Texto escrito em parceria com Maíra Lacerda
Os mistérios das relações fraternais — o que se ganha e o que perde na presença e na ausência da pessoa com a qual se compartilha espaço, carinhos, brigas e angústias — são explorados em texto e imagens por María Hergueta em Quando você não está aqui, traduzido por Márcia Leite. A história tem início já na capa, com muita ousadia, ao apresentar duas crianças e uma importante informação narrativa: a representação do menino é sem interferências, a imagem da menina, todavia, está rabiscada. O que poderia ser considerado uma intervenção de algum leitor prévio demanda um olhar atento para identificar um lápis “displicentemente” caído abaixo da mão do menino, que é protagonista e narrador desse livro ilustrado. A partir daí, somos apresentados aos diversos aspectos positivos da ausência do outro, a começar pela afirmativa “eu gosto quando você não está aqui”; seguem-se, no entanto, as indagações que essa mesma ausência pode gerar. Tais aspectos são apresentados em frases curtas e diretas, ampliadas em sua compreensão pelas ilustrações que as acompanham.
Nesta coluna, refletimos a respeito do livro de literatura que crianças e jovens também podem ler. Na maioria das vezes, dentro desse universo, nos debruçamos sobre livros ilustrados. Contudo, é importante por vezes retomarmos teorias para melhor acompanhar as análises desenvolvidas. Sophie Van der Linden, crítica e especialista, organiza três categorias principais para a forma como texto e ilustração podem interagir, a fim de construir sentido.
A relação de redundância acontece quando o sentido principal veiculado pelas instâncias de significação — texto e imagem — mostra-se duplicado, em um efeito de repetição ou pleonasmo. Se por um lado tal relação pode ser sinal de falta de elaboração, pode também servir ao projeto literário e poético da narrativa, especialmente quando tratamos de livros para crianças menores, que têm nas imagens elementos de confirmação e reforço à compreensão textual. Cabe ainda realçar que, como conteúdos idênticos não são possíveis pela própria divergência das linguagens, a redundância é avaliada pelo fato de ambas as instâncias remeterem à mesma narrativa, tendo seus conteúdos total ou parcialmente sobrepostos, sem produção de sentidos suplementares. A disjunção, por sua vez, é o extremo oposto da redundância, e iremos explorar melhor suas possibilidades em oportunidade futura.
Os sentimentos contraditórios presentes na relação fraterna apresentada em Quando você não está aqui não se encontram presentes unicamente em nenhuma das linguagens — textual ou imagética —, mas sim na relação de colaboração entre elas. Enquanto o texto afirma “quando você não está aqui, sobra muito mais espaço”, a imagem nos apresenta um cenário em página dupla do narrador adormecido, acompanhado em seu sono por diversos bichinhos de pelúcia, em uma cama enorme, quase sem fim. Por sua vez, quando o texto indaga “quem vai me fazer companhia quando você não está aqui?”, a ilustração nos mostra as mãos do menino, solitárias, formando sombras na parede — cachorros, pássaros, coelhos — em busca da presença que possa suprir aquela que lhe falta.
A colaboração é uma das interações mais presente nos livros ilustrados, com cada linguagem trazendo dimensões adicionais à outra, e o sentido se formando exatamente na relação entre elas e no encadeamento articulado da sucessão de ambas. No livro A incrível pintura de Felix Clousseau, o autor Jon Agee — em tradução de Dani Gutfreund —, permite que seu texto abra lacunas e deixe brechas que a ilustração preenche. Ao afirmar, no texto escrito, que o protagonista teve sua obra ridicularizada pelos juízes do Grande Prêmio de Arte, é a imagem emoldurada de um pato que nos faz entender as razões da zombaria. Todavia, tudo muda e os juízes ficam estupefatos ao ouvir um som vindo da tela, afinal, “era a primeira vez que um quadro grasnava”, mas, novamente, o texto não entrega tudo. Enquanto por palavras sabemos apenas que “isso não era nem metade da história”, são as ilustrações subsequentes que nos mostram a moldura vazia e o pato a andar pelo museu, assim como as peripécias das demais pinturas “vívidas” produzidas pelo artista, motivo então de sua aclamação e posterior repreensão. É no desfecho da história, no entanto, que a maestria da colaboração entre as linguagens se faz. Ao informar, por meio do texto escrito, a volta do personagem para o ateliê e para sua pintura, são as duas últimas imagens que nos fazem retomar o cenário de apresentação do pintor nas páginas iniciais do livro. A pequena ruela francesa agora nos mostra o personagem de costas, e, no virar da página, a magia acontece, com a mesma imagem apresentada num movimento de zoom out, que nos permite ver um plano mais aberto e perceber que ruela e personagem pertencem, ambos, a um quadro emoldurado. É na observação dessa imagem que a frase “(voltar) para sua pintura” ganha então outra leitura, e toda a narrativa pode ser reposicionada pelo leitor.
Um dos fatores que acabam por gerar preconceitos em relação ao caráter literário do livro ilustrado é o fato de seu texto ser breve e muitas vezes até simples. A questão, porém, é que essas narrativas não têm nada de simples em si, pois, nesse objeto, a escrita implica confiança na relação complementar com a imagem. Como reforça Linden, para uma relação produtiva entre as linguagens deve haver jogo, seja narrativo, semântico ou estético. E nessa perspectiva, Alexandre Rampazo joga com maestria em Orbitar. Enquanto o universo pictórico nos apresenta o contexto de um astronauta na imensidão do espaço — lindamente composto por um fundo preto repleto de respingos de tintas coloridas —, o texto verbal nos fala de um personagem longe de casa, em um lugar distante e vazio, a se indagar: “Penso numa saudade do meu mundo. De como as coisas eram e no que se transformam. E no tamanho deste mistério que é viver e não saber”. Em meio a esses questionamentos, o astronauta encontra o outro — seria um outro ser perdido nesse espaço? seria um duplo de si? O texto dá dicas — “Neste infinito de impermanências. Tem eu e tem você.” —, mas não entrega respostas. O jogo continua, a narrativa avança. O leitor precisa acompanhar texto e imagem, buscar pontes e conexões para preencher as fendas entre eles, e mesmo transpor alguns abismos. Apenas ao final da trajetória é possível olhar para trás e entender a jornada na sua completude.
A colaboração, conforme nos faz ver Linden, é um expoente de primeira linha na criação de sentidos. Compreender que não existe uma hierarquia entre as linguagens, e que, na colaboração residem força e arte de uma obra literária, mobiliza as discussões habituais em direção a um campo mais amplo e fértil.