“Não é não. Seria como aquelas vitrolas de cabaré, sabe como? Tem um monte de músicas diferentes, o mostruário é como um índice, você chega, escolhe a que quer ouvir, põe a ficha e ouve. Todo mundo que estiver lá vai ouvir a música que você colocou, vem outro cara e ouve a dele e tal. As músicas não têm nada a ver umas com as outras, uma é bolerão, outra é rock, outra é samba, choro, o diabo, mas estão todas dentro da mesma vitrola e do mesmo bar. Então, o livro seria uma vitrola dentro da zona que é essa vida aí.”
Jaime Prado Gouvêa fala do livro que seu personagem nunca escreverá como se falasse de seu próprio livro, Fichas de vitrola e outros contos. Escritor que trabalha sua obra com intenso vagar, publicando muito pouco, cinco livros desde que ganhou o mítico Concurso Nacional de Contos do Paraná, em 1969, vive naquela espécie de exílio literário onde moram muitos autores sempre comentados, mas muito pouco lidos. Isso é lamentável, pois a prosa de Gouvêa é viva, rica, trabalha todas as possibilidades, desde que tenha a precisão da palavra como ponto de partida.
Este novo livro foi construído a partir do apanhado de contos anteriormente publicados em outros volumes e inéditos. Ao todo, vinte e um textos. Em comum eles mantêm a atmosfera pessimista que dominou o final da década de 60 e início da de 70 do século passado. Era um clima pesado, com ditadura militar e muito pouca esperança de renovação. Mediocridade reinando na classe média e a desilusão de supostos intelectuais que não conseguiam sair dos bares. A desvalorização suprema da vida.
Com poucas exceções, os personagens são niilistas e céticos. A vida não vale a pena pois está cercada por inutilidades. Os bares assim são refúgios. Praticamente todos eles têm sua vitrola de fichas com músicas tão antigas e passadas como a própria vida dos personagens. É isso, o autor não faz concessões. Cria sua literatura a partir do fundo do poço daqueles idos. Simca, vitrola, Roberto Carlos, a modernidade envelhecida em menos de uma década. É, assim, a metáfora da urgência de tudo, da decadência precoce. A leitura dos contos deixa um forte cheiro de bolor nas vidas por eles descritas, vidas muito jovens, mas já então marcadas pela decrepitude de sua inutilidade.
Sim, estamos diante de um escritor sem piedade. Muitos de seus contos podem fazer parte de clássicas antologias de textos sobre a crueldade. “Você desconfia que a partitura que eu te dei para tocar no grande concerto de sua vida deva ser executada por dois instrumentos tão vulgares: berimbau e gaita. E faltam dois dentes no sorriso dela”, confessa um escritor a um seu pobre personagem.
As relações amorosas são um capítulo à parte no mundo degradado de Jaime Prado Gouvêa. Aliás, sequer se pode falar em amor nessas relações. Homens e mulheres se usam da forma mais vil possível. Jogos lúdicos, para usar uma expressão menos cruel. A verdade é que uns se descartam aos outros com a naturalidade das coisas vãs. Homens deixam prostitutas nuas num bar distante, outro tenciona matar um marido que bate na mulher pelo desejo de ficar com a futura viúva, já uma se faz prostituta para ferir o policial que bateu em seu homem, e até mesmo as crianças são cercadas por ciúmes e invejas.
Um mundo sem compaixões, é verdade, mas o mais real retrato de uma sociedade que se formava a partir do ódio e da ambição. Prado Gouvêa fala de um universo frustrado em todas as suas expectativas. Tínhamos a esperança de uma música popular e de qualidade, nosso desenvolvimento parecia caminhar para a solução de problemas seculares, o pensamento e as artes uniam-se na interpretação do país e daí, tudo levava a crer, se partiria para o futuro que, enfim, seria nosso. Éramos campeões em tudo. Mas de repente tudo parou num corte cruel que nos levou à mediocridade. E é exatamente o momento que se seguiu ao corte que o autor olha.
Aparentemente seu texto surge como um profundo ressentimento político, um discurso ideológico ultrapassado. Nada mais enganoso. Jaime Prado Gouvêa retratou uma época de transição, onde se renunciou ao novo para se apegar ao passado, ao decadente. Tudo mais é decorrência de sua escrita lúcida e muito bem construída.
As metáforas e conclusões ficam por conta do leitor que não deixará vazio a leitura. O autor se dá ao luxo de usar mecanismos da arte, como metaliteratura, música e poesia para nos ensinar que para tudo há salvação. O caminho talvez seja a conscientização dos homens, até mesmo para o universo de mediocridades a que ele assistiu e nos relembra com dor e beleza. Ou seja, com muita arte.