Sempre um menino

Entrevista com Alberto da Costa e Silva
01/03/2008

Ao lado do pai (o poeta Da Costa e Silva), Alberto da Costa e Silva passou sua infância entre livros e um mundo rural. O amor à literatura, a saudade da meninice e a figura paterna são marcas indeléveis em sua poesia. Poeta rigoroso, considera “coisa rara” um poema de verdade. Nesta entrevista concedida por e-mail, ele fala de sua obra, infância, vida diplomática, defende a Academia Brasileira de Letras, da qual foi presidente, e mostra-se um apaixonado pelos clássicos.

• A infância está presente em boa parte de sua produção poética. No poema, Hoje: gaiola sem paisagem, há um verso emblemático: “Nada quis ser, senão menino”. Por que a infância está no centro da sua poesia?
Porque tive uma infância ao mesmo tempo triste e feérica. Inesquecível. Se escrevo versos, não é para tentar reavê-la, mas, sim, revê-la. E retratá-la em sua luminosidade mágica.

• Juntamente com a infância, o relacionamento com o seu pai [o poeta Da Costa e Silva] e a saudade também se fundem em versos de grande força. Em sua formação como poeta, qual é a importância de ter convivido com a permanente companhia da poesia em casa?
Poderia aplicar-se a mim aquele verso de Baudelaire: “Mon berceau s’adossait à la bibliothèque”. Cresci entre livros, e a ouvir meu pai, que só conheci enfermo, a ler-me poetas como Verlaine, Walt Whitman e Rubén Darío. Eu não entendia nem francês, nem inglês, nem espanhol, mas ficava fascinado com a música das palavras e o encadeamento dos versos. Também não estavam despidos de mistério os sonetos, que me lia, de Cruz e Souza e os poemas de Antônio Nobre e Cesário Verde, que me acostumei a amar como ele amava. Mais importante ainda, na minha formação, foram os passeios com meu pai e seu enfermeiro pelos arrabaldes de Fortaleza, com suas granjas e vacarias. Meu pai me ia dizendo os nomes das plantas e dos passarinhos. E dos diferentes tipos de bois. Na volta, ele ficava a desenhar para mim na mesa da copa. Meu pai desenhava muito bem e era capaz de passar horas a pôr no papel todas as imagens que eu queria. Vivi, nessa época, uma espécie de duríssima orfandade, porque sabia meu pai doente e sofria com seus silêncios e ausências do mundo, mas vivi também a experiência única de ter nele o meu melhor amigo e companheiro de meninice, um companheiro atento, carinhoso e que, aos meus olhos, conhecia todos os segredos do mundo.

• Na apresentação desta antologia, André Seffrin destaca que o senhor “elaborou sua obra com paciência obsessiva e rigor cartesiano”. Sobre a sua produção juvenil, o senhor disse que “fui reparando que o que cada um de nós tem de importante para dizer é muito pouco”. Levando-se em consideração estas duas afirmações, como se dá a sua produção poética? Como nascem seus poemas?
Numa luta para não os escrever. Só os ponho no papel quando não consigo me livrar deles. Ao me surpreender murmurando um daqueles primeiros versos que Valéry dizia serem ditados pela divindade para que, a partir dele, construíssemos um poema, faço o possível e o impossível para esquecê-lo. Geralmente, tenho êxito. Mas, às vezes, ele vai trazendo, um após outro, novos versos e me vejo a compor um poema, recitando-o para dentro. Quando me sento para escrevê-lo, antigamente a máquina e hoje no computador, ele está inteiro na minha mente. Quase inteiro. Ou pela metade. É comum que, no processo, voltem alguns daqueles primeiros versos que quis esquecer e passam a correr pelo poema como, num tear, diferentes tramas pelo urdume. Daí que sejam longos muitos dos poucos poemas que publiquei — pouco mais de uma centena em toda a minha vida.

• Em sua poesia há um resgate do mundo rural, com destaque para os animais que povoam este ambiente. Nota-se aí um claro choque com a urbanidade tão presente em grande parte da poesia contemporânea brasileira. Por que durante a sua trajetória poética esta opção por um mundo que pode soar anacrônico em meio à balbúrdia urbana que nos envolve?
É o mundo da minha infância. O mundo da infância de meu pai. O mundo da minha infância com meu pai. Não sei se sou poeta — são tão poucos os poetas —, mas não me importa ser anacrônico, se isto significa guardar para sempre, entre as experiências mais profundas, as manhãs nos currais, a sentir, como disse num soneto, o odor de esterco e leite.

• A carreira diplomática levou-o a morar fora do Brasil durante muito tempo, em lugares bastante distintos como países da América Latina, África e Europa. Qual a marca que este distanciamento deixou em sua poesia e qual a sua importância?
O sentimento do exílio e da perda dos dias. A persistência da paisagem do país natal a vestir a do país do desterro. Foi para mim sempre duro viver no exterior, mas possivelmente eu não escreveria o que escrevi depois de O tecelão, se não tivesse tido as repetidas e sempre diferentes experiências de degredo e — ainda que pareça contraditório – e de abertura à riqueza do mundo.

• Devido às facilidades de se publicar — seja por meio eletrônico (sites, blogs, e-mails), seja em produções independentes — há uma clara proliferação de poetas. Há uma imensidão de gente escrevendo e publicando poemas. O senhor considera este fenômeno benéfico à poesia ou corre-se o risco de uma vulgarização?
Um poema de verdade é uma coisa rara. Pode-se passar uma vida para escrever um único. Escrever poesia é dificílimo e não tem nada que ver com a atual enxurrada de livros de versos, com desenhos de emoções que, embora possam ser sinceras em quem os compôs, nesses pretensos poemas se revelam falsas ou imitadas. A má poesia afasta dos leitores a boa poesia. Causa confusão e fastio. Cada um de nós que fazemos versos deveria pôr em dúvida o que escreve e ser sóbrio, discreto e cauto.

• A poesia contemporânea brasileira tem grande apego ao hermetismo — o que, obviamente, afasta alguns leitores (que já andam tão escassos). O senhor lê a poesia produzida pela nova geração de poetas? Qual a sua opinião sobre o cenário poético brasileiro?
Os leitores de poesia sempre foram escassos. E o que é hermético para um leitor não o é para outro. Uma alusão que é clara para o poeta pode ser incompreensível para alguns leitores. Veja, por exemplo, os versos iniciais de As cismas do destino, de Augusto dos Anjos:

Recife. Ponte Buarque de Macedo.
Eu, indo em direção à casa do Agra,
Assombrado com a minha sombra magra,
Pensava no Destino, e tinha medo.

São versos na aparência nada herméticos, mas parece-me evidente — posso estar enganado — que será outra a captação do leitor, se souber que a “casa do Agra” era uma casa funerária. Mais do que um leitor de poesia, sou um releitor. Leio, porém, a nova poesia que me chega. Enquanto não conseguir decorar, sem para isso esforçar-me, alguns de seus versos, não serei capaz de sobre ela, coletivamente, expressar um julgamento.

• Qual o sentido da poesia (sua lentidão e introspecção) num mundo tão afeito à pressa?
Por que teria eu, ou tem você e a poesia, de render-se à falsa pressa do mundo?

• Durante um breve período, o senhor produziu e publicou poesia concreta (nesta antologia os exemplos são os poemas Um artesão e Giro). Qual a importância do movimento concretista, seus benefícios e prejuízos para a poesia brasileira?
Um movimento como o concretista é o que foi. Interessantíssimo e instigante. Mas de seu tempo, como todo movimento de experimentalismo e vanguarda. Em 1961, eu publiquei em Lisboa um panorama da nova poesia brasileira e a repercussão dos poetas concretos que nela incluí foi tão grande entre a gente jovem que, no ano seguinte, editei uma plaquete, Poesia concreta, que teve ainda maior êxito. Seria eu capaz de criar de forma semelhante? — perguntei-me. E fiz algumas tentativas, das quais só publiquei três. Na realidade, tanto eu quanto o poeta português e grande amigo E. M. de Melo e Castro estávamos interessados em fazer filmes-poemas — era uma época em que os poetas queriam invadir as outras artes, como a pintura e a escultura —, o que se revelou, para nós, uma impossibilidade. Não sei para que submeter a poesia concreta a uma avaliação de perdas e ganhos. Sei que foi, em seu momento, um excepcional produto de exportação da cultura brasileira, que podíamos oferecer ao mundo juntamente com Brasília, o cinema novo e a bossa nova. E que ainda hoje — talvez porque neles ponha os olhos da saudade — muitos poemas concretos me parecem, mais do que bem urdidos, felizes.

• No ensaio Mestre Dezinho de Valença do Piauí, o senhor escreveu que “toda a arte, e sobretudo a grande arte, nasce do diálogo com o passado”. Qual a sua opinião sobre parte da prosa brasileira que tenta de alguma maneira o fortalecimento de um realismo/naturalismo, busca um retrato fiel da realidade que, quase sempre, nos sufoca?
O que desejava dizer é que toda obra de arte é um palimpsesto. Que atrás de um poema ou de um quadro se encontram poemas anteriores e quadros anteriores. Que toda a história da arte é a de um entrelaçar de vozes que se aproximam ou se contrapõem, que seguem uma linha de exposição ou a mudam de rumo, em que um verso de um poeta estimula outro, em que há encontros de temas e de inflexões, de técnicas e sensibilidades. Isso pode ser evidente, quando Picasso repinta Las meninas de Velázquez, ou A divina comédia e Os lusíadas em Invenção de Orfeu, ou ser mais discreto nas aparências ou mais sutil, ainda quando de forte intensidade no estímulo e nas ressonâncias, como quando Vermeer reaparece em Mondrian. Um autor injustamente pouco lembrado, Eugenio d’Ors, descrevia a história da cultura como um oscilar entre o clássico e o barroco, ou, se você preferir, entre o realismo e o romantismo. Entre nós, de Graciliano Ramos para Guimarães Rosa e deste para os contemporâneos.

• A morte também tem forte presença em sua poesia. De que maneira o senhor a encara? O que espera dela?
Com serenidade, espero silêncio e escuridão. Foi e é uma extraordinária experiência, reservada a poucos, o viver e o ter vivido. E isto me basta.

• Que tipo de poesia o seduz como leitor e que tipo o afasta de um livro?
Seduz-me a boa poesia, que é cousa rara, e me enfastia a má, que, por sua abundância, nos afoga.

• Todo bom leitor tem o seu “cânone” pessoal formado (ou em eterna formação). Quais autores ocupam um espaço privilegiado em sua biblioteca? Por quê?
Não passo dois anos sem reler Homero e Camões. Li apaixonadamente Keats, os simbolistas franceses e Rilke. E, com entusiasmo, Vico, Gibbon, Jacob Burkchardt e Huizinga. Uma de minhas afeições de mocidade foi João Francisco Lisboa. Outras, As mil noites e uma noite, na versão de J. C. Mardrus, Marcel Proust eThomas Mann. Outra ainda, o Raul Brandão de Húmus e O pobre de pedir. Deslumbrou-me, na adolescência, Casa grande & senzala, e me revelou os caminhos que, a fugir da poesia, me levariam à África. Reli muito Antônio Nobre, Cesário Verde, Manuel Bandeira, Cecília Meireles, o Jorge de Lima do Livro de sonetos e dos sonetos de Invenção de Orfeu, o Carlos Drummond de Andrade de Claro enigma e a primeira metade de Flor da morte, de Henriqueta Lisboa. Gosto muito de e. e. cummings. Tenho fascínio pelo Padre Antônio Vieira, por Euclides da Cunha e João Guimarães Rosa, mas minha linhagem é a do Padre Manuel Bernardes, Machado de Assis e Augusto Meyer. Gostaria de ter escrito L’après-midi d’un faune, de Mallarmé, Inania verba, de Bilac, e aquele soneto de José Albano cujo primeiro verso é “Poeta fui e do áspero destino”. Últimos sonetos, de Cruz e Souza, foi o livro de poeta brasileiro que mais me comoveu. E até hoje não esqueci o romance A ladeira da memória, de José Geraldo Vieira. Minhas admirações incluem Valle-Inclán, García Lorca, Jorge Luis Borges, Cabrera Infante e Julio Cortázar. Tenho um carinho especial pelas Lendas em nheengatu e em português, de Antônio Brandão de Amorim, e pelos Ensaios de etnologia brasileira, de Herbert Baldus, tão importantes na minha juventude. Entre as admirações da maturidade, destaco todos os romances de Vergílio Ferreira a partir de Alegria breve, para mim dos maiores que já se escreveram em português e em qualquer língua.

• O senhor é considerado um dos grandes africanistas em língua portuguesa. Como surgiu o interesse pela África? O que o Brasil ainda precisa aprender ao olhar para o seu passado e seus laços com o continente africano?
Surgiu na adolescência, depois que li Casa grande & senzala, de Gilberto Freyre, Os africanos no Brasil, de Nina Rodrigues, e Costumes africanos no Brasil, de Manuel Querino, e me convenci de que era impossível tentar compreender o Brasil e a história do Brasil sem o conhecimento da África e da história da África. Durante muito tempo, temi que me comparassem ao “homem que falava javanês”, do Lima Barreto, mas felizmente vejo agora muita gente jovem se dedicando a esses estudos. Começamos a olhar melhor para o que em nosso passado tem origem na África. Curiosamente, na escola, nos aproximávamos de Pedro, o Grande, da Rússia, e de Catarina da Suécia, estudávamos a formação da Suíça e a política de Bismarck, mas nada aprendíamos sobre os reinos do Congo e do Daomé ou sobre o angola a quiluanje, que tiveram tanta importância em nossa formação.

• O senhor presidiu a ABL entre 2002 e 2003. A instituição é acusada de estar voltada para si mesma, relegando a segundo plano questões importantes da cultura, como a discussão de políticas públicas, os caminhos políticos do país, o incentivo à cultura, etc. De que maneira a ABL poderia ter mais relevância na vida cultural do Brasil?
A acusação é injusta. Uma casa que teve em seus quadros José do Patrocínio, Joaquim Nabuco, Rui Barbosa, Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Roquette-Pinto, Barbosa Lima Sobrinho, Alceu de Amoroso Lima, Afonso Arinos de Melo Franco e Celso Furtado — cito nomes que me vieram imediatamente à lembrança — não relegaria jamais para o segundo plano as questões importantes da cultura e da vida brasileira. A Academia, por meio de seus prêmios (todos de enorme prestígio), de seus ciclos de conferências, dos livros que publica ou co-edita, da Revista brasileira, de suas duas importantes bibliotecas e de seu setor de lexicografia, procura cumprir o seu papel. No ano passado, por exemplo, a Academia reuniu em suas salas de conferência, sempre com grande público, alguns dos principais especialistas do país para discutir, entre muitos outros assuntos, favelização nas grandes cidades, medicina e ética, estudos lingüísticos no Brasil, rumos da fotografia contemporânea, música popular e poesia, história e literatura, futebol e literatura, os intérpretes do Brasil, a mídia e o poder, desenvolvimento regional, literatura e ciência, além de co-promover, com a Fundação Três Culturas do Mediterrâneo e o Harriet Tubman Institute, um grande simpósio internacional sobre as diferentes formas que tomou no mundo a escravidão.

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Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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