Ao dedicar toda a sua vida às letras, como leitor, jornalista, professor, tradutor e escritor, Modesto Carone defende que “ninguém, em tempo algum, vive sem ficção”. Talvez tenha razão. Sua obra — amplamente vinculada ao estranho kafkiano e distante do realismo/naturalismo tão presente na literatura contemporânea brasileira — tem, no entanto, os olhos bem abertos à realidade. Esta, de alguma maneira, o deixa em permanente estado de alerta: “Não há no mundo nenhum refúgio seguro contra os ataques, desapareceram todos os ‘paraísos artificiais’, o pesadelo é cotidiano, a ‘felicidade’ se evaporou”, afirma ele nesta entrevista concedida por e-mail. Carone também fala de sua produção como contista, de sua paixão por Kafka, da morte [com quem, talvez, mantenha o “último noivado”] e da importância das traduções.
• O narrador do conto Café Kubista, do livro Exploradores del abismo (Anagrama, 2007), do espanhol Enrique Vila-Matas, diz que “um livro nasce de uma insatisfação, nasce de um vazio, cujos perímetros vão se revelando no transcurso e no final do trabalho. Seguramente escrevê-lo é preencher este vazio”. Entre tantas tentativas de explicação para a construção de uma obra literária, esta me parece bastante interessante. O senhor concorda com ela? Como nascem os seus livros?
A explicação de Vila-Matas, de que a função de escrever um livro é “preencher um vazio”, é mais psicológica do que qualquer outra coisa — e nesse plano não há como discordar dela. Mas será que isso decide a questão? Na minha opinião, esse vazio nunca será preenchido, com livro ou sem ele. (Quantos livros são necessários para preenchê-lo?). O vazio é sem dúvida uma metáfora. É possível perguntar metáfora do quê. Evidentemente as respostas são inúmeras e nenhuma delas é simples. Há tantos exemplos que só fico com um (de um homem sério): Sartre disse que publicar um livro equivale a uma ereção… Pode ser um fato, mas não uma resposta. Trata-se apenas de uma tentativa de descrever o que ocorre, de um ponto de vista individual qualificado, mas que talvez não tenha condições de chegar a uma generalização. Pondo de lado a necessidade sócio-histórica do livro e da literatura — ninguém, em tempo algum, nem Robinson nem Ulisses, ninguém vive sem ficção. Basta lembrar, hoje, das novelas de TV, que substituíram, com imensa desvantagem, os folhetins de Dumas pai, Victor Hugo, Balzac, etc., para infelicidade geral da população carente de narrativas. Para uso pessoal, nesse aspecto, a idéia mais consistente, coerente e pesquisada (em nível clínico e teórico) é a do “objeto nostálgico” descrito por Freud. O fundador da psicanálise afirma que ninguém deixa de conviver com ele, sobretudo inconscientemente, associando-o à expulsão do homem do Paraíso (que é também uma metáfora) para atirá-lo ao mundo hostil (tema de uma novela de Beckett). Considero que o “vazio” — que coisa alguma anula, mesmo a árdua tarefa de compor um livro, muitas vezes de resultado incerto — está entremeado ao que Graham Greene, em algum lugar, descreve como “a dor da existência”. Outra metáfora; mas faz sentido lembrar que ela é um elemento constitutivo da linguagem. Vamos derrapando de uma para outra até sem saber, porque elas são verdadeiras. Kafka dizia que o que o fazia desesperar da literatura eram as metáforas, e sabia que não era possível evitá-las. Assim com o “vazio”: é uma metáfora, mas é real. No mundo em que vivemos, então, onde a aparência é contrabandeada pela realidade, a dificuldade não poderia ser maior. Prefiro ficar com o “objeto nostálgico”, que certamente não é uma ilusão. A literatura também não o alcança, embora ela a promova. Meus livros nascem de uma expectativa — a de construir uma forma significativa que tenha relação comigo mesmo, com a minha experiência de vida e com o mundo em que vivo. Tudo isso parece altissonante, mas não reconheço aí nenhuma tendência à arrogância ou coisa que o valha, pois só sei que a intenção de escrever a partir da experiência vivida — de um fato presenciado, de um cenário que me impressionou, de uma lembrança, de um devaneio qualquer, diz respeito a algo capaz de ser figurado em ficção. Quanto ao valor do resultado, empenho meu senso crítico o mais que posso e em geral demoro para decidir se o que escrevi vale ou não a pena ser publicado. Às vezes, tenho a impressão de que aprendi a escrever, cortando. Cortar é bater de frente no narcisismo. Na vida e na literatura não há nada menos elogiável do que o narcisismo, sobretudo do que é “bobo” — e que narcisismo não é pateticamente bobo? Minha prosa é construída de alto a baixo, embora sopre pelas frestas uma brisa de poesia que me foge ao controle. Fico satisfeito quando isso ocorre e dá certo, porque não é por se tratar de um escrito em prosa que a poesia deve deixar de se manifestar. Adorno dizia que a poesia sonha um mundo em que as coisas fossem diferentes. Vou voltar a esse assunto mais à frente.
• O vazio a que se refere Vila-Matas nos remete diretamente a Kafka quando este diz: “Fora daqui: é este meu alvo”, utilizada pelo senhor com uma das epígrafes de Por trás dos vidros. O vazio, o fantástico, o estranho kafkianos foram determinantes na sua formação como escritor?
A expressão “Fora daqui: é este o meu alvo” (Weg von hier: das ist mein Ziel) é uma frase de um conto monolítico de algumas linhas de Kafka, que se encontra nas Narrativas do espólio. Usei-a como epígrafe de uma das seções do livro como “acorde” para o que há de indesejável e aterrador no Brasil e em outras partes do mundo. O primeiro texto desta série, como o leitor pode ver, é Dias melhores, em que o protagonista fica o tempo todo à mercê de um atirador anônimo e ativo, que o põe na defensiva como alguém que vai acabar perdendo a parada. Se o castelo de um homem é o seu lar, então aqui ele deixa de ser, como acontece na novela A construção de Kafka. Ou seja: não há no mundo nenhum refúgio seguro contra os ataques, desapareceram todos os “paraísos artificiais”, o pesadelo é cotidiano, a “felicidade” se evaporou (por isso está entre aspas). Mas o tom da normalidade da escrita, regida pela gramática e pela contensão, é o contraste que torna esse “absurdo” palpável e verossímil, além de lhe acrescentar o horror através justamente do understatement. Sinal dos tempos? Quem vive em São Paulo (ou no Rio, em todas as grandes capitais do país e do globo) sabe que é. Sem fazer trocadilho gratuito, usando a frase de alguém (Antonio Carlos Jobim?), as coisas melhoraram sensivelmente para pior. Nesse sentido, não espanta que o “fantástico” e o “estranho” kafkiano foram assumidos na minha carreira de escritor. Poderia ser de outra maneira? Tenho aversão ao açucarado e ameno, porque a literatura agride de volta o mundo que a atira na “marginalidade”. Aliás, não há centro sem margem, porque ambos fazem parte do mesmo sistema, são complementares, embora a margem seja sempre a parte prejudicada.
• Por que o senhor defende que a obra de Kafka perde quando vista sob o prisma fantástico e ganha quando encarada em sua dimensão realista?
Quando visitava uma exposição de pintura francesa numa galeria de Praga, Kafka ficou diante de várias obras de Picasso, naturezas-mortas cubistas e alguns quadros pós-cubistas. Estava acompanhado na ocasião pelo jovem Gustav Janouch, escritor de quem foi mentor na adolescência e que deixou um dos mais importantes depoimentos sobre o poeta tcheco — Conversações com Kafka (existe em português). Janouch comentou que o pintor espanhol distorcia deliberadamente os seres e as coisas. Kafka respondeu que Picasso não pensava desse modo. “Ele apenas registra as deformidades que ainda não penetraram em nossa consciência.” Com pontaria de mestre, acrescentou que a arte é um espelho que adianta, como um relógio, sugerindo que Picasso fixava algo que um dia se tornaria lugar-comum da percepção — “não as nossas formas, mas as nossas deformidades”. Para Walter Benjamin, numa famosa análise de 1934, “as deformações de Kafka são precisas”. Isso não desmente, antes confirma, o senso estético avançado do autor de Praga que — para dizer o mínimo — tinha uma noção exata do que estava fazendo. O “fantástico”, para ele, é tão natural e visível quanto, para nós, a mentira da aparência é “real” e “verdadeira”. Imagino que é disso que trata o seu realismo, que no fundo nada tem de fantástico, porque esta é a intrusão de um outro mundo, sem leis, no nosso mundo regido pela causalidade.
• O que mais o atrai na obra de Kafka?
Vou ser breve porque quero me restringir ao essencial: o que mais me atrai em Kafka é a originalidade dos temas (que deriva de uma versão original do mundo) e a precisão da linguagem, que segundo ele deve agir como um estilete, para fazer doer; como um machado capaz de quebrar o mar congelado que existe em cada um de nós.
• Os personagens de Por trás dos vidros estão quase sempre em situações-limite, a um passo do desespero, do abismo. A opção pelo nonsense, pelo estranho, é mais do que evidente. No entanto, esta opção busca escancarar uma realidade opressora, sem cair em um realismo cru, muito presente na nova geração de autores brasileiros. Qual a sua opinião sobre a literatura brasileira atual, que, muitas vezes, tenta um retrato da realidade?
As situações-limite vividas pelos personagens de Por trás dos vidros são imaginárias, mas possíveis. É no limite da experiência e nos confins de uma linguagem às vezes gelada que fixo a abertura para o “outro mundo”, de onde jorra a alienação contemporânea, aqui depurada pela forma estética. Esse “outro mundo” é a contradição daquele onde ele nasceu por necessidade artística (e humana). Retomando Adorno: “A poesia sonha um mundo onde as coisas seriam diferentes”. A literatura brasileira atual, até onde a conheço bem, é naturalista e atende à urgência histórica do documento, que faz parte da tradição estética do cronista, segundo Antonio Candido.
• António Lobo Antunes diz que não se interessa em contar histórias com começo, meio e fim. No entanto, deseja “pôr a vida inteira entre as capas de um livro”. O senhor também tem esta ambição?
“Pôr a vida inteira entre as capas de um livro” é uma ambição antiga, que passa por Mallarmé e Borges. Talvez isso seja possível, mas não tenho certeza.
• Praticamente toda a sua produção como contista foi desenvolvida durante a ditadura militar. De que maneira a falta de liberdade daquele período interferiu em seus contos?
A ditadura militar me obrigou a policiar a linguagem e foi nesse momento (comecei a escrever em 74 ou 75) que descobri no plano pessoal a eficácia e a contundência estética da metáfora.
• Qual é o seu método de trabalho, de criação? Há uma rotina?
Minha rotina de trabalho consiste em esperar que “o fruto amadureça”, como disse Valéry. Em termos práticos, sempre estou escrevendo alguma coisa à tarde, à noite e de madrugada, nunca pela manhã.
• Caso o senhor fosse convidado a orientar uma oficina de criação literária, que conselhos daria aos aspirantes a escritores em sua aula inaugural? Qual a sua opinião sobre o crescente número de oficinas de criação literária no Brasil?
Meu conselho para quem pretende ser escritor seria (como disse Faulkner aqui em São Paulo): “Aponte bem os seus lápis e tenha uma boa reserva de papel em branco. O resto é trabalho, trabalho, trabalho”. Qualquer escritor, iniciante ou não, deve manter afiado o seu instrumento: tente descrever uma galinha atravessando o pátio (não me lembro de quem disse isso). Quanto mais oficinas de criação literária no Brasil, tanto melhor.
• No conto Café das flores, lê-se: “Como as imagens poéticas não mudam o mundo, dei a partida e fui para casa aliviado por não pensar em mais nada”. Há nesta afirmação do narrador certo pessimismo em relação à importância da literatura. Neste caso, repito aqui a pergunta que abre os encontros do Paiol Literário, em Curitiba: qual a importância da literatura na vida cotidiana das pessoas?
A passagem citada de Café das flores (“como as imagens poéticas não mudam o mundo…”) está vinculada às anteriores, que usam imagens poéticas. É uma ironia acre, que combina com a “catástrofe” do conto. Se existe aqui pessimismo, é porque o conto é sarcástico e pessimista e seu ímpeto é não deixar nada em pé. Quanto à importância da literatura na vida cotidiana, já respondi alguma coisa atrás, quando falei da necessidade da narrativa desde que o mundo é mundo. Ninguém vive sem fabular alguma coisa. Os sonhos são uma prova disso.
• O baixo índice de leitura no Brasil é evidente. Os motivos são mais do que conhecidos: desigualdades sociais, frágil sistema público de ensino, etc. Mesmo num cenário longe de ser o ideal, que caminhos o senhor indica para a formação de um bom leitor?
O baixo índice de leitura no Brasil é evidente e é uma lástima. Os motivos são os que você citou, sobretudo as desigualdades sociais. Talvez a formação de um bom leitor dependa da atenuação séria dessas diferenças (senão a sua abolição) e do maior preparo dos professores, que deveriam ganhar no mínimo o triplo do que ganham para terem tempo e gosto de estudar.
• O escritor Sérgio Rodrigues defende que a internet será a salvação da literatura. O senhor concorda? Acompanha a produção literária na internet?
Definitivamente, se a literatura tiver de ser salva, não será pela internet. Não é a tecnologia que salva um patrimônio cultural como as letras e as artes, mas elas próprias é que se salvam, através da sua necessidade histórica e da sua qualificação estética. Não acompanho a produção literária pela internet mas sim pelos livros.
• Como ocorreu o seu contato com a literatura, com os livros? Qual é a trajetória do leitor Modesto Carone?
Minha trajetória, para encurtar a história, foi de Monteiro Lobato a Samuel Beckett. Nesse ínterim, passei pelas universidades de Viena, USP, Unicamp e Praga, como professor e conferencista visitante.
• Além de Kafka, que autores compõem o seu cânone pessoal? Quais têm lugar de destaque em sua biblioteca? Por quê?
Simplifico: meu “cânone” pessoal abrange Machado de Assis, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Montaigne, Auerbach, Antonio Candido, Kleist, Flaubert, Kafka, Beckett e muitos, muitos outros que seria cansativo enumerar. Acrescente Adorno, Benjamin e os frankfurtianos, além de Sérgio Buarque, Caio Prado Júnior e os nossos historiadores e intérpretes do Brasil… Falta aqui tanta gente que esta listagem não vale grande coisa para isso que você chamou um “cânone”. Mas obedeci ao imperativo de responder à sua pergunta.
• O senhor é responsável pela primeira tradução brasileira de Kafka diretamente do alemão. Quais as dificuldades impostas pela tradução específica da obra kafkiana e de traduções em geral? O senhor concorda que traduzir é trair?
Traduzir pode ser de fato trair, mas não necessariamente. A tradução precisa ser praticada, sobretudo entre nós, onde o ensino de línguas é precário. Ela é a condição de existência de uma literatura mundial (ou Welt Literature), como Goethe a imaginou. A principal dificuldade para traduzir Kafka, para mim, foi encontrar as equivalências possíveis entre a língua de partida e a língua de chegada. O ideal sempre foi chegar a uma espécie de terceira língua, onde a segunda revela e potencializa as possibilidades da primeira e vice-versa.
• Hoje, há uma clara perda de espaço da literatura na grande imprensa brasileira. Os cadernos literários perderam importância dentro dos jornais. Veículos dedicados exclusivamente aos livros são raridade. Isso, obviamente, fragiliza ainda mais a crítica literária. Corre-se o risco de a crítica literária na imprensa desaparecer?
A perda de espaços da literatura não foi só na imprensa, mas no âmbito geral de uma sociedade como a nossa, ameaçada de um lado pelas mazelas sociais e de outro pela cultura de massas (que não é a popular em sentido estrito).
• A morte está muito presente nos contos de Por trás dos vidros. Como o senhor a encara em seu dia-a-dia? O senhor a desafia ou prefere tê-la como aliada?
A presença da morte em Por trás dos vidros talvez tenha uma explicação. Em primeiro lugar, ela é o estágio terminal da violência urbana, em segundo porque de acordo com a psicanálise, que entende do assunto, o homem tem três noivas: a mãe, a esposa e a morte. É possível que eu esteja noivando pela última vez, mas isso não significa que esse noivado seja breve. Montaigne dizia que filosofar é aprender a morrer.
• Que defeitos o senhor considera abomináveis em um livro e quais qualidades são evidentes nas grandes obras?
O defeito capital de um livro (capital tem aqui duplo sentido) é ser comercial e mimetizar o percurso da mercadoria através do best-seller. A qualidade central dele deve ser a busca de uma “escrita da permanência”. É esta que marca todas as obras que têm uma posteridade assegurada.