Não há outro lugar

Personagem lateral é suporte essencial para Órfãos do Eldorado, novo romance de Milton Hatoum
Milton Hatoum, autor de “Órfãos do Eldorado”
01/03/2008

Stelios da Cunha Apóstolo não é o personagem mais importante de Órfãos do Eldorado (Companhia das Letras), o novo romance do amazonense Milton Hatoum. A voz aturdida de Arminto Cordovil, um sonhador de espírito desordenado, que vive preso a paixões atrozes, obsessões doentias e lendas amazônicas, domina o livro de Hatoum. Mesmo em sua posição lateral, Estiliano, como o protagonista o chama, é a suporte do livro, que sem ele, provavelmente, desabaria. Ele é a consciência — desagradável e dolorosa — de Arminto. Sua presença desmascara suas ilusões e fere de morto os mitos a que se agarra para viver.

Sempre apreciei os personagens marginais, que parecem inventados só para sustentar a trama e abrir caminho para a performance dos heróis. A figura plácida de Estiliano confirma esse gosto. É um personagem de idéias e de palavras, não de ação. Quando entra em cena, fala, em vez de agir. Como homem, é uma figura silenciosa e triste. Arminto recorda a primeira vez em que o viu, metido em um paletó branco, calça de suspensórios e sapatos velhos. Um sujeito que vive para se apagar e, apagado, vive para arrancar a máscara dos outros.

Bondade? Doação? É injusto resumir assim. Em Estiliano, o silêncio, a presença vaga, a solidão quase sacerdotal, é uma posição diante do mundo, e não dos outros. Uma posição diante de si. O advogado, que se formou no Recife e voltou para a Amazônia, é um homem sem aspirações pessoais, para quem a vida se resume àquilo que é. Que tudo o que temos, apesar de nossas frágeis lembranças do passado e temerárias ilusões a respeito do futuro, é o presente. Ou somos o que somos, ou não somos.

Assim começa a grandeza de Estiliano que, cada vez que surge no relato de Arminto, desordena seus sonhos, suas vaidades, seus arroubos, e os perfura com as ranhuras do real. Talvez ele possa ser visto como um desmancha-prazeres e, por isso, Arminto muitas vezes com ele se enfurece. Mas sua fidelidade feroz aos amigos, sobretudo a Amando Cordovil, o pai do protagonista, não permite que Arminto o deixe. Não precisa chamá-lo, ele está sempre ali. Não precisa pedir que se vá, ele sabe sempre a hora de partir.

A frase mais dolorosa que Estiliano oferece a Arminto, “não há outro lugar”, Hatoum a tomou dos versos do poeta grego Konstantinos Kaváfis, tiradas do poema A cidade, que abrem seu romance. “Não encontrarás novas terras, nem outros mares./ A cidade irá contigo./ Andarás sem rumo pelas mesmas ruas./ Vais envelhecer no mesmo bairro,/ Teu cabelo vai embranquecer nas mesmas casas./ Sempre chegarás a esta cidade./ Não esperes ir a outro lugar”, dizem. O poema me faz lembrar de Não há nada lá, de Joca Reiners Terron, um dos melhores romances brasileiros deste início de século. Evoca os versos duros do genial Alberto Caeiro, o mais radical dos heterônimos de Pessoa.

É delicado e cheio de elipses o percurso de Estiliano. Se não estou enganado, ele surge na página 18 do livro, apresentado como o único amigo do pai, Amando. “Meu querido Stelios — assim meu pai o chamava.” Os dois se olhavam com admiração, “como se estivessem diante de um espelho”. Isso leva Arminto a refletir: “E, juntos, davam a impressão de que um confiava mais no outro do que em si próprio”.  Tem voz rouca e grave. “Era alto e robusto demais para ser discreto.” Gostava de falar das livrarias de Paris, onde nunca tinha ido. Além da literatura, para se embriagar só tinha o vinho. “Não sei onde ele metia ou escondia o desejo carnal.” Parece feito só de idéias.

Contraponto interior
A prosa de Milton Hatoum é sedutora e, no avançar das páginas, me leva a ver Estiliano bem à minha frente. Estiliano? Armadilhas da leitura: sempre lemos (e toda leitura é interior, mesmo quando feita em voz alta) com o que temos. Leio tendo a meu lado a figura de meu tio Luis Guimarães, irmão mais velho de minha mãe, obeso, solteirão e que puxava dos pés, que morreu de uma unha encravada, ainda nos anos 70. Ela se mistura à presença de Estiliano — e certamente é só porque experimento essa mescla que o personagem de Hatoum me toma. Não que ele não seja um grande personagem, é claro que é. Mas nem sempre conseguimos chegar à grandeza das coisas; precisamos dispor de um contraponto interior (um espelho, como aquele em que Estiliano e Amando se viam) para que a coisa funcione.

Pois bem, agora tenho o meu Estiliano. Outros leitores têm, ou terão, o seu. Falo, portanto, do meu — e aqui talvez deva me desculpar com Hatoum. Mas todo grande escritor sabe que seus personagens não lhe pertencem, que eles renascem a cada leitura, são uma mistura do que se escreve com o que se lê. Na leitura, o personagem pertence mais ao leitor que ao escritor. Fracasso do escritor, ou sua vitória? Volto, mais tranqüilo, ao meu Estiliano — o personagem que Hatoum me dá. Arminto, o protagonista, sempre em dificuldades na relação com o pai, aconselha-se com o advogado. Até que Amando, o pai, morre, logo no momento em que eles se reencontrariam. O pai morre em seus braços. A partir daí, Estiliano, a imagem refletida de Amando, cresce ainda mais. Sem ser o pai, toma o lugar do pai — lugar que o pai, na verdade, nunca ocupou. Ele é aquele que sabe que a grandeza só tem algum significado quando conseguimos associá-la ao contingente.

Apaixonado pela órfã Dinaura, que vive em um internato de freiras carmelitas, Arminto busca a ajuda de Estiliano para conquistar a moça. Pensa que o velho não se comove com seu pedido, pois lhe devolve um olhar vazio. “Nada de dor nem compaixão.” Ele se mantém concentrado em uma folha de papel, em que copia versos de um poema. Entrega-o, por fim, a Arminto, como um instrumento para a conquista de Dinaura. Algumas portas se entreabrem em seguida. Quando o mundo de Arminto desaba, Estiliano o aconselha a mudar-se para Manaus, mas ele não o ouve. O cargueiro alemão que herdou do pai naufraga. Ele vai à falência.  Preso na paixão por Dinaura, não consegue reagir. “Aquela moça arrancou tua cabeça”, Estiliano resume. Mas é difícil ouvir. O advogado lhe dá conselhos práticos, mas sabe que suas palavras, barradas pela redoma da paixão, não o atingem. “Estiliano me encarou com pessimismo, que é mais doloroso que o insulto.” Convence-o, por fim, a visitar a fazenda da família, último rasto da herança paterna.

Na fazenda, ele encontrará documentos que deformam a imagem do pai, Amando. Mesmo nas horas mais adversas, porém, Estiliano defende o amigo morto. “A lealdade cega de Estiliano a meu pai me enervou.” Se muitos homens são movidos pela paixão, outros se sustentam em uma espécie de mitologia da amizade. É um sentimento que compartilho com Estiliano e que dele me aproxima mais ainda. Lembro dos versos de Caetano Veloso, que, em contrate com a paixão, exaltam a amizade: “E quem há de negar que esta lhe é superior?”

Alegrias do espírito
Doente de amor, Arminto tem uma vida perdulária e sem rumo. Preocupado, Estiliano às vezes o procura. “Não falava da vida dele, há pessoas que morrem com seus segredos.” Numa dessas conversas, porém, o velho revela que ele e Amando pretendiam fazer uma viagem a Paris. “Só vocês dois?”, Arminto pergunta, espantado. “Sim.” A solidão de Estiliano não é menor que a de Arminto mas, sem excluir as dores da paixão, e por isso, talvez, se torne mais suportável. Ao anoitecer, para compensar, ele toma duas garrafas de vinho e lê poemas de Cesário Verde e de Manuel Bandeira. É uma forma abstrata de lidar com o impulso sexual. Repete sempre uma frase: “A vida passa, a vida passa, e a mocidade vai acabar”. Alegrias do corpo? Melhor ficar com as do espírito.

Dá livros de presente a Arminto, que ele nunca lê. “Quando alguém morre, ou desaparece, a palavra escrita é o único alento”, aconselha. O rapaz pensa em mandá-lo ao diabo com seus versos e lições, mas o velho desaparece antes disso. Como se nada o atingisse. A contrário: postado no coração da realidade, Estiliano já não se surpreende com nada. Quando sente que está para morrer, um Estiliano cheio de pressa procura Arminto para fazer uma revelação difícil. O herói, que sempre espera o paraíso, é obrigado a cair em si. Depois do ataque, Estiliano ainda lhe dá um segundo gole: “Agora é tarde demais, nenhum barco vai te levar para outro lugar”, diz. E resume: “Não há outro lugar”.

Arminto é um personagem embriagado não só pelo amor, mas pela lendas com que se defende da solidão. Mitos amazônicos, histórias mal contadas, narrativas antigas, tudo se mistura em seu espírito. Tudo o entorpece. Estiliano luta, todo o tempo, para desarmá-lo. Para fazê-lo acordar — exatamente como os poemas de Caeiro fazem com quem os lê. Estiliano morre no dia em que Arminto navega pelo Amazonas, em busca de uma pista que talvez o leve a Dinaura. Sua imagem permanece encravada na aventura de Arminto, como um espinho que não se pode arrancar.

Há em Estiliano uma dolorosa forma de amor pela vida. Amor que suspeita dos arroubos da esperança e do consolo das paixões. Que se contenta em amar o que é, por menor, ou pior que isso seja. Esta é sua fraqueza, mas é também sua grandeza.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho