O gosto amargo dos metais, livro de Prisca Agustoni ganhador do Prêmio Oceanos 2023, é obra de impacto. Implacável. Texto de fundação. Não feito para nichos, aplausos; antes, livro que cala, arranca lágrimas, fúria, evoca uma ética. Um novo ethos sobre as ruínas.
da escrita cuneiforme
herdar a fúria
de refundar algo
em cima da ruina
A tragédia que nos tornamos está posta não apenas nos rompimentos das barragens em Mariana e Brumadinho, em Minas Gerais, embora também, contundentemente, lá. A terra arrasada está posta. Somos nós em nossa falta de solidariedade com o mundo. A mineradora, símbolo de nossa modernização criminosa (já acusou Drummond), não conta os mortos que deveria e continua fatiando pedras a todo vapor, transformando-as em dinheiro, fazendo-se símbolo, novamente, do que nos faz modernos.
Mas, no livro de Prisca, o ponto é outro. Não se trata de reparar, salvar. Se Watu (o rio) respira mal, perdeu seus peixes, sua flora, ou mesmo alguma coisa telúrica, de uma coisa o mundo moderno não vai conseguir se esquivar: ele, o rio, está dado. É ancestral. Corre para o mar, mas não como quis Heráclito. Corre em espiral. E nos leva junto à lama em sua carne.
Esta parece ser a ética-poética fundada em O gosto amargo dos metais. Morre-se muito, gentes, plantas, bichos. Mas o Watu, ancestral, torna espesso um tempo com o qual não estamos tão acostumados ainda, um tempo em que a vida também está dada, posta. No entanto, a vida que está, e que nossa miopia embaça, rebenta longe das melancolias de quem acredita que há um eu sem um outro. Nessa ética fundada por Prisca, ruem as casas de gente morta, as árvores pelo caminho, os bichos com suas sedes, os homens com suas feridas e ruem a ética e a estética modernas.
Sabemos, não há estética que não esteja marcada por um indelével traço ético. E a de Prisca Agustoni, com seu solidário livro, mostra que estamos todos na turbina da destruição, sobreviventes sobre as vidas. Para observarmos a fundação estética que põe a escrita em seu dever (como sugeriu Guilherme Gontijo Flores no posfácio do livro) é preciso ir com coragem aos versos.
o quintal esfolia-se em lâminas
escama após escama
dorso de um anfíbio
geológico animal que dorme
há milénios, órfão,
no fundo da história,
nas quilhas mais remotas
da memória
Neste poema vemos a primeira aparição do animal que complexificará a épica toda. Um animal histórico (não um anjo benjaminiano), uma tartaruga que ganhará contornos mais definidos ao longo do livro. Um bicho que atravessa os séculos e traz em seu casco o testemunho da destruição. Um anfíbio, ser ambíguo adaptado a diferentes habitats. Com seu deslocamento lento de ancião, parece trazer nas pálpebras a própria encarnação do tempo.
Esse animal é o primeiro elemento que nos permitirá ver o contrapelo da estética moderna (e por que não dizer de sua ruína?) em diálogo com o também épico e importante poema de nossa língua O cão sem plumas, de João Cabral de Melo Neto. Além da potência nuclear que a tartaruga traz, temos também nos poemas desse O gosto amargo dos metais as vidas ribeirinhas (no mangue, na lama) e a marcha do rio para o mar.
No rio de João Cabral lemos uma importante modulação do discurso que vai assimilando, valendo-se da estratégia formal do símile, a dor dos homens à condição precária da natureza por meio da aproximação cão-rio-homem. A precariedade do rio, que não sensibiliza a sociedade abastada, e mesmo a letrada, vai arrastando o leitor para a realidade de um povo que vive em palafitas sobre a lama e que tira dela, da lama, seu alimento. Essa assimilação, sabemos, dá plasticidade ímpar a um drama social que ninguém soube versificar como nosso poeta moderno pernambucano.
Entretanto, o cão do poema cabralino é o cão da fome, da miséria, da degradação humana. No livro de Prisca Agustoni, quando o cão aparece, ele traz, sim, a evidência desse drama social, mas o reveste de outro estágio de degradação, cujo núcleo talvez seja mais bem compreendido na tartaruga. Vejamos.
os habitantes reunidos,
mulheres, irmãos, cães,
homens sozinhos
são todos mães que esperam,
se dão a mão e esperam
a volta prometida dos filhos
em círculo se juntar
e entoar o canto que invoca
o úmido centro do homem
) o destino é uma fera de três cabeças:
a primeira
é vira-lata que enterra o osso e adia a fome.
a segunda,
franzina, é uma cadela que uiva às margens do rio.
a terceira
lambe a mão de seu dono que a persegue com o bastão (
Vemos aqui que o elemento que continua concentrando as vidas devastadas é o rio, “o úmido centro do homem”, mas o cão, agora cães, passa a figurar menos como rio e se insinua a partir de então como destino; um destino dividido em três: “a fome”, o desespero “uma cadela que uiva às margens do rio” e a perpétua perversidade política “lambe a mão de seu dono que a persegue com o bastão”. Essa desassociação do rio e do cão, podemos especular, ocorre num momento em que o rio se revela mais morte do que vida. O rio que corre agora é a lama de rejeitos. À sua margem somos mães desesperadas uivando pelos filhos perdidos, levados, mortos não mais pelo rio que era vida sem plumas no poema de Cabral, mas pela imensidão de lama, que é pura e tão-somente morte.
Diferente também do poema moderno do poeta áspero, o rio de lama aqui não simboliza a união (entre as águas do mangue) para formar uma laguna e encontrar sua saída ao mar (elaboração comunista de João Cabral), ele desce rumo ao mar levando as armas modernas da destruição (rejeitos de mineração). Se em O cão sem plumas vemos uma batalha entre o rio desprezado, humilhado e faminto que busca seu lugar ao mar (liberdade), n’O gosto amargo dos metais vemos um rio de lama impiedoso que avança assassino contra as vidas do mar.
Esse rio-lama de rejeitos é diferente do rio-lama cão à míngua. E aqui talvez podemos testemunhar a virada ética e estética do livro de Prisca. O modernismo aderente ao comunismo buscou sua plasticidade numa imagem épica de luta em marcha; as águas paralisadas e saqueadas se juntam para a guerra que se trava na praia, na foz. Sua água é barrenta, como as gentes de barro, mas o leitor vai junto com o rio, que é, em grande medida, também um pouco de nós. Já o rio de rejeitos que segue para o Espírito Santo após o rompimento da barragem só pode voltar a ser entendido e vivido como um rio se passar por um revés, fazer-se novamente ancestral, tornar-se Watu.
A vida que está posta, conforme sugerido acima, não é aquela que a mineradora pode matar. Não é a vida moderna com seu engodo de progresso. É a vida que vive no tempo de outra cosmovisão. Uma vida que não explode apenas no centro do homem. Que mostra que o tempo é sempre. E que, assim como o rio, não passa. Tempo sem salvação porque não é disso que se trata. O rio-lama de rejeitos se converte em rio-tempo, não pode ser assassinado em sua biologia, posto que se trata de uma cosmologia.
Essa virada poética do rio está diretamente cartografada pelo chamamento ético que os poemas de Prisca evocam por meio do turbilhão amargo.
Uma nova estética só é possível com uma diferente proposta ética. Na esteira do que percebeu Guilherme Gontijo, O gosto amargo dos metais cava e crava sua ossatura aí, num outro modo de sermos no tempo, um modo que nos chama a ser a tempo. Lemos isso nas tartarugas do Watu.
as tartarugas do watu
fecharam-se no casco
com o primeiro sinal de perigo
desceram até os seixos
durante meses
durante anos
e aguardam a volta
da rotação dos astros
A sonoridade desses versos nos mostra, por meio da toante que salta (casco/ astros), que a virada, a “rotação”, está no animal histórico anfíbio, atravessador de séculos, que, diferente do cão, não é assimilado pela lama da história, uma vez que sabe se recolher e aguardar o momento de voltar.
Traço formal do livro, que nos permite ver também a rotação ética-estética imprescindível para nossa sobrevivência em solidariedade com o mundo, é a maneira como a poeta usa os famosos parêntesis cabralinos. Prisca inverte os parêntesis. Se estes serviam na poesia moderna para interromper um possível discurso poético e inserir elementos que adensavam a cena e a plasticidade, aqui percebemos que os elementos do adensamento estão anulados. Corre apenas o que vai fora, o próprio discurso, que no caso deste livro não é um discurso modulado, como fez Cabral (e se aprendeu desde a origem da literatura portuguesa, nas cantigas medievais), mas sim um discurso espiralar. Contra a turbina da morte, a espiral viva do tempo ancestral. Com uma poesia inscrita nesse giro, que é do rio e do poema, quem sabe engajamos em um diferente ethos, um em que poesia e vida não existam para salvar, mas sim para chocar suas alegrias (que adiam o fim do mundo) contra o horror do mundo.
furar as camadas da terra
chegar ao fundo,
descer mais,
ferir
até o coração
latejante
do animal
: novos seres errantes
rumo a uma floresta ancestral (
Mais uma vez, o revés dos parêntesis indica o revés do rio e mostra que o que vai fora, à margem, é também o que vai no coração do animal histórico, do homem, da mata e do mundo. Lendo com atenção O gosto amargo dos metais, percebemos que de fato há (está dado e posto) um oceano para navegar. E que alguma literatura atual está saindo de si para, enfim, encarar outras formas de atravessar.