A noção psicanalítica de romance familiar é o fio condutor deste Romance das origens, origens do romance, publicado pela primeira vez em 1972. O ponto de partida é o estudo de Sigmund Freud, O romance familiar dos neuróticos. Daí em diante, a autora apresentará, segundo sua concepção, duas vertentes do romance: uma que contará a história da criança perdida e a outra, a do bastardo.
Para ancorar sua argumentação, Marthe Robert utiliza dois dos maiores romances da literatura universal, Dom Quixote (1605), de Cervantes, e Robinson Crusoé (1719), de Daniel Defoe.
Antes de entrarmos nessa questão, convém lembrar que o que não nos chega pelos gregos nos chega por Freud. Importante dizer que o ingresso da psicanálise na literatura não é nenhuma novidade. Se não estou enganado, começou lá pelos anos 20 do século passado. Não podemos esquecer também que simplesmente pelo fato de ser psicanálise, Freud e seus derivados, tenhamos de aplaudir e acatar. Convém lembrar que se trata de uma interpretação e, cá para nós, psicanalista, no mais das vezes, é um ser muito inteligente e esperto. Alguns são cultos, podem significar ética, honestidade; mas convém manter o sinal de alerta sempre ligado.
Voltemos ao romance.
É de Freud a teoria que diz que toda criança, num determinado período de seu desenvolvimento, cria uma fantasia em que ela não é filha de seus pais. Marthe Robert compara o romance com essa fantasia criada pela criança na tentativa de entender as razões para ela não ser quem gostaria de ser.
Num certo momento da infância, a criança começa a duvidar da capacidade de seus pais, tanto de protegê-la como de encetar fatos notáveis, heróicos, por exemplo, que sua imaginação consegue engendrar.
Ao perceber que as outras crianças também têm pais e, segundo seu juízo, alguns são melhores que os seus, essa criança inventa para si uma origem nobre, origem que não a acompanharia devido ao abandono pelos pais verdadeiros ou sua captura pelos pais que ora a subjugam. Enquanto isso, seus pais verdadeiros e desconhecidos se ocupam de atividades nobres a exigir-lhes heroísmos no enfrentamento de constantes perigos.
Caro leitor, me socorra, será que passei por isso e não lembro de nada? E olha que minha memória é considerada das melhores entre os familiares. Ah!, como é fácil me fazer de idiota!
Bem , não o torturarei com meu drama pessoal, ó psicanalizado leitor, e sigamos.
Diz Freud, para ser preciso, em O romance familiar dos neuróticos, que para ocorrer esse afastamento dos pais, se faz necessário “uma atividade imaginativa estranhamente acentuada [que] é uma das características essenciais dos neuróticos e também de todas as pessoas relativamente bem dotadas”.
Então é por isso que eu, e talvez você, não psicanalizado leitor, não guardemos registro dessa fase, nem neuróticos e muito menos bem dotados. A psicanálise devia ter como símbolo uma enguia ensaboada.
Desculpe, curioso leitor, retomemos o fio da meada. Essa fantasia se subdivide, para um lado a criança perdida, para o outro o romance do bastardo; e a autora, amparada em Dom Quixote e Robinson Crusoé, tenta fazer valer sua argumentação.
A criança perdida está representada por Dom Quixote, a imaginação levada ao extremo, a fantasia de um mundo imaginário tão bem fundamentada, capaz de obliterar o mundo real, o concreto, o temporal. Robinson Crusoé traz o romance do bastardo, em que o bastardo toma ciência de sua condição de inferioridade e tenta a todo custo alcançar outro status, ascender à classe superior, não importando se os parâmetros sejam aristocratas ou proprietários de terras.
Realista e inocente
Marthe Robert entende que o romance pode seguir essas duas grandes correntes, pois na sua concepção existem apenas duas formas de construir um romance: a do Bastardo, realista, enfrenta o mundo; e a da Criança Perdida que, inocente, evita o combate, opta pela fuga.
Como representantes da primeira corrente da fábula romanesca, temos a obra de Kafka, Novalis, Hoffmann e Melville; por sua vez, a segunda traria Tolstói, Balzac, Proust , Dickens e Faulkner.
Não psicanalizado leitor, essa é a teoria da ensaísta; concordar ou não é nosso dever. De minha parte, desconfio dessas afirmações, como a que diz existir apenas duas formas de construir um romance. Ainda bem que Erico Verissimo, Jorge Amado, Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Dionélyo Machado não sabiam disso. Não resta dúvida que um time de psicanalistas deve cerrar fileiras com dona Marthe Robert, prefiro continuar desconfiando.
Mas voltemos ao divã, ou melhor, à análise da teoria de Marthe, mais precisamente ao momento em que a criança acusa seus pais e acusando também os protege — “os pais são culpados de parecer o que não são”. Desse modo a criança perdida se transforma no bastardo decidido a recuperar o que perdeu.
A autora vai buscar nos contos de fadas as justificativas para sua argumentação. É lá que ela encontra a criança vítima, ora da bruxa, ora da pobreza que a degrada, ou então de uma fera ou da floresta ameaçadora. A natureza que assusta e oprime. Aqui ainda não se faz notar as diferenças sexuais, o que o leitor testemunha é um universo pré-edipiano repleto de mitos e heróis.
Feita essa sustentação, a autora parte para os dois grandes representantes do romance, Dom Quixote e Robinson Crusoé.
Importante, não psicanalizado leitor, prestar atenção no maniqueísmo que embala a teoria de Marthe Robert — o desvio de conduta e o castigo, o acerto e a recompensa, a transgressão e a punição. Não lhe parece pouco para tanta pompa, desconfiado leitor?
Então, acompanhe: Robinson deixa a casa do pai, sem a concordância deste, para conhecer o mundo. Ao desobedecer se expõe aos desígnios da natureza e logo é punido com o naufrágio e a solidão em uma ilha é seu prêmio. Ao deixar a ilha era um homem refeito com um mundo feito, casa-se e sai mundo afora a traficar de escravos a ópio. Estava redimido.
Com Dom Quixote, entra em cena a literatura propriamente dita. O autor chega ao primeiro plano quando o cavalheiro da triste figura decide reescrever durante sua jornada os livros que leu.
O que estava definido como pertencente à criança perdida pode ser visto em Dom Quixote, a solidão ao entender-se órfão aos cinqüenta anos e feito o náufrago Robinson se redescobre e se reconstrói junto com a reconstrução do mundo.
Aqui a minha desconfiança se apresenta, tanto em Robinson Crusoé como em Dom Quixote a negação da realidade é quase uma imposição a permitir aceitar o mundo e sua necessidade de interpretação.
Mas, como vimos anteriormente, trata-se de uma visão psicanalítica. E exatamente por isso me veio um trecho de Psicanálise, literatura e estéticas de subjetivação, de Giovanna Bartucci:
A maneira de se ler um texto literário pode ser diferente se feita por um psicanalista ou por um analista literário, este último levando em conta os mecanismos escriturais da ficção realizada num espaço especial, espaço que encena a linguagem e suas peripécias, suas estratégias que envolvem jogos de engano, tecelagem de vozes que se enredam na rede enunciativa.
O trabalho de Marthe Robert é no mínimo curioso, talvez muito mais interessante aos psicanalistas que aos leitores, leitores de literatura como os títulos que amparam o trabalho da ensaísta.
A mim, estimulou a releitura do trabalho de Giovanna Bartucci e agora, com a licença de vocês, pretendo concluir mais uma leitura de Os ratos e começar a reler O louco do Cati.
Conterrâneo Dionélyo. Psiquiatra.