Um vigarista chamado Jorge (2)

Livro de Jorge Mautner parece tomar a forma de uma miscelânea cuja continuidade é mais associativa e acumulada do que sequencial e unitária
O músico e escritor Jorge Mautner, autor de “Vigarista Jorge”
01/02/2024

O primeiro dos sete textos que compõem Vigarista Jorge dá título ao livro todo. E ele próprio, à imagem do conjunto maior, também é um composto de partes. No caso, cinco, que descrevo brevemente a seguir.

A primeira delas, tem um título de tipo didático, organizativo: Introdução: os vigaristas. O seu protagonista é o narrador de primeira pessoa que se chama “Jorge”, como Mautner. A segunda parte segue com o mesmo tipo de título: Parte I — o que dá bem ideia de que Mautner realmente pretendeu compor um conjunto ordenado. Ou seja, a ordem está no seu horizonte. Resta saber se a anarquia dos textos sabe o que fazer com ela.

A terceira parte já muda a orientação, referindo o gênero do texto que a compõe: Carta. E nisso é literal, pois se trata realmente de uma carta de amor a uma ex-namorada chamada Regina Lúcia (Relú), um nome duplo pouco comum, o qual, por isso mesmo, traz consigo alguma ressonância irônica, amenizada pelo apelido simpático. E a carta avança até o ponto em que se escreve de maneira igualmente literal: “Fim da carta”. Mas nada é tão literal assim, pois dentro dessa carta, no singular, são relacionadas três cartas, e não apenas uma. Ou seja, ao avançar, o livro parece tomar a forma de uma miscelânea cuja continuidade é mais associativa e acumulada do que sequencial e unitária.

A quarta parte sequer tem título, e ela só é discernível pela interpretação do texto. Embora mantenha o protagonista, a narrativa passa a ser feita em terceira pessoa, de modo que “Jorge” agora se destaca do narrador. Ou seja, na primeira parte, Jorge conta a sua história, como uma memória ou uma autobiografia; aqui, ela é referida como a aventura de um terceiro — ou então, alternativamente, como a aventura de um narrador que se refere a si mesmo como um outro. Essa quarta parte enfim termina num ponto do livro em que o literal e o metafórico são sobrepostos, pois se escreve, em letras capitais centralizadas: “fim sem fim pois começa um mundo novo”.

Na quinta e última parte desse primeiro conjunto de textos que estou examinando, o título é apenas uma data, como seria típico de um diário: Rio, 22 de junho de 1962. Trata-se aqui de uma narrativa que começa em primeira pessoa, mas que, em seguida, passa para a terceira, produzindo o mesmo efeito de antes no qual Jorge começa sendo narrador-personagem para se tornar depois apenas personagem. É nesta última parte que Jorge apresenta então o programa político do partido de que é o fundador e possivelmente único membro: o “Partido do Kaos”. O programa está orientado pelo que o narrador chama de “Marxismo Místico”, conceito que cruza, de um lado, referências marxistas meio óbvias, e, de outro, várias referências esotéricas, como Yin-Yang, tarô, alquimia, cabala etc. Do cruzamento bizarro resulta uma espécie de introdução ao que ele chama de “Quarta Dimensão”.

Fiz esse voo geral do terreno apenas para que saibamos o quanto ele é movediço. Retornemos, agora, a cada uma das partes a fim de conhecê-las mais de perto.

O termo “vigarista”, da Introdução: os vigaristas, que está também no título do livro, tem uma conotação ambígua. Correntemente, como sabemos, chamar alguém de vigarista é um tipo de ofensa ou xingamento, equivalente a “trapaceiro”, “escroque”, “enganador” ou “golpista”. Mas, da maneira como Mautner o emprega, não é bem assim. O termo facilmente deriva para “malandro”, enquanto autor de alguma estratégia de ação esperta e pouco usual. No Brasil, é conhecida a mitologia positiva do “malandro”, que já se descreveu como “dialética”: malandro é o sujeito pobre que se vira como pode para sobreviver, saindo com argúcia de situações difíceis — um aggiornamento do “pícaro”, portanto, que tem um pé na lei e outro na marginalidade. Mautner acentua essa conotação positiva do termo, sem eliminar a sua negatividade, que ele também explora como uma espécie de consciência culpada que ele revela em várias das ações de Jorge.

Ainda na Introdução, também se evidencia a predominância de certas descrições afetivas do clima, à maneira romântica, mas simplificada ao máximo. Em especial, têm conotação negativa “dia cinzento”, “vento frio” e “chuva”, o que, no Brasil, é um lugar-comum mais do que partilhado, ainda mais quando, numa situação caricatural, um carioca se refere a São Paulo. E é exatamente essa a situação de Mautner ao contar, em entrevistas, de sua mudança do Rio de Janeiro, onde na sua memória infantil sempre havia sol, para a antiga São Paulo da garoa. Diz ele que levou um “susto” — de resto, não apenas climático, pois com o sol carioca desapareceu também a sua babá negra, que identifica como uma “babalorixá”, a qual, sempre segundo Mautner, lhe descortinava um mundo permanentemente feliz. O choque da mudança para São Paulo parece estar associado em sua memória a uma espécie de fim do mundo encantado, a começar da “democracia racial” encarnada pela babá. Ou seja, há uma percepção afetiva e infantilizada do clima mais frio. Digo isso, entretanto, sem que o narrador tenha suficiente consistência psicológica para que possa ser caracterizada nele alguma profundidade interior. São apenas oposições-clichês propostas pelos próprios eventos, sem que a psicologia ganhe predominância no relato.

Todas as narrativas do livro têm algo dessa mudança de lugar traduzida pelo “susto” da perda de um paraíso original, e, em todas, o caminho do narrador é o da busca da aceitação mais ou menos sofrida e romantizada da queda do paraíso, o que equivale a encontrar uma função para essa queda no movimento de amadurecimento e progressão do espírito, para dizê-lo à maneira de Hegel, que o narrador cita às vezes. O movimento é duplo, digamos: de um lado, romântico-infantil, no qual a criança é retirada de seu mundo de sonho; de outro, historicamente acomodatício, no qual o sujeito busca ajustar a contradição sofrida num processo dialético de superação dela e de acréscimo de consciência. Ademais é um movimento idealista, tanto pelo ponto de partida na fábula infantil, como pela chegada a partir da evolução da autoconsciência. Hegelianismo de conto de fadas, poder-se-ia dizer.

Esse tipo de ganho de consciência a partir da queda é também o que Mautner nomeia como “Kaos”, um neografismo, no qual a letra K parece fazer uma grande diferença em relação ao caos ordinário: onde havia dor e susto, agora há uma ação organizada da consciência que se evidencia na alteração do vocábulo. E atire a primeira pedra quem nunca leu Derrida a falar da “différance” e da heterodoxia linguística na base dos processos de desconstrução.

No “Kaos”, os afetos contraditórios se organizam num todo que já é capaz de assimilar dia cinzento, vento e frio, ou, se quisermos, os desgostos e dores da infância partida como condição da existência madura. Assim, a superação da contradição estaria em se deixar invadir por esse frio, por essa angústia, porque só por meio dele o sujeito é capaz de ocupar o seu lugar no futuro organizado da mente e da existência.

Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

Rascunho