de uma foto para a matéria do dia seguinte. O que escrevemos foi apenas uma versão ficcionalizada, uma versão possível talvez. Há, no entanto, dentro da história daquela decisão, várias outras histórias.
Desse jogo resultou o livro de Paulo Perdigão, Anatomia de uma derrota, que reproduz cada minuto da peleja, numa preciosa pesquisa sobre as narrações da partida veiculadas nas emissoras de rádio naquele domingo. Ao final do livro, Perdigão publica um conto em que um homem — que assistiu ao jogo quando criança e nunca conseguiu se livrar do trauma — usa uma máquina do tempo e volta ao dia fatídico, tentando avisar o goleiro do Brasil, Barbosa, do lugar em que Giggia iria chutar a bola. O conto, por sua vez, ganhou nova versão no cinema, num curta de Jorge Furtado e Ana Luiza Azevedo, com o título de Barbosa.
E há também uma história não escrita, pelo menos não sob a forma de ficção. É aquela contada pelo próprio Barbosa. Ele disse certa vez que naquela noite, ao voltar para casa, se deparou no meio da rua com uma mesa posta, um verdadeiro banquete sendo devidamente devorado por cachorros. Alguém havia preparado a ceia contando como certíssima a vitória brasileira e a derrota havia sido tão frustrante que o camarada nem teve ânimo para retirar dali toda aquela comida.
O que Barbosa teria pensado ao ver a cena? Ele, que durante anos carregaria o peso da culpa pela derrota, depois de falhar no gol de Giggia, o que teria sentido ao ver os vira-latas devorando os pratos que lá estavam para alimentar o corpo e a alma de torcedores famintos depois de uma acachapante goleada no fraco time do Uruguai, que chegara àquela final nem se sabe como?
O mundo do futebol está repleto de histórias possíveis, esperando quem sabe a vez de serem contadas.
Que belo conto não poderia sair das mãos habilidosas que se dispusessem a passar para o papel alguma história girando em torno do milésimo gol de Pelé. E nem falo do jogo contra o Vasco no Maracanã, em que Pelé, batendo pênalti, conseguiu a marca histórica. Falo do que o rei pode ter sentido quando soube que, na verdade, aquele era o gol de número 999.
Por um erro de conta, o milésimo gol só seria marcado mesmo na partida seguinte, contra o limitado Botafogo da Paraíba, em João Pessoa, num jogo que nem de longe teve o glamour daquele clássico no Maracanã, cercado de pompa e circunstância, como era de se esperar. E o que terá sentido o goleiro quando soube que, apesar de tudo, acabou não passando para a história, cabendo a honra ao goleiro do Vasco, Andrada?
Pensando bem, que narrativa beirando o absurdo não poderia sair do episódio ocorrido no jogo de estréia do Brasil na Copa de 1978, contra o time sueco? Um jogador brasileiro bateu escanteio aos 45 minutos do segundo tempo e Zico completou para as redes, de cabeça. Pois o juiz Clive Thomas, nascido no País de Gales, simplesmente anulou o gol, dizendo que encerrara o jogo enquanto a bola girava da batida do escanteio até o meio da área. Em função disso, o jogo não terminou com a vitória brasileira, mas com um suado 1×1.
O que teria passado na cabeça daquele cidadão soprador de apito numa hora dessas? Que delírio o teria levado a cometer tamanha insanidade? Se era para acabar o jogo, por que permitiu que o escanteio fosse cobrado? E Zico, o que poderia ter dito? Xingou o juiz em um português que o outro jamais entenderia? Ficou em estado de choque, pasmo diante do que acabara de acontecer? Riu de nervoso?
O que dizer, então, das mil e uma histórias envolvendo Garrincha? Dizem que num treino do Botafogo, em General Severiano, o técnico certa vez colocou uma cadeira na lateral do gramado e pediu aos atacantes que carregassem a bola, passassem pela cadeira como se fora um adversário, corressem com a bola nos pés até a linha de fundo e cruzassem para a área. Na vez de Garrincha fazer o exercício, ao invés de contornar a cadeira, como os outros vinham fazendo, meteu a bola entre as pernas da distinta. Claro, era o que ele faria se a cadeira fosse um lateral esquerdo. Perfeitamente aceitável, ora essa.
E no jogo semifinal da Copa de 1962, no Chile, quando o lateral chileno Eladio Rojas, depois de provocá-lo o tempo todo, deu-lhe uma bela cusparada em pleno rosto, seguido de um tapa na cara que se ouviu até em território brasileiro? Garrincha revidou. Revidou com um modesto chute na bunda do chileno. Foi expulso.
A biografia de Mané já foi escrita mas suas histórias ainda não se esgotaram. O que o levou a criar aquele seu drible inconfundível, que deixava humilhados mesmo os marcadores mais ferrenhos e talentosos? Dizem que no seu primeiro treino no Botafogo quem o marcou foi ninguém menos do que Nilton Santos. Mané não se intimidou com a fama do craque e deu-lhe logo uma série de dribles. O lateral, então, imediatamente chamou o técnico e pediu que passasse Garrincha para o time titular. Não vou ficar aqui fazendo papel de palhaço, teria dito Nilton Santos.
Numa crônica intitulada Cartão de visita, o saudoso João Saldanha diz que houve um tempo em que os profissionais de futebol adoravam apresentar cartões de visita. Curiosamente, eram todos escritos em letras azuis (sabe-se lá por quê). Um ex-técnico do Vasco, Telémaco Frazão de Lima, bem pouco modesto, pediu para imprimirem no seu: “professor de futebol.” Havia um outro, que Saldanha preferiu não identificar, que entrara de sócio numa firma comercial. No seu cartão vinha: “Fulano de Tal — sócio”. Apenas isso: sócio, não se sabia de quem ou de que empresa. O melhor deles era do Noronha, atacante do Canto do Rio. Logo abaixo do seu nome, lia-se: “impetuoso ponta-esquerda”.
Fico imaginando que histórias poderiam sair daí, desse tema. Como seria, por exemplo, um cartão de visitas do Rivelino? Talvez viesse assim: “inventor do famoso drible elástico”. E o cartão do Dadá Maravilha? “Dadá — além do helicóptero e do beija-flor, o único que pára no ar”. Nos cartões do time do Íbis, poderia estar escrito: “o pior do mundo, com muito orgulho, com muito amor”. E no cartão de uma conhecida bandeirinha, que roubou feio o Botafogo em pleno Maracanã lotado e depois virou capa da Playboy, o que viria? Bom, esse é melhor deixar pra lá.
O pênalti que o italiano Roberto Baggio perdeu na final da Copa dos Estados Unidos, em 1994, contra o Brasil, num erro que nos deu o título. A cena mostrada pela TV: no vestiário, antes do jogo, Romário olha para a saída do túnel, com aparência tranqüila, serena, enquanto Baggio olha fixamente para ele. O choro de Cerezo depois da falha contra a mesma Itália, em 1982, que resultou num dos gols de Paolo Rossi e nos eliminou da Copa, justo quando tínhamos uma das melhores seleções brasileiras, sob o comando do mestre Telê Santana.
São, todas essas, sementes de histórias, adormecidas em algum canto por aí. Algum dia talvez venham a fazer parte também do baú imaginário que guarda já tantos casos engraçados, líricos, trágicos, com que se tece a magia do futebol. Magia que se estende para além de qualquer gramado e, vez ou outra, adquire forma de papel e tinta.