Não são poucas as metáforas que comparam a vida a uma estrada. Que todas as curvas sinuosas devem ser encaradas com prudência; que na dúvida, não ultrapasse; que a velocidade máxima deve ser respeitada; que seu corpo é como um carro que requer manutenção, etc. A estrada da vida é lugar-comum. No entanto, poucos comparariam a vida a um circuito de corrida. Talvez até mesmo os aficionados por corridas tenham dificuldade em fazer tal comparação. Afinal, uma pista de corrida é um circuito em que você anda, anda e volta sempre ao mesmo lugar, enquanto na vida você nasce, cresce e morre, e nunca volta ao mesmo lugar, como na história do rio.
Por isso, quando encontramos um escritor que coloca uma vida em um circuito de corrida e consegue fazer isso de forma inteligente e emocionante, ficamos impressionados com a possibilidade — talvez antes não vislumbrada — e tentados a fazer comparações, algumas até insensatas. Por que não comparar nossa vida a uma garrafa de vinho do Porto (espera-se que seja um vintage ou pelo menos um LBV) ou a uma xícara de café? Bom, elucubrações à parte, basta dizer que vale a pena percorrer o circuito de corrida que foi a vida de Ultimo Parri, personagem principal de Esta história, do italiano Alessandro Baricco.
O autor utiliza diversos estilos narrativos para nos contar a trajetória de Ultimo Parri, primeiro e único filho do casal Libero e Florence Parri. Nascido no norte da Itália, em fins do século 19, Ultimo foi uma criança frágil e doente que, apesar disso, conseguiu sobreviver a todas as ameaças. Seu pai era um produtor de leite que, após ver uma corrida de carros, decide vender todas as vacas para montar uma oficina, a Garagem Libero Parri. Vale lembrar que estamos falando do início do século 20, em que carros eram raros e que as corridas, quando existiam, normalmente eram feitas pelas estradas existentes, atravessando diversas cidades com a população acotovelada à beira da rodovia, não raro com diversas mortes de pilotos e espectadores.
(Para nos ambientar neste momento da história, Baricco reconta à sua maneira uma histórica corrida, a Paris-Madri de 1903, interrompida na metade pelo governo francês por conta do número de mortos e feridos ainda nas etapas iniciais. Mais importante que o número de mortos, é a narrativa de como os pilotos eram vistos pelo resto da população: aventureiros, os novos pioneiros, os desafiadores do bom senso e do comodismo, os intrépidos e românticos personagens de um novo século, de máquinas e velocidade.)
Motivo de vida
Aos poucos, Libero Parri vai se envolvendo com o mundo dos motores. E a cada passo ele faz questão de ser acompanhado por Ultimo. No entanto, este, mais do que motores ou carros, está apaixonado pela estrada, pelas curvas que ela possui, pelas retas sem fim e por uma pequena elevação na estrada perto da sua casa, capaz de tirar as rodas de um carro do chão caso se aproxime em alta velocidade. E quando pai e filho vão a Turim para falar com o criador dos veículos Ítala e saem dali como representantes da marca para o norte da Itália — nesta noite em que finalmente entram no mundo dos negócios do automobilismo —, Libero toma umas e outras em um bar e sai perdido na neblina turinense para ficar dando voltas em torno de uma quadra. O fato de ver-se sempre no mesmo lugar, em vez de assustar ou aborrecer Ultimo, o encanta. Ali ele encontra o seu destino, o seu motivo de vida que o acompanharia para sempre. Desde este momento, toda a vida de Ultimo será uma viagem em busca do desenho perfeito de seu circuito e do local onde ele seria construído.
Baricco nos faz acompanhar Ultimo por vários lugares durante a sua existência. Começando pela sua infância e pré-adolescência no norte da Itália, passando pelas trincheiras de Caporetto durante a Primeira Guerra Mundial, seguindo para os Estados Unidos e de volta à Europa, Baricco nos conta não um roteiro de viagem, mas um memorial sentimental de vários personagens a respeito de Ultimo. Este não é nunca o narrador da história. A visualização do circuito final de Ultimo só é possível quando chegamos às últimas páginas do livro, levados por uma personagem que poderia ser secundária, dada que a história é de Ultimo, mas que é fundamental para entender — e se emocionar — com Esta história. O livro usa a narração em terceira pessoa, a entrevista, o diário e o poético, dependendo de quem conta a história de Ultimo, para compor o quadro completo de sua vida.
Ainda que o romance tenha algumas lacunas em termos temporais, elas nem de longe comprometem o entendimento e a apreciação da obra. Baricco sabe usar bem os espaços e o silêncio em seu trabalho, além de ser altamente poético. Há muitas passagens em que ele transforma o comum e o rotineiro em poesia. No capítulo final, por exemplo, uma hospedaria ao largo da Grande Corrida, no norte da Itália, transforma-se ponto de confluência de diversas vidas, uma espécie de sintetizador de sentimentos díspares. E tão grande é a obra de Ultimo que ela sobreviverá à sua morte, por conta de outras mãos.
A diversidade de vozes, a habilidade do autor em usar silêncios e transformar gestos cotidianos em poesia, o carisma que consegue dar a Ultimo e a sua persistência em não ceder à tentação e assim preferir dar dicas, sugestões e indícios do que é a vida de Ultimo, sem que este nunca ou quase tenha voz, em vez de dizer tudo de uma só vez, tornam Esta história um livro delicioso e altamente emotivo. E, melhor de tudo, não é necessário gostar de corridas para se deixar envolver por este circuito.