Vírgula ou labirinto de janelas

Morto em 1º de dezembro, Manoel Carlos Karam era uma das vozes mais originais da literatura brasileira
Ilustração: Ramon Muniz
01/01/2008

Desci pela avenida Imperador apertando o acelerador um pouco mais que o habitual para o trânsito de Relva, a avenida Imperador era larga, eu podia correr além da conta, eu me lembrava nitidamente de estar imaginando que a pressão no acelerador acima das previsões era provocada pela música, eu dirigia ouvindo o Quarteto nº 15 de Verganz, o carro era um velho Clap, igual ao do escritor Manoel Carlos Karam, com quem eu tinha marcado um encontro (que pretendia transformar em entrevista) no About — um bar sem janelas. Estava preparado para a conversa: risquei tudo da memória e mudei para a imagem que eu poderia encontrar quando entrasse no About. Preservei apenas algumas lembranças antigas que sou obrigado a reproduzir.

Antes de entrar nesse mundo de Encrenca — o livro que norteará o nosso encontro —, é imprescindível reproduzir aqui a conversa entre Karam e Umberto Eco, retirada de um texto cuja assinatura estava ilegível, no surrado jornal encontrado na Biblioteca Pública do Paraná:

Manoel Carlos Karam, sua barba e cabelo compridos esperavam Umberto Eco no aeroporto Afonso Pena, naquele inverno terrível de 1988. As vidraças dos polacos embaçavam, as meninas escondiam os dedos entre as pernas e os moçoilos enchiam a cara de vinho barato. Eco, já gordo e careca, abraçou Karam com a malemolência de um urso que acabara de acordar. Eram amigos há muito tempo. Nada de rádio, TV ou jornal no aeroporto. Só fiquei sabendo da inusitada visita do escritor italiano por meio do diário (coisa de menina?) que encontrei no porta-malas do Clap, agora estacionado na garagem de casa.

Após o efusivo abraço, Karam e Eco foram direto para o Centro de Curitiba. Precisavam caminhar. Deixaram as malas (poucas) no porta-malas do Clap, na época ainda de Karam, e em seus ridículos moletons (até hoje não consigo imaginar Umberto Eco viajando de calça de moletom e blusa de lã; Karam de moletom é uma comédia), foram percorrer o calçadão da Rua XV de Novembro, muito famoso pelas flores que são as eternas coroas no velório de Curitiba. O diálogo entre ambos está quase todo detalhado no diário de Karam:

— Leu os originais do meu livro? Ainda estou trabalhando nele, mas aquela é a versão quase final. Vou fazer pequenas correções, mas nada que mude o rumo das coisas. Tenho sentido muito frio na virilha, será que é a idade?

— Nada disso, Karam. A idade dói; não faz a gente sentir frio. Dói uma dor insuportável. Li seu livro. Gostei muito do Encrenca como título. Gosto da idéia de confusão. Seu romance diz respeito à presença do leitor na história. E todo texto é uma máquina preguiçosa pedindo ao leitor que faça uma parte de seu trabalho. Gosto disso em seu romance, pois cria várias perspectivas. É claustrofóbico e arejado ao mesmo tempo. Um dia, quem sabe, façamos uma viagem juntos até Relva, para beber uma gasosa no About, aquele bar sem janelas. Acho que estou com uma micose terrível na virilha. Coça demais. Será a velhice?

— Não, Eco. A velhice dói; dói uma dor suportável, mas perene e angustiante. Você vai gostar de Relva. É uma cidade boa para viver, dirigir e jogar futebol. As ruas são largas e dá para correr à vontade, sem se preocupar com a polícia de trânsito e as multas. Mas o pessoal anda abusando por lá e a prefeitura de Relva estuda um projeto para colocar guardas em cima das árvores e de alguns postes com uma máquina fotográfica de supervelocidade, para flagrar os motoristas mais apressados. Em Relva, imaginação e memória fizeram uma mistura. Imagina se a idéia vai pra frente e a cidade se enche desses guardas aéreos, que antes de existirem já são chamados de pardais. Espero que a idéia não vingue, senão terei de vender o meu bom e velho Clap. Não suportarei andar devagar. Gostou do carro?

— Gostei sim. O Italo Calvino teve um desses durante algum tempo e certa vez ganhei uma carona dele. Não é muito confortável, mas agüenta qualquer tranco. Karam, você já notou que uma história pode ser mais ou menos rápida — quer dizer, mais ou menos elíptica —, porém o que determina até que ponto ela pode ser elíptica é o tipo de leitor a que se destina? Gosto de pensar nisso. De discutir sobre a relação do escritor com o leitor no momento da escrita. O que você acha?

(Conforme anotado em letra miúda, neste momento Karam perdia os olhos nas nádegas de uma loira que passava apressada pelo calçadão e sumia entre o povaréu.)

— Karam, eu venho de tão longe para te visitar e estamos aqui conversando sobre literatura, e você prefere olhar uma bunda rebolante. Você não muda mesmo! Os teus livros provam para mim que seria um erro pensar que se lê um livro de ficção em conformidade com o bom senso. Não acha o mesmo?

— Acho que a gente precisa tomar um rumo. Escrever algo que preste, algo que chame a atenção pelo inusitado, pelo diferente, não pelo igual. O que mais me angustia é a mesmice de tantos. Todos fazem igual no teatro, na televisão, no cinema, nas artes plásticas. Acham que a igualdade os levará ao céu, todos. A morte não iguala ninguém, há caveiras que têm todos os dentes, como disse o Manuel Bandeira.

— O Mario Quintana, Karam.

— Que seja, tanto faz. A frase nem é tão boa assim, pode ser atribuída a qualquer um. O que me indigna é que qualquer ninharia poderia virar uma grande farra, fizemos grandes farras discutindo farras, contando as farras e cada um apostando na própria farra como a maior farra do século, ou como a maior farra do século para a semana seguinte, qualquer ninharia poderia virar uma grande farra, eu cheguei a imaginar um depoimento assim, qualquer ninharia poderia virar uma grande farra, eu não me lembrava nitidamente de qual havia sido a minha frase, uma grande farra poderia virar qualquer ninharia, se pudesse escolher eu teria preferido que qualquer ninharia poderia virar uma grande farra, mas eu me lembrava de que sempre imaginei possível ser perdoado pelas pequenas farras que viraram grandes farras ninharias ou vice-versa, eu sempre acreditei ser possível salvar-se com a expressão vice-versa, sempre que eu me extraviava, eu me lembrava nitidamente, sempre que eu me extraviava tentava escapar com um vice-versa.

— Mas aonde vai parar essa espiral, Karam? Não te preocupes tanto, se há um leitor-modelo para o Finnegans wake, também há o leitor-modelo para o Encrenca. Tudo bem que o Encrenca me parece muito melhor. Você me lembra o grande prestidigitador da literatura mundial: o Georges Perec.

— Mas eu sou mais bonito que ele, que tinha aquela cara de louco. Mas um sujeito como aquele só podia ser louco, com aquela idéia fixa de escrever um livro tão grande quanto o mundo. Ainda bem que se contentou com o Tentative d’épuisement d’um lieu parisien. Mas a espiral não vai dar em lugar algum. Por que tudo tem de ter um começo, um meio e um fim? É isso mesmo, sou contra as regras que inventam regras. Crio mundos e não consigo mais sair deles, não consigo abandoná-los, os meus lugares me consomem, me afligem e, ao mesmo tempo, me dão imensa alegria. Sempre estou preso, estou eternamente na casa tomada de Cortázar. Vamos parar naquela farmácia da esquina para comprar meu Invetral 7.200. Já não vivo mais sem ele.

— Deixe os remédios de lado; você não é doente. Quer dizer, só um pouco, mas nada sério. Você sabe que o leitor tem de saber que o que está sendo narrado é uma história imaginária, mas nem por isso deve pensar que o escritor está contando mentiras…

— Pare com isso, Eco. Você vive cheio dessas teorias. Aqui nesta cidade de flores e neblinas, todo mundo tem uma teoria para tudo. Todos acham que são os melhores. E na verdade a nossa vida se resume a este calçadão, com um forte cheiro de velório.

— Não seja tão pessimista e ranzinza. Isso não combina contigo, meu caro Karam. Além do mais, os mundos ficcionais são parasitas do mundo real. E…

— Pare com essa ladainha e vamos entrar neste café. Aquele que vem ali, de calça azul e camisa amarela, é o escritor Manoel dos Santos Pereira. É o cara mais chato que eu conheço. Além do mais, ele me deu um livro dele para ler, um tal de Velhas coincidências…”

As considerações de Eco sobre o livro Encrenca são fundamentais para definir os rumos da literatura de Manoel Carlos Karam: a escrita espiralada e o desprendimento com a linearidade são marcas permanentes na obra deste catarinense de Rio do Sul, onde nasceu em 1947, mas viveu em Curitiba desde 1966 até 1º de dezembro, quando morreu de câncer. Há alguns anos, conversei com ele durante um baile, que acabou num estranho incêndio. Tudo isso pode ser retratado aqui para dar mais amplitude à sua obra, composta por — além de Encrenca Fontes murmurantes (1985), O impostor no baile de máscaras (1992), Cebola (1997), Comendo bolacha maria no dia são nunca (1999), Pescoço ladeado por parafusos (2001) e Sujeito oculto (2004).

Ilustração: Ramon Muniz

Eis o estranho encontro entre chamas:

Quando cheguei ao baile — música lenta, corpos se esfregando como se ali o mundo fosse se esfacelar em segundos, a luz bem penumbrosa a espiar algumas inseguras apalpadelas nas carnes disponíveis, um odor adocicado de bebida e uma estante com livros, que, é bem verdade, tinha pouca utilidade —, vi no contraste da festa a figura solene de Manoel; estava parado com a barriga encostada no balcão a sorver, com a parcimônia de um bebedor seguro, talagadas comedidas do copo; coçava a barba e olhava de olhar pequeno para mim. Sem ao menos me cumprimentar, disse-me: “conto como foi a guerra no ponto do ônibus através de quadros. Um historiador que pinta quadros. Dá para desconfiar”. Sim, e como dá para desconfiar, e logo desconfiei que Manoel iria falar muito aquela noite sobre tudo e sobre todos. Animei-me, deslizei o corpo pela cadeira e pensei como poderíamos ter nos encontrado naquele lugar: se não éramos noctívagos ou grandes bailarinos?

A resposta veio na espiadela no calendário, com uma foto de uma mulher vestida toda de preto, pregado na parede. Era dia de são nunca. E nesse dia, desde muito tempo, encontrávamo-nos pelas ruas e bares de Curitiba a festejar a descoberta das saborosas bolachas maria. Nunca combinamos e tampouco falamos sobre o assunto. Mas comemoramos sempre com entusiasmo tão importante dia, organizado e patrocinado pelo Joca Reiners Terron. E é nesse dia ou noite (como é o caso agora) que Karam sobe em bancos, mesas, trampolins… e discursa: “vive-se permanentemente em estado de busca, o que eu busco é descobrir qual é a minha busca, o cão tenta morder a própria cauda mas eu, que não tenho cauda, não sei morder, e os sintomas de que já encontrei a minha busca podem ser falsos”. E completa: “não se leva desaforo para casa, dorme-se num hotel e quem não tiver pedras que se atire”. Karam é assim. Sempre em busca dos inúmeros sentidos que a vida nos apresenta, anda, e como anda!, pelas ruas da cidade a pensar na cidade e como ela nos incendeia a vida, nos sufoca, nos oprime e nos tira o pouco sono que nos resta. Olha, observa, sente os que o rodeiam; sempre a perscrutar uma forma de descrevê-los, de senti-los como “há quem fique num bar fumando. Só isto, sentado num café fumando. E há quem faça um pouco diferente: ande pelas ruas fumando, o que pode ser a mesma coisa que ficar sentado num café fumando”.

De repente, a música lenta é sufocada pela voz rouca de Louis Armstrong, que com a companhia de trovões de uma tempestade que ensaia ao longe, conduziu vários corpos pela casa com Give me a kiss to build a dream on. A cena patética, mas necessária, da mulher apoiando a cabeça no ombro do homem espalhou-se pelo pequeno salão. Nós continuávamos a tomar nossos líquidos nos copos quando um pequeno animal que parecia ter duas patas traseiras direitas — uma coisa bem estranha, pois mesmo sem ter uma pata esquerda, caminhava com desenvoltura — atravessou a casa com as penas chamuscadas. Fagulhas vinham do sótão e desciam pelo corrimão da velha escada. A casa estava em chamas e ninguém arredava o pé do salão, agora inundado por Cabaret. “Olhe o fogo, Karam”, disse para o meu comparsa de conversa. Mas como resposta apenas ouvi: “Veja, Cândido está socorrendo livros do incêndio. Preocupado com as chamas, ele apanha em seu quarto, onde o fogo se derrama pelas paredes… Cândido carrega a pilha de livros nos braços, está tirando os livros do quarto, onde o fogo se derrama pelas paredes”. E Cândido com uma máscara e um punhado de livros correu em direção ao jardim, deixando-os sobre as fontes murmurantes.

Irônico, sim. Tudo em Karam tem muito da ironia necessária à vida. Ironia sutil, sublime, desleixada, mordaz, inteligente, doída como espetar espinho embaixo da unha depois do banho; entra fácil na carne mole. Em plena festa, esse incêndio. Acho que foi engendrado por ele, quando Armstrong bolinava What a wonderful world. A festa arrefeceu os ânimos depois do incêndio. Alguns deixaram a casa com os casacos nos ombros. Os braços enrolando as mulheres. Iam fazer sexo, ou amor, como preferem os sarcásticos. Eu, muito bêbado, ainda tive a curiosidade de saber quem era esse tal de Cândido, ou o nome dele seria Louis? Quem era? Manoel Carlos, com sua ironia ferina, respondeu-me: “Tínhamos duas semanas de cessar-fogo por ano. Era durante a Semana dos Voluntários da Pátria, que caía em meses diferentes para nós e para os taedos. Nós fazíamos as homenagens em fevereiro, os taedos em setembro — ou vice-versa, nunca me lembro. Os nossos Voluntários da Pátria eram heróicos soldados que participaram da guerra contra os taedos, eles passaram um bom tempo da vida deles matando os Voluntários da Pátria dos taedos. Voluntários da Pátria passaram a ser sinônimo de cessar-fogo durante a guerra e de feriado para o resto da vida. Tem também a história do Voluntário da Pátria Desconhecido, ele levantou do túmulo para comprar cigarros e nunca mais voltou”. Cândido era um Voluntário da Pátria Desconhecido.

A mulher da limpeza, como era conhecida a mulher responsável pela limpeza da casa após os bailes, já enxotava nossos pés, quando Manoel Carlos Karam catou o casaco e o amarrou na cintura. “Para onde vai, meu caro?”, perguntei. “Como dizia Bernardo Bertolucci, não sei para onde estou indo, mas não posso ficar parado”, respondeu-me. Fiquei ali parado segurando os quatro livros que resistiram ao incêndio.

Essas histórias (ou seriam anedotas?) ilustram como se constrói a literatura de Karam. Portanto, já podemos tentar adentrar os confins labirínticos de Encrenca, saborosa viagem pelas largas ruas de Relva e pelos ruídos do About — o bar sem janelas.

Quando cheguei ao About, vi Karam sentado a uma mesa no fundo, logo depois da pista de dança, onde casais sacolejavam ao som de AAAA, a música de 20 minutos. Sempre gostei muito de Relva — ali passei algumas férias na infância e retornar agora à cidade enchia-me de uma boa nostalgia —, de suas ruas largas e seus estranhos carros, principalmente o Clap, o meu preferido. Estacionei o meu Clap a uns 300 metros ao do Karam, para evitar confusões, caso sejamos obrigados a deixar o About às pressas.

(O Clap é um carro estranho. Nem feio, nem bonito. Apenas estranho. De origem inglesa, poucos foram os exemplares comercializados na América Latina, desde o fim da década de 60 e o começo dos anos 70. Por isso, tão raro um Clap a arrastar-se nestes tempos de tanta velocidade e pouca paciência. É forte qual um touro enraivecido. Sua falta de beleza é compensada com a força, como um zagueiro desajeitado a brilhar chutões. Não é bonito, mas resolve. As suas linhas [como gostam os especialistas] são antiquadas: meio quadradão na traseira e um pouco abaulado na dianteira — uma mistura de Variant, Fusca e ornitorrinco. O motor, como já disse, é potente e enfrenta qualquer trecho. Excelente para carregar tralhas e subir morros.)

Cumprimentei Karam com o entusiasmo de sempre. Apertei sua mão de maneira gradual, até que seu rosto demonstrasse os sinais da dor. Divertia-me com isso, pois sei muito bem que ele odeia apertos de mãos. Prefere os abraços. Eu odeio os abraços, não que ame os apertos de mãos. Ambos são desnecessários, assim como aqueles beijos que as mulheres trocam, mesmo quando se encontram todos os dias — sempre achei que fazem isso para se cheirar como animais, para sentir o perfume nas carnes da adversária.

Como vai?, perguntei, vou bem, ele respondeu, sei que você está muito feliz com o seu livro, eu disse, estou sim, ele disse, o livro é um dos melhores, pois representa toda a sua obra, eu disse, não sei, isso é com você que vive a escrever sobre livros, ele disse, eu acho muito bom, muito bom mesmo, e tenho motivos para dizer isso, eu disse, ah é, ele disse, é, eu disse, e por quê?, ele disse, por vários motivos que vou te falar agora, eu disse.

A garçonete tinha deixado o cardápio sobre a mesa e a incerteza nos rondava.

Vou pedir o prato 47, eu disse, é muito bom, ele disse, é o melhor da casa, ele disse, então vamos pedir dois, eu disse, tudo bem, estou com muita fome, ele disse, eu também, a viagem até Relva é um pouco cansativa, eu disse, então vamos de 47, ele disse.

Pedimos o prato 47, que demoraria 4 minutos e 45 segundos, informou-nos a garçonete de nome Beltrana. E no tempo previsto a comida estava em nossa mesa, acompanhada de cerveja escura com limão. O prato tinha uma aparência ótima: massa de trigo com bordas torradas, tomates cobertos por cebolas verdes, fatias de ovo de galinha frito com queijo derretido, azeitonas recheadas com pimenta, molho de feijão, carne crua de boi em tiras, rodelas de laranja sobre pão escuro com casca, arroz amarelo.

Comemos em silêncio e resolvemos repetir o pedido, para espanto da garçonete de seios apetitosos.

Após saciar a fome, resolvemos retomar a conversa.

Eu disse: a sua literatura me espanta muito, revolve coisas com que os escritores não estão acostumados ou em que não entram por puro medo, hoje todos optam pelo mais fácil e têm medo de arriscar, querem o sucesso, a fama com a literatura, são uns iludidos, você, não, você quer fazer da sua literatura uma opção coerente, sem maneirismos ou tiques nervosos, a sua coerência é muito agradável, seus personagens transitam de um livro a outro, todos poderiam estar em qualquer obra, independentemente da história, as suas tramas são escritas para todos, não privilegia uns em detrimento de outros, o seu estilo é embaralhar, nunca entregar com facilidade, você quer que o leitor se pergunte, se questione o tempo todo, ou então apenas entre e desfrute o prazer da leitura, sem se preocupar com inúmeras voltas, idas e vindas, círculos, caminhos estranhos, armadilhas, que você tão bem engendra.

Ele disse: as histórias são sempre contadas várias vezes por vários contadores, pelo menos é o que os contadores contam, cada um tem a sua velocidade conforme o jeito de contar, ou então uma história já contada muitas vezes com lentidão ou rapidez deve ser contada novamente com mais lentidão ou com mais rapidez, a minha conclusão é que estão certas uma coisa e outra, e se alguém ouvisse a nossa conversa, contaria a história com rapidez ou lentidão?

Eu disse: não sei. E observei que Karam havia aparado o bigode, os fios rebeldes estavam comportados. Ficamos em silêncio enquanto Beltrana depositava duas doses de Bambu sobre a mesa.

Uma briga, devido a alguma encrenca, começou entre algumas mesas. Dois homens trocando socos e pontapés derrubaram primeiro a mesa onde estavam bebendo e em seguida três mesas vizinhas, conseguiram virar quatro mesas porque tudo aconteceu com muita rapidez, com mais rapidez que a chegada dos seguranças, mas depois que chegaram tudo foi muito mais rápido ainda, não foi necessário um minuto inteiro para que os dois homens que brigavam desaparecessem e as mesas estivessem em seus lugares e novamente cobertas de copos e garrafas.

No About, permanecemos mais algumas horas, sob o som de AAAA. Repeti à exaustão minhas considerações sobre a literatura de Karam, mas via-me cada vez mais enrolado num labirinto de teorias, cheguei a ficar tonto, citei muitos teóricos, principalmente o russo Bakhtin, com quem simpatizo, para relacionar a obra de Karam à do argentino Julio Cortázar. O diálogo é inevitável. O conto A casa tomada, de Cortázar, está ampliado em toda a obra de Karam. O engarrafamento do conto A autopista do Sul está presente nas ruas de Relva, mas não o descobrimos pois o romance é noctívago e engendrado entre as paredes do About. Mas podemos imaginar os longos engarrafamentos na entrada de Relva, com Cortázar ao volante de um Clap. E o que dizer de O jogo da amarelinha e sua leitura aleatória-labiríntica. Poder-se-ia abrir Encrenca em qualquer página e desfrutar a leitura, que também poderia se iniciar pelo fim do livro. O prazer seria o mesmo. Inúmeras janelas se abrem no labirinto de Karam. É só escolher e entrar. Não que Karam seja um diluidor de Cortázar. Não. As semelhanças engrandecem ambos os escritores aos olhos atentos do leitor.

Quando deixamos o About, a chuva respingava na calçada. Despedimo-nos com um aperto de mãos, seguido de um abraço. Corremos em direção aos nossos Clap.

Quando saí do estacionamento, vi Karam seguir na contramão pela avenida Dezembro. Parecia seguir de perto um Stella.

Manoel Carlos Karam
Nasceu em 1947, em Rio do Sul (SC), mas vivia em Curitiba desde 1966, onde morreu em 1º dezembro de 2007. Cursou jornalismo na Pontifícia Universidade Católica. É autor de Fontes murmurantes (1985), O impostor no baile de máscaras (1992), Cebola (1997, vencedor do prêmio Cruz e Souza), Comendo bolacha maria no dia são nunca (1999), Pescoço ladeado por parafusos (2001), Encrenca (2002) e Sujeito oculto (2004). Também escreveu 20 peças teatrais. Em março de 2000, participou ativamente da escolha do nome do Rascunho. Karam preferia que o jornal se chamasse Vírgula e sempre que nos encontrávamos nas ruas de Curitiba ou de Relva, ele me dizia: “Recebi o Vírgula deste mês. Vou ler com calma”.
Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

Rascunho