Pescador de histórias

Resenha do livro "Para pegar bagre de dia é preciso sujar a água", de Wander Piroli
Wander Piroli, autor de “Para pegar bagre de dia é preciso sujar a água”
01/03/2008

Literatura e pescaria têm alguma similaridade. Encostar-se num barranco à beira de um rio, sob a sombra de uma árvore, uma bebida ao lado, deixar o tempo correr, é um prazer solitário que pode ser feito com um livro ou com a linha e o anzol na mão. Nos dois casos, pouco importa o livro, o autor, o peixe, o que vale mesmo são as boas histórias. Em Para pegar bagre de dia é preciso sujar a água, de Wander Piroli, literatura e pescaria ora se encontram, ora se afastam, mas no fim restam algumas boas histórias.

Piroli demonstra pelas letras a mesma afeição que tem pela pesca. O prazer de preparar a pesca no dia anterior, colocar o material na maleta, escolher a isca, encontrar o melhor ponto do rio, acomodar a minhoca no anzol, são pequenos rituais que se assemelham à construção das frases, à escolha dos verbos, à acomodação dos adjetivos. Piroli faz as duas coisas com o mesmo cuidado, com carinho, até com certa ingenuidade, mas sempre de olho na melhor história de cada peixe fisgado.

A ingenuidade dos relatos, na maioria das vezes, tem um efeito positivo, dando às histórias leveza, humildade e, principalmente, veracidade. Por incrível que pareça, são histórias de pescador que remetem à mais profunda verdade.

E a verdade é que Piroli é um grande contador de histórias, mas que parece não ter a mínima pretensão de figurar no panteão da alta literatura, até porque suas histórias são de pescadores simples, amadores, como ele, mais preocupados em trazer o samburá cheio de causos que de grandes dourados.

Piroli é um pescador habilidoso, consciente de que a veracidade sobre o tamanho do peixe está na forma como a fisgada é relatada. O título do livro, por si, mostra isso, até poderia ter sido inscrito naquele concurso do menor conto do mundo.

Além do título criativo e simpático, Para pegar bagre… traz 20 narrativas curtas, em que são constantes a alegria e o prazer de encostar-se num barranco à beira de um rio, sob a sombra de uma árvore, uma bebida ao lado, deixando o tempo correr.

Em Jogar as coisas fora, o pescador retorna a um rio onde pescara havia vinte anos, mas que agora tinha uma casa ao lado. O empregado da casa, reconhecendo nele um pescador de verdade, convida-o para umas fisgadas e o bate-papo acontece como se fosse entre velhos amigos. “O homem pegou o alicate na capanga e sossegou o peixe com um golpe certeiro na cabeça. O piau deviar ter mais de um quilo e suas escamas molhadas brilhavam ao sol.”

Em O Chevrolé preto com três músicos, um grupo de pescaria não se deixa abater com a quebra do carro na estrada. Empolgam-se tanto com os instrumentos musicais, a cachaça, a cerveja e o tira-gosto que, mesmo depois do carro consertado, continuam com a pequena festa à beira da estrada, deixando a pescaria para o dia seguinte. “O pandeirista, que agora tinha nome — Nenego —, acendeu o liquinho amarrado no galho da mangueira com uma tira de couro. Umas trinta garrafas de cerveja vazias jaziam no mato e, entre elas, dois cascos de Cristalina do Picão.”

O conto Uma noite de frio mostra que a falta de prevenção pode fazer uma pescaria inesquecível, para o mal, como experimentou o dr. Leitão, que não levou blusa para atravessar a noite no barco e foi surpreendido pelo frio. “Ainda faltava um pouco para o amanhecer e o frio aumentava. Olhei para a cara do dr. Leitão com a certeza de que, por nenhum dinheiro do mundo, ele nunca mais sairia da sua Manhuaçu para pescar no São Francisco.”

A pescaria também pode ser arriscada, como em Me dá o pé, em que três dias de chuva alagam o vilarejo e transformam os pescadores em bombeiros de resgate. “Encontraram a velha Miquelina em cima da cama, muda, abraçada com o cachorro. O papagaio, inquieto no seu ombro ossudo, não parava de gritar: — Eta vida fedaputa.”

O mineiro Wander Piroli era formado em direito, trabalhou em jornais e na Câmara Municipal de Belo Horizonte. Escrevia certinho, com alegria, puxando cada frase como se fosse um piau de mais de um quilo. Pescava peixe, mas fisgava histórias.

Para pegar bagre de dia é preciso sujar a água
Wander Piroli
Leitura
120 págs.
Paulo Krauss

É jornalista.

Rascunho