Maria José Silveira começou sua trajetória de romancista escrevendo sobre mulheres fortes. A mãe da mãe de sua mãe e suas filhas, publicado em 2002 e traduzido nos Estados Unidos, França, Itália e China, começa com a chegada de uma dessas mulheres no período do descobrimento e se estande até a construção de Brasília. A partir daí sua escrita vem se adensando pela história do Brasil e caminhando em direção ao Oeste.
Em seu novo romance, Farejador de águas, essa característica se aprofunda ao contar do amor entre Minino e Maria Branca. Eles se conhecem na Coluna Prestes e seguem na construção de uma família até além do ano 2000, quando o cerrado, com sede, sente secar seus rios. Em princípio é o romance da volta às origens, a Goiás, mas, como a escritora mesma diz na apresentação, “quando comecei a escrever literatura, no entanto, percebi, com surpresa, quanto sou goiana e como, apesar da contínua ausência, trazia minha terra comigo”.
O Goiás que surge em sua obra está marcado pela sentimentalidade. Há em cada linha o protesto sobre o que se fez da região, sobretudo depois do modelo desenvolvimentista implantado a partir de 1933 com a inauguração de Goiânia. Neste ponto começa a Marcha para o Oeste, defendida pelo governo de Getúlio Vargas, e surgem as primeiras colônias agrícolas, intensificadas com a construção de duas outras capitais, Brasília, em 1960, e Palmas, em 1989. A exuberância rasteira do cerrado, com as raízes profundas, guardiã das águas, que tanto se vê na obra de Maria José se apaga em favor dos altos edifícios.
A escritora, no entanto, busca mesmo é o sentido da terra, bem descrito no romance Guerra no coração do cerrado, de 2006, onde conta a saga de Damiana da Cunha Menezes, líder dos cayapó/panará que, ao seu modo, resiste à chegada do homem branco e à matança do cerrado. Nascida cayapó, Damiana foi criada pelo capitão-geral Dom Luiz da Cunha Menezes, daí seu nome, mas, num dado momento, de volta à aldeia, conhece o desespero de seu povo. E enseja sua luta. Uma história acontecida nos idos do século 18, mas infelizmente, atualíssima.
Moderno e passado
Em Farejador de águas a dicotomia entre as duas culturas, entre o moderno e o passado, ganha novas cores. José Sussuarino, nome próprio de Minino, e Anja — “o patrão lá da fazenda dizia que era Mariângela, e minha mãe falava pra ele: ‘nem morta. O nome dela é Anja’” — se encontram na Coluna Prestes, onde ele chegou pelo desejo de aventuras e ela por não ter mesmo para onde ir, depois que deixou, com a mãe, a fazenda onde nasceu. O nome de Maria Branca ganhou por auxiliar no “fogão” de Maria Preta.
Esta forma simples e criativa de se renomear faz parte do tradicionalismo e impregna os filhos do casal, que vão se formando pelas circunstâncias da vida. Há de tudo na família, do agricultor à mística, ao contraventor, à professora, ao cientista. Maria José monta um núcleo que preenche todas as possibilidades de vivências de uma região que se moderniza dentro do espírito inquieto do século 20.
O modelo desenvolvimentista implantado preza por um conceito cruel. O progresso deve construir núcleos habitacionais modernos para atrair os produtores de grãos, paulatinamente apanhando os rastros da pecuária e acendendo a vastidão do plantio. O preço é a matança do cerrado e o aterramento das nascentes. Sim, estamos cada vez mais distantes dos personagens que permeiam as prosas de Bernardo Élis, José J. Veiga e Carmo Bernardo.
A prosa de Maria José Silveira reflete um outro mundo, onde os descaminhos da história nos apresentam outros heróis. E o fundamental desta narrativa está no diálogo permanente com os processos históricos. Não que a autora seja uma praticante do chamado romance histórico. Sua narrativa ganha este elemento pela necessidade de explicar o homem moderno a partir de sua formação cultural e, claro, histórica.
Impressiona como em toda sua obra, mesmo naquelas em que ela foge do contexto atual, como Guerra no coração do cerrado, e do ambiente do Centro-Oeste, como em Pauliceia de mil dentes, dois momentos históricos estão sempre presentes: a construção de Brasília e o golpe cívico-militar de 1964. Não se trata de uma obsessão, mas da importância que esses dois momentos tiveram — e têm — na formação do novo caráter nacional. Se Brasília nos deu a capacidade de sonhar com o novo e nos apresentou um mundo indiscutivelmente distante do imaginário nacional, o cerrado, 64 castrou as esperanças e jogou por terra nosso conceito de cordialidade. E discutir esses adventos tem sido uma das grandes missões da romancista Maria José Silveira.
Na ânsia de nos mostrar o mundo real de seu interesse, a ficcionista às vezes se prende demais à linguagem coloquial. Isso se vê, por exemplo, no romance Maria Altamira. Neste Farejador de águas o coloquial se apresenta sobretudo quando Maria Branca toma para si a narrativa. São reflexões bem características do povo do lugar, mas que terminam um tanto prejudicadas pela necessidade de serem ditas o mais próximo possível da linguagem local. O mal, no entanto, não chega a ser assustador, ou mesmo prejudicar a narrativa como um todo. Vale lembrar que este cacoete fez o encanto de muitos de nossos narradores do Romance de 30.
O importante mesmo é que estamos diante de mais um excelente romance de Maria José Silveira. E ela volta com todos os elementos que vem utilizando ao longo de sua carreira. Mesmo tendo como protagonista um homem, Minino, são as mulheres fortes e decididas que domam a cena. Mesmo trabalhando um contexto histórico, é a denúncia dos pecados atuais — neste caso o desmatamento do cerrado — que a move. Mesmo se conduzindo por uma narrativa realista, na essência do termo, termina construindo um romance moderno e inquieto.
Enfim, Farejador de águas é um romance para ser lido consciente do passado, mas preocupado mesmo com o futuro.