Um olhar deslocado

O austríaco Stefan Zweig, que se suicidou no Brasil em 1942, foi um dos mais festejados autores da primeira metade do século 20
Ilustração: Ramon Muniz
01/01/2008

Não são poucos os escritores que, até os anos 50, tinham grande prestígio e que hoje estão esquecidos por críticos e leitores. Não por acaso aqueles cujas obras eram marcadas por uma perspectiva humanista, com valores herdados do iluminismo europeu e ainda carregadas de uma utopia que passou a ser desacreditada a partir das últimas décadas do século passado. Foram, quase sempre, autores populares, muitos deles de romances volumosos que davam conta de grandes ciclos históricos — no gênero roman-fleuve (romance-rio) —, a exemplo de Os Thibault (Roger Martin du Gard) e Jean-Christophe (Romain Rolland).

Em O mundo moderno, Malcolm Bradbury, citando o poeta e ensaísta inglês Stephen Spender, refere-se à distinção entre duas linhagens de escritores do início do século passado: a dos “contemporâneos”, formada por autores como H. G. Wells, Arnold Bennett e C. P. Snow, e a dos “modernos”, que tem entre seus principais expoentes nomes como os de T. S. Eliot, Pound, Proust, James Joyce, Kafka e Virginia Woolf. Os “contemporâneos”, diz Bradbury, são aqueles que, de modo geral, aceitam os processos do mundo moderno, encaram com simpatia as forças transformadoras que o caracterizam e adotam em sua obra uma atitude de realismo, racionalismo e positivismo. Os “modernos” são escritores que de modo geral têm uma visão diferente da época em que vivem — desconfiam de suas tendências históricas, questionam seu conceito de progresso, sentem-se deslocados de seu passado e possuem uma consciência acentuada da anarquia da vida e da cultura modernas.

Assim, segundo Spender e Bradbury, boa parte da literatura moderna deriva do intercâmbio entre essas duas linhas — por exemplo, as obras de Thomas Hardy, E. M. Forster e Thomas Mann. (No Brasil, acrescentaríamos os nomes de Josué Montello, Erico Verissimo e Otávio de Faria.) E, se Mann, autor também de romances de formação baseados na mesma tradição intelectual que alimentou Rolland e du Gard, mantém seu prestígio, nesses tempos pós-modernos, por sua ambigüidade, por expressar, de forma complexa, justamente a derrocada dos valores humanistas perante a barbárie e a irracionalidade de duas grandes guerras mundiais, outros permanecem numa zona de esquecimento — talvez por não se adequarem a um espírito de época que privilegia a ironia, o ceticismo e a fragmentação, além de um desencantamento que não poucas vezes resvala no cinismo.

Observa-se, no entanto, aqui e ali, o interesse de algumas editoras em relançar títulos de alguns desses autores “esquecidos”, possibilitando o seu conhecimento pelas novas gerações e uma possível reavaliação de seus textos. É o caso da editora Globo, que em 2002 publicou Os Thibault, numa caixa com 5 volumes, muito bem prefaciado por Marcelo Coelho, e O destino de um homem, de William Somerset Maugham, e da L&PM que vem reeditando romances e novelas de Erich Maria Remarque, John Steinbeck, Graham Greene e Stefan Zweig.

Portas de entrada
É deste último a novela 24 horas na vida de uma mulher e o livro Medo & outras histórias, que, bem e mal, podem servir de portas de entrada para o conhecimento da obra ficcional de Zweig, escritor austríaco que obteve em vida pleno reconhecimento público, como romancista, biógrafo, ensaísta, poeta, tradutor, crítico literário, historiador e dramaturgo. Mas que já era um dos últimos moicanos de uma era implodida pelos obuses de Joyce, Conrad & Cia. Não nos parece injusto dizer que ele já estava defasado, inclusive, em relação aos (eternamente atuais) gigantes do século 19: Proust, Tchekhov, Dostoiévski…

O reconhecimento e o prestígio de Zweig, no Brasil, país ao qual dedicou um dos seus ensaios históricos mais citados (e pouco lido), Brasil, país do futuro, pode ser constatado no livro Morte no paraíso — a tragédia de Stefan Zweig, de Alberto Dines (Nova Fronteira, 1981). Caso o leitor não queira enfrentar as 596 páginas da biografia, encontrará informações bastante úteis no ensaio Os leitores e as leituras da obra de Stefan Zweig no Brasil, de Adelaide Stooss-Herbertz, publicado na Fênix — Revista de História e Estudos Culturais, também disponível em edição on-line. De acordo com Adelaide, “Nos anos 1930, três autores dominavam o mercado de romances históricos e biografias: André Maurois, Emil Ludwig e Stefan Zweig. Os três eram editados no Brasil, porém Zweig alcançava o número maior de leitores”.

Esse reconhecimento ultrapassava, portanto, o interesse do público por suas novelas mais populares, tais como os dramas passionais 24 horas na vida de uma mulher, Medo e Amok, não por acaso três das quatro novelas lançadas pela L&PM. Suas qualidades como biógrafo de Dostoiévski, Maria Antonieta, Nietzsche, Rilke, Tolstói e Romain Rolland, entre outros; como tradutor para o alemão de Verlaine, Keats, Yeats, Verlaine e Baudelaire, e como dramaturgo e ensaísta, já lhe havia rendido desde cedo a admiração e a crítica, que é também uma forma de reconhecimento, de grandes nomes da intelectualidade em seu tempo. Inclusive do seu amigo e mentor Sigmund Freud, em cuja obra baseou-se para a análise psicológica empreendida em muitos dos seus personagens (às vezes de forma por demais freudiana).

Ilustração: Ramon Muniz

Revisão
A edição das novelas de Zweig, em formato pocket book, possibilita uma revisão muito parcial (mas ainda assim válida) de alguns conceitos e pré-conceitos em relação ao autor vienense, que viveu seus últimos anos no Brasil. País que escolheu também para morrer, suicidando-se, com sua segunda mulher, Charlotte Elisabeth Altmann (Lote), em Petrópolis, em 1942. A sua prosa, ligada à tradição burguesa do século 19, que já vinha sendo corroída pelos autores modernos mais radicais, pode soar um pouco “démodé” (como a própria palavra démodé), sobretudo nas novelas Medo e Amok, as mais fracas destas edições da L&PM. Deve-se ressaltar, no entanto, o fato de terem sido escritas no início da trajetória literária do autor, nos anos 20; distantes ainda da consistência formal e da densidade dos personagens que adquiriu na maturidade e que seriam reveladas em Xadrez, escrita em 1941, no Brasil, pouco antes de sua morte.

A diferença é evidente em cada linha das referidas novelas: em Medo e Amok, o autor exagera nas tintas com as quais pinta os conflitos psicológicos de suas personagens femininas, caídas em adultério, com uma carga dramática excessiva, fruto de uma mente “liberal” que, no entanto, trai uma formação puritana. Na primeira, analisa os sentimentos da mulher de um conceituado advogado, em Viena, que, atraída pela aventura extraconjugal com um pianista, vê-se chantageada por uma mulher vulgar, ex-amante daquele. (A revelação ao final surpreenderia não fosse o convencionalismo de toda a história.) Na segunda, um médico, embarcado em um navio, de Calcutá para Nápoles, conta ao narrador como foi dominado por uma espécie de loucura — amok no idioma malaio — ao conhecer, num remoto povoado indiano, a mulher de um oficial inglês que, também metida numa aventura extraconjugal, propõe-lhe fazer um aborto clandestino.

Pequena jóia
Tais conflitos morais são bem mais resolvidos na pequena jóia que é 24 horas na vida de uma mulher, cujo drama central é contado por uma lady escocesa, num hotel em Monte Carlo, para o narrador da história. Ela confessa como, muitos anos atrás, após ter-se tornado viúva, foi arrebatada por uma paixão por um jovem irresponsável que, depois de perder todo dinheiro no jogo, tencionava suicidar-se. Neste caso, especificamente, o resumo da história não dá conta de suas boas qualidades — embora lhe falte, como nas demais, aquela piscadela (tão perfeita nos contos de Tchekhov) de quem vê o que há de demasiado humano nesses arrebatamentos passionais.

A medida certa, devidamente isenta de excessos, está em Xadrez, uma pequena obra-prima. Nessa novela fascinante, Zweig retrata o duelo entre o jovem campeão mundial de xadrez Mirko Czentovic e o advogado austríaco identificado apenas como Dr. B. O primeiro, um camponês ignorante da Hungria, que tem como única qualidade um extraordinário talento para o mais complexo dos jogos; o segundo, um ex-prisioneiro dos nazistas que foi submetido a um dos mais terríveis métodos de tortura: o de ser colocado, por meses a fio, num quarto vazio, sem sequer um objeto com o qual pudesse interagir.

Para escapar da loucura, Dr. B. consegue, num golpe de sorte, quando foi tirado da sala para um interrogatório, roubar um livro. Trata-se de um manual de xadrez que memoriza e cujas jogadas passa a executar, na imaginação, em sucessivas partidas jogadas contra ele próprio. Exercícios que lhe possibilitam, após ser libertado, vencer o campeão mundial, numa viagem de navio de Nova York a Buenos Aires. A história de Czentovic, a descrição do suplício vivido pelo advogado, a construção dos personagens e a narração das emocionantes partidas entre os dois insólitos adversários tornam a leitura absorvente e recompensadora para quem aprecia a descoberta de objetos inestimáveis, como um livro numa sala deserta.

Se a L&PM adotasse um critério mais exigente, faria uma edição caprichada e exclusiva de Xadrez, tal como fez com Bartleby, o escriturário, de Herman Melville, e Uma temporada no inferno, de Rimbaud. Pois, ao contrário de Amok e Medo, ele não merece o esquecimento.

24 horas na vida de uma mulher
Stefan Zweig
Trad.: Lya Luft
L&PM
112 págs.
Medo & outras histórias
Stefan Zweig
Trad.: Lya Luft e Pedro Süssekind
L&PM
224 págs.
Stefan Zweig
Nasceu em Viena, em 1881, numa família de banqueiros italianos de ascendência judia. Formou-se em filosofia e letras e publicou seus primeiros livros na década de 20. Tornou-se famoso internacionalmente como autor de contos e novelas curtas, e de biografias de artistas e figuras históricas. Perseguido pelos nazistas, migrou em 1934 para a Inglaterra, mudando-se em seguida para os Estados Unidos e, em 1941, para o Brasil, país ao qual dedicou as reflexões contidas no livro Brasil, país do futuro. Em 1942, suicidou-se, juntamente com sua segunda mulher, por não suportar a destruição provocada pelo nazismo na Alemanha e em seu país natal.
Carlos Ribeiro

É escritor e jornalista, autor de Já vai Longe o Tempo das Baleias e O Chamado da Noite, entre outros.

Rascunho