Na batalha, apesar de tudo

Em “Tarás Bulba” não se encontra o Gógol genial e cínico de contos posteriores; o personagem é artificial, forçado, caricato
Nikolai Gógol, autor de “Tarás Bulba”
01/01/2008

Tarás Bulba é um dos grandes personagens da história da literatura. Na novela de Nikolai Gógol, nós o encontramos como um coronel cossaco que vê o fim da vida se aproximar. Ele agora mal sai da casa onde vive com a esposa tediosa, esperando o tempo passar e relembrando as aventuras e perigos do passado. Até que seus dois filhos deixam o seminário e voltam para vê-lo. Bulba se empolga ao encontrar os rebentos enormes e resolve retomar a vida cossaca ao lado deles. O coronel é teimoso, idealista, brigão, controlador, machista. Tudo que deseja é passar por novas e novas guerras e derrubar inimigos como se fossem moinhos de vento — seu sangue é quixotesco até a medula. Trata-se de um homem para quem “é indecente viver sem batalhas”. Nunca percebe quando exagera, delira ou beira o ridículo. Uma criação exemplar.

Agora voltamos à realidade: não, Tarás Bulba não é um dos grandes personagens da história da literatura. Por quê? Porque faltou Gógol perceber o incrível potencial de sua criação. Tarás Bulba, o livro, foi publicado originalmente em 1835, ainda no início da carreira do escritor russo-ucraniano, em uma época em que prevalecia na literatura a figura do herói bravo e valente que combate as tiranias (neste caso, o governo sangrento e despótico do czar Nikolai I) e celebra os benefícios do nacionalismo. Os cossacos representavam um raro caso de resistência ao czarismo. Beberrões quando não estão lutando, no campo de batalha são violentos, idealistas e insistentes, quase cegos de tão ideológicos. Não estávamos ainda diante do Gógol genial, cínico e delirante de contos posteriores como O capote, O nariz e Diário de um louco, estas sim as amostras obrigatórias de seu talento, as pedras que cravaram seu nome na história e influenciaram um punhado de gente essencial (Sartre chegou a apontá-lo como o fundador da literatura moderna). Imbuído da ingênua euforia ufanista de seus primeiros anos, ele estragou um candidato a grande personagem ao tentar transformá-lo em mártir da causa de uma minoria. Como se Lima Barreto levasse seu Policarpo Quaresma a sério.

Assim, ao invés de retratá-lo como patético pela maneira como induz os filhos ao participar de sua luta, Tarás Bulba é descrito como um sujeito obstinado e irredutível. Seu apego à pobreza e à simplicidade do povo cossaco (“um vasto e desregrado proceder da natureza russa”) soa falsa e politicamente correta. E depois de poucas páginas toda essa teimosia parece nada menos que artificial, forçada, caricata. Sua truculência e temperamento agressivo, aqui, são celebrados como uma distinção “pela sinceridade grosseira de seu temperamento”. O leitor não chega a simpatizar com a causa de Bulba e nem antipatizar; os comícios, reuniões e convites à guerra dos cossacos (ou zaporogos, como também podem ser chamados) cansam. Eles mais parecem uma brincadeira de criança mimada. E isso não é uma crítica à sua ideologia, pelo contrário. Foram admiráveis pela coragem de enfrentar um ditador implacável e por defender suas terras dos poloneses e dos turcos, muito mais fortes e numerosos.

Gógol, no entanto, aparentemente empolgado e engajado na defesa do nacionalismo do povo ucraniano, fecha os olhos para os exageros do exército cossaco. Segundo o narrador, “não há ofício que o cossaco não conhecesse: destilar vinhos, equipar uma telega, fabricar pólvora, realizar trabalho de ferreiro e serralheiro (…) Numa palavra: o caráter russo ganhou aqui uma poderosa e tensa ampliação, um aspecto vigoroso”. Gógol destila com euforia os saques, incêndios, estupros e assassinatos que os soldados cometem ao invadir povoados indefesos e que não lhes haviam feito nada de ruim para merecerem tal opressão. Como nestes trechos em que provocam “gloriosamente” o caos em uma cidade:

Incêndios envolviam os povoados; o gado e os cavalos que a tropa não levava eram abatidos ali mesmo. Parecia até que eles faziam banquetes, e não uma campanha (…) E logo a majestosa abadia foi envolvida por chamas destruidoras, com suas colossais janelas góticas se mostrando, severas, por entre as labaredas. As multidões que fugiam, formadas por monges, judeus e mulheres, encheram de repente as cidades onde havia alguma esperança na guarnição (…) Era uma ciência divertida. Eles já haviam conseguido muitos arreios de cavalo, sabres valiosos e espingardas. Em um mês, os frangotes que tinham acabado de emplumar-se se transformaram por completo, ficaram robustos e tornaram-se homens. Os traços de seus rostos, nos quais até pouco tempo se via uma certa ternura de juventude, eram agora firmes e terríveis. Para o velho Tarás era um prazer ver que ambos os seus filhos estavam entre os primeiros.

Depois de abandonar a esposa, Tarás Bulba leva os dois filhos à Siétch, a base de operações cossacas próxima ao rio Dniepr. Os bêbados festejam e cumprimentam a tranqüilidade daqueles dias. Menos Tarás, que sonha em ver os rapazes passarem por essa transformação do parágrafo anterior. O coronel incita uma rebelião para obrigar o líder da comunidade a convocar uma nova guerra contra os muçulmanos, contrariando um acordo de paz feito no passado. Os cossacos cavalgam então em busca de novas aventuras, novas vitórias, novos derramamentos de sangue — não importa de quem. Ao chegarem a uma cidade ocupada por poloneses (chamados pejorativamente de polacos; os judeus, por sinal, também são tratados como seres inferiores e mesquinhos, algo comum na literatura russa do século 19), dão de cara com muros resistentes. Posicionam-se do lado de fora do vilarejo. Impedem o abastecimento de comida para causarem fome e enfraquecimento dos moradores, até que os inimigos recebem reforços e embates sangrentos se seguem, com perdas para os dois lados. Tarás Bulba chega a ver o filho caçula mudar de lado após se apaixonar por uma bela dama polonesa…

Não se pode negar que esta história é contada com vigor e descrições coloridas e empolgantes de viagens e de combates. Gógol escreve muito bem: um estilo que, como o do “francês” Turguêniev, tem mais de ocidental do que as fúrias eslavas e caudalosas de Dostoiévski e Tolstói, dois autores que não se destacam exatamente pela beleza da prosa. Bruno M. Gomide, na orelha da edição brasileira de Tarás Bulba, lamenta que a novela, bastante famosa fora da Rússia (virou filme em Hollywood com Tony Curtis e Yul Brynner), seja vista por muitos “como um mero romance de aventuras, estilo ‘capa e espada’”. Será mesmo? É evidente que está longe de ser apenas isso, mas o leitor se diverte sim como em um volume de ação e aventura. Tentar negar isso não passa de elitismo tolo. Basta que o leitor não se prenda a reducionismos.

O leitor, aliás, é a grande esperança para verter uma obra mediana em uma experiência memorável. Ora: Gógol pode ter estragado seu Tarás Bulba ao levar a sério seus ideais e ao encarar a saga dos cossacos como o papa encarava as Cruzadas cristãs realizadas entre os séculos 11 e 13. Pode ter desperdiçado uma personalidade de incrível potencial cômico por ver nela uma manifestação de heroísmo e coragem (o final martirizado — e cristão — do livro apenas ressalta essa miopia do autor de Almas mortas), e não o elemento patético que carrega. Mas o que obriga o leitor a engolir essas visões equivocadas? Saber enxergar essas entrelinhas e independer da visão do escritor é a grande força da literatura.

Tarás Bulba
Nikolai Gógol
Trad.: Nivaldo dos Santos
Editora 34
170 págs.
Nikolai Vassílievitch Gógol
Nasceu em 1º de abril de 1809, na província de Poltava, atual Ucrânia. Despontou para a literatura com o conto Noite de São João, baseado numa lenda popular ucraniana. Celebrizou-se por contos como O capote, O nariz, O retrato e Diário de um louco, além da peça teatral O inspetor geral. Em 1842, publica a primeira parte do romance Almas mortas, cuja segunda parte nunca terminaria. Faleceu em 4 de março de 1852.
Jonas Lopes
Rascunho