O louco de Buenos Aires

O fanático torcedor do Boca Juniors que uma vez por mês veste a camisa do maior adversário, o River Plate
lustração: Marco Jacobsen
01/01/2008

Visitar estádio de futebol é uma boa forma de se conhecer uma cidade. Uma visita ao Maracanã ou ao estádio da Vila Belmiro ajuda a vislumbrar as almas de cidades como o Rio de Janeiro e Santos, por exemplo.

O melhor é ir em dia de jogo. Pode ser um clássico, com casa lotada, mas também um jogo de gatos pingados muitas vezes vale a pena.

No primeiro você pode participar da emoção da partida, sentir a vibração das arquibancadas (em alguns estádios, a arquibancada vibra literalmente), observar um pouco do comportamento passional do torcedor.

Mas assistir a um jogo no estádio quase vazio também pode ser uma rica experiência, se pensarmos que nesse caso você tem condições de sentir mais de perto a solidão acompanhada do torcedor sentado com seu radinho no ouvido, ou se ater a detalhes que se diluem em dias de grande público.

E até em dias em que não há jogo você pode aproveitar a visita, vendo o estádio sem torcedores, o gramado sem ninguém a pisá-lo, nenhuma bola rolando, e naquele silêncio imaginar o que já se passou ali — as glórias, os lances grotescos, as angústias, o que teria acontecido no grande palco, agora em repouso.

Estive recentemente em Buenos Aires para um encontro de escritores, e quando um poeta argentino me perguntou o que mais gostaria de conhecer na cidade não falei dos cafés, dos restaurantes, das inúmeras livrarias. Respondi convicto: La Bombonera.

Não poderia sair de Buenos Aires sem conhecer o estádio do Boca Juniors, o time mais popular da Argentina, seguido pelo River Plate. Já sabia, de ter lido em algum lugar, que o nome do estádio se deve à sua forma de caixa, com as arquibancadas formando quatro longas paredes, ao contrário da maioria dos estádios, em que elas se espraiam na diagonal. É como um caixa de bombons. Precisava ver isso de perto.

Do hotel até o estádio, no bairro La Boca, levei noventa minutos de caminhada. Exatamente o tempo de uma partida de futebol. Aquilo podia não significar nada, mas vai você querer entender como funciona de fato o mundo dos signos? Então anotei sucintamente, no meu diário de bordo imaginário: valeu.

Antes de entrar no estádio, caminhei um pouco ao seu redor. Dei uma volta completa, vendo a parte externa dos muros, pintados de amarelo e azul, e pensei que estádios pequenos como aquele são os que têm mais histórias para contar, justamente porque construídos antes da era dos estádios gigantes e moderníssimos.

Não era dia de jogo e por isso podia caminhar com calma pelos arredores. Quando vi estava me afastando de La Bombonera e me entranhando pelas ruas pequenas e tortuosas do velho bairro de operários, situado — daí seu nome — na boca do rio Riachuelo, e que até o final do século 19 era a entrada obrigatória da cidade.

Desde logo ficou claro o que já era de se esperar: bairro, estádio e time formam uma única coisa, numa comunhão que se mostra ao visitante nas lojas, nas cantinas, nas crianças trajando mil variações da camisa oficial do Boca.

Consta que, em 1905, alguns imigrantes italianos resolveram criar um time de futebol. Deram a ele o nome do bairro e acrescentaram um “Juniors” para conferir à equipe um ar britânico, numa tentativa de amenizar a condição de lugar pobre e com traços latinos numa Buenos Aires de feições européias. Não conseguiram. O bairro continua pobre, meio atípico, e essa autenticidade talvez seja sua maior riqueza.

Caminhei para o estádio. Logo na entrada, o sofisticado museu nos mostra um cartão de visita: somos de primeiro mundo. O cuidado com o registro da história do time se junta a uma grande maquete do bairro, simulando o traçado das ruas, a arquitetura, o interior das casas. Telões espalhados pelo caminho mostram uma infinidade de gols, comemorações, jogadas antológicas, que se mesclam a momentos importantes da história política do país, retirados de telejornais e documentários. Tudo no museu aponta para a profunda relação entre futebol, bairro, cidade e país.

Ao entrar no estádio, porém, o cartão de visitas é outro: precisamos de reforma. Os corredores, as arquibancadas, o próprio campo (de gramado sofrível), mostram o descaso, lembrando antigos e decadentes estádios de futebol no Brasil. Isso não impede que, sentados ali, possamos imaginar a vertigem que deve ser assistir a um jogo naquele lugar apertado e quase dentro do gramado, a poucos metros dos jogadores.

Saí pensando que aquele contraste entre o campo e o museu definia bem a história do Boca… Juniors. De um lado a vontade de manter as raízes do bairro, de outro o desejo de fazer parte da Buenos Aires europeizada.

Contradição que remonta não apenas ao nome do time mas à própria escolha das cores: amarelo e azul. Antes delas, o time usava um uniforme branco e preto, depois modificado para as cores da bandeira de um navio estrangeiro que atracara no porto. Um navio sueco.

 

El loco

Andei um pouco mais pelas ruas e parei numa cantina. Enquanto tomava cerveja, vi na praça em frente uma cena digna de filme: um homem de cabelos desgrenhados, olhar perdido no tempo, calças jeans surradas e tênis, usava, sem o menor constrangimento, uma camisa vermelha e branca atravessada por uma faixa negra. Era a camisa do River.

O garçom percebeu minha surpresa, aproximou-se da minha mesa e disse, apontando para o sujeito na praça: el Loco. Olhei para o garçom, pedindo com os olhos uma continuação. E ele, meio impaciente, como se eu fosse obrigado a saber de toda a história do bairro, explicou que se tratava de um tipo bastante conhecido nas redondezas. Era torcedor fanático do Boca, mas uma vez por mês, sem aviso prévio (não havia critério aparente para a escolha do dia, podia ser qualquer um), o sujeito vestia uma camisa do arqui-rival, do maior inimigo, e se postava feito estátua naquela praça durante horas, naquele mesmo banco, no mais absoluto silêncio.

E não ouse se aproximar dele, o garçom foi logo me advertindo, num argentinês legítimo que não ouso reproduzir aqui. Era um doido manso mas se chegassem perto dele nessa hora, tornava-se violento. Está vendo as pedras? Olhei para o banco e vi um monte de pedras de variados tamanhos, formando um pequeno monte ao lado do homem. Quer levar uma pedrada?, continuou perguntando o garçom, me parecendo talvez mais louco que el Loco.

A advertência apenas acentuou minha vontade de me aproximar do homem. Não duvidei, porém, de que uma daquelas pedras pudesse ter como destino final minha pobre cabeça de turista e preferi ficar onde estava, até pensar num plano alternativo: não poderia falar com ele, mas poderia vê-lo mais de perto, quem sabe.

Me mudei para uma mesa na calçada, de onde podia não apenas vê-lo melhor como também ser visto por ele, se assim o desejasse. Olhava vez ou outra para a praça, disfarçadamente, até que, ganhando um pouco mais de confiança, fixei meu olhar no seu rosto.

Ele deve ter percebido e virou-se na minha direção. Para meu espanto, não havia agressividade alguma naquele olhar. Ficamos assim por um momento, um olhando para o outro, e pode ser que tenha sido efeito da longa caminhada, das coisas todas que eu havia visto no bairro, no estádio, no museu, ou efeito da cerveja, que me deixava mais sentimental, mas acreditei ver no olhar do homem algo quase infantil.

Era uma criança que estava ali? Uma criança solitária, tentando chamar a atenção dos outros, buscando algum afeto? El Loco era, na verdade, el Niño? Ou, sendo criança, estava apenas brincando de ser outro, como um garoto brinca de ser médico, artista, jogador de futebol?

Fiquei nessas viagens comigo mesmo até que o olhar mudou. El Loco voltou a ser o que era, as sobrancelhas se arquearam, o olhar adquiriu a fama que acompanhava a figura, a de doido varrido. Apanhou uma pedra no monte ao lado e ficou com ela suspensa no ar, enquanto sustentava para mim seu olhar ameaçador.

Desviei meus olhos. Pedi a conta e saí. Caminhei por outra rua com um propósito definido: continuar observando o homem, agora sem que ele me observasse. Dei a volta e encontrei meu esconderijo. Encostado a um muro, podia vê-lo de costas, bem de perto.

Foi então que pude ler o que estava escrito na parte de trás da camisa, no alto. No lugar em que normalmente vem o nome do jogador, não havia menção a qualquer valoroso atleta do River. Vinha apenas: EL LOCO. E logo abaixo: (NO ME PREGUNTES POR QUÉ).

O que exatamente ele não queria que lhe perguntassem? Não me pergunte por que o quê? Por que me chamam de el Loco? Ou, sendo eu de fato louco, por que me tornei um? Era isso? Não me perguntem sobre a origem da minha loucura? Ou a frase entre parênteses se referia ao ato em si de se vestir com a camisa do rival e ficar sentado no meio na praça? Quer dizer, não me perguntem por que faço tamanha maluquice?

Jamais pude saber, claro. E isso não era importante. Valia mesmo era o personagem e a biografia apenas sugerida. O homem não sabia que em breve viajaria para um país vizinho, na bagagem de um desconhecido, trajando apenas sua nobre loucura.

Flávio Carneiro

É escritor, roteirista e professor de literatura. Autor de A confissão, entre outrosNasceu em Goiânia (GO) e mora em Teresópolis (RJ). Publicou 18 livros — romances, contos, crônicas, infantojuvenis, ensaios — e escreveu dois roteiros para cinema. Foi premiado com o Barco a Vapor e com o selo de Altamente Recomendável para o Jovem, da FNLIJ. Com Histórias ao redor (Cousa), ganhou o Jabuti 2021, na categoria crônicas. Tem contos e romances publicados em outros países, como Itália, Portugal, Colômbia, México, França, EUA, Alemanha. O conto Viva a Revolução! integra seu próximo livro, Paisagem com segredo & outras pequenas viagens, a ser lançado em breve pela Maralto..

Rascunho