A literatura latino-americana, sobretudo a de expressão hispânica (em que pese a grande heterogeneidade do que cabe nessa identificação), conheceu em meados do século 20 uma visível difusão além de suas fronteiras, junto com o reconhecimento internacional de alguns autores que, oriundos de um continente tido como periférico, se inscreveram no quadro dos principais criadores da ficção de nosso tempo. Gabriel García Márquez encontra-se no centro dessa efervescência criativa, que se expressa como intenção de vanguarda, numa época de aparente esgotamento do sentido de “novo” que pudesse haver nesse conceito nos tradicionais centros de cultura do Hemisfério Norte.
Contudo, a despeito de sua premiação maior — o Nobel de 1982 — e apesar da popularidade entre seus leitores mundo afora, Gabo, como todos os autores latino-americanos da sua geração, teve de passar pela aprovação da crítica européia e pelas classificações pretensamente definidoras de estudos acadêmicos feitos fora da América Latina. O desafio estético e ideológico assumido por autores como Horacio Quiroga, Leopoldo Lugones, Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casares, Julio Cortázar, Alejo Carpentier, García Márquez e o grande grupo de seus seguidores e detratores que lutam ainda hoje pelo espólio de suas riquezas artísticas — apesar das diferenças entre suas obras —, é e tem sido a construção de uma originalidade livre das convenções e conceitos da tradição literária européia e capaz de refletir a identidade cultural do ser americano, sem descurar do caráter universal de suas criações.
Muito já se debateu sobre o “realismo fantástico” ou “realismo mágico”, entendido como ponto de aproximação desses autores e marca definidora de uma geração e de uma expressão literária latina ou hispânica. Em linhas gerais, o rótulo que se consagrou nos estudos e na propaganda — se pensarmos no fenômeno editorial que se verificou com o fantástico — é adequado e conveniente. O debate atual, entretanto, passada a novidade que ensejou um esforço classificador e passada a comoção com a grandeza revelada ao mundo a partir do florão da América, pode contemplar a salutar problematização das generalidades e reduções estereotipantes.
Por certo, há de haver nesse debate quem melhor do que eu assuma essa problematização, assim como a conceituação do realismo fantástico e sua evolução histórica. O que pretendo é a situação de algumas linhas gerais sobre a presença do fantástico na literatura brasileira, tão próxima e tão distante das outras do nosso continente, tão imune à influência direta recebida destas (a não ser que ela se traduza como modismo e caricatura) e ao mesmo tempo tão aparentada nos embates que vivencia, nos limites que enfrenta para se fazer reconhecer para além das reduções.
Como se sabe, o realismo fantástico trabalha com um tipo especial de verossimilhança, remetendo o enredo à esfera do absurdo e mergulhando o leitor numa dúvida epistemológica que embaralha real e irreal, possível e impossível, instaurando uma ambigüidade, que sufoca a percepção imediata dos sentidos. A interpretação mais comum dessa ambigüidade se dá pelo seu entendimento como alegoria e, nesse sentido, a decifração do que está por trás do entrecho ficcional construído (que, afinal, se mostra plausível e coerente, mesmo quando absurdo) revelaria a realidade latino-americana. Acresce a isso o recurso aos grandes temas sociais e o fato de o texto fantástico pretender ser também político, engajado numa tentativa de representação crítica do processo histórico de construção das identidades latino-americanas a partir da experiência da exploração seja das potências imperialistas aqui instaladas desde a colonização européia seja das elites locais que sempre as representaram, cultuaram e imitaram.
É irônico e complexo o caminho que leva uma concepção estética renovadora, cosmopolita e de vanguarda como a do realismo mágico a se voltar à construção ficcional (e crítica) de um mundo envelhecido e atrasado em pequenas cidades do interior de países periféricos, com habitantes rústicos, brutos ou apenas incivilizados, em seu diálogo tenso e encantado com a modernidade que não pode absorvê-los e que é desafiada por eles e seu saber vivenciado de modo tão original e inusitado.
Construção das ambigüidades
Ao observar a existência do fantástico em todas as etapas da história da literatura, sendo quase que indissociável da sua definição elementar, Tzvetan Todorov, no estudo Introdução à literatura fantástica, observa que o essencial na construção do efeito estético do fantástico é a construção das ambigüidades. Projeta-se na percepção do leitor a comparação entre seu mundo de referências aparentadas do real exterior e a emergência de acontecimentos que transcendem as leis da familiaridade, o que cria a dúvida e a incerteza sobre a possibilidade de o fato descrito ficcionalmente ser ou não real. O fantástico ocorre nesta incerteza, a qual acaba interferindo, no limite, no entendimento (que se torna crítico) da realidade conhecida, agora vista como questionável ou incompreensível pela lógica trivial.
Há que se salientar, a partir de Todorov, a compreensão da postura do leitor, já que o fantástico está mais que tudo no jogo das expectativas e vivências do leitor em torno das suas referências sobre um dado conceito de real. Além disso, sabe-se que o conceito de real é uma construção histórica e aberta à contextualização da cultura. É nesse ponto, o da imprecisão do conceito de real, na sua dependência dos dados da cultura construída e sua variação, que podemos situar a comparação possível entre as realizações do fantástico nas suas expressões hispano-americanas e brasileiras datadas da segunda metade do século 20.
Até por razões extraliterárias, é grande a tentação de aproximar as experiências criativas dos países do continente com base na criação utópica da latinidade que nos irmanaria. Mas talvez caibam aqui umas separações necessárias a fim de que se avalie melhor as formas de se dar como realização e recepção o fantástico nos países de tradição e língua espanhola e no Brasil.
No Brasil, a se utilizar o conceito de Todorov anteriormente aludido, o fantástico parece permear diversos textos literários desde o romantismo. Porém, a compreensão das expressões do Fantástico à brasileira precisa ser enriquecida de uns dados da nossa construção identitária. Para que se situe historicamente as formas do fantástico entre nós, vale relembrar o que é apontado por Antonio Candido na Formação da literatura brasileira quanto ao fato de nossa literatura ser uma ramificação e uma herança da tradição européia. Talvez os historiadores das literaturas latino-americanas escritas em espanhol apontem o mesmo a respeito delas. Com isso não se está aqui a diminuir a importância das tradições não européias na construção do ser literário latino. Apenas se constata, por óbvio, que a constituição do que Candido chama de “sistema” literário, tanto no Brasil como no resto do continente, pressupõe uma rede de autores identificados com um espaço físico e mental de nacionalidade (aí incluído o idioma em que ela se expressará), voltados à construção de uma literatura que expresse essa nacionalidade, dirigindo-se a uma comunidade de leitores que, em maior ou menor grau, se reconheça nessa literatura. A isso se acrescenta a necessária sustentação de um mínimo universo editorial ou livreiro, responsável pela circulação e difusão material das obras. É forçoso reconhecer que, em sua gênese, todas as literaturas nacionais oriundas da colonização da América só se constituíram como tais a partir da incorporação de experiências e instrumentais técnicos trazidos da Europa e aqui aclimatados e revistos.
Decorre desse contato com a matriz européia uma diferenciação basilar que, a meu ver, separa os fantásticos brasileiro e hispano-americano. Recorro às informações do capítulo inicial de Visão do paraíso, de Sergio Buarque de Holanda, intitulado Experiência e fantasia, para sustentar essa intuição: nesse trecho do livro, em que trata das possíveis origens do imaginário que associa, no olhar europeu do medievo tardio, as terras americanas ao paraíso, o historiador faz uma análise dos relatos de viagem e das cartas de descobrimento escritas por espanhóis e portugueses desde os séculos que antecederam o auge das grandes navegações. Constata-se, a princípio, uma separação estilística entre os textos de espanhóis e portugueses que se liga a uma distinção ideológica que pode decorrer das diferenças de “projeto” expansionista entre as duas nações ou de coordenadas culturais próprias de cada povo. O fato é que o modo de os espanhóis em seus relatos se referirem às terras novas é claramente mais extasiado, aberto à expansão da fantasia que inventa o ilógico na descrição de monstros e gigantes, povos improváveis e relações humanas em tudo distintas do que se via na Europa. Os portugueses, por sua vez, preferirão a contenção objetiva e, no limite do que a sua ciência incipiente permitia, a explicação lógica dos fatos observados.
Contrastes
Em comparação com as descrições do Novo Mundo produzidas pelos conquistadores castelhanos, repletas de elementos maravilhosos que reproduzem pontualmente as temáticas edênicas, as narrativas de autoria lusitana mostram-se carentes desses elementos, deixando espaço para um realismo pobre que se aproxima da arte medieval pela importância conferida aos detalhes, em contraste com o gosto da fantasia característico dos espanhóis. Paradoxalmente esse comportamento espanhol seria mais moderno, prefigurando, ainda que de modo precário, o renascimento emergente. Segundo Buarque de Holanda, a diferença verificada nas representações do Novo Mundo elaboradas pelos dois povos tem relação com os respectivos processos de colonização ultramarina.
Enquanto Castela, mesmo sem perceber, criara novas bases para o colonialismo moderno, Portugal permanecia prisioneiro de técnicas medievais de colonização baseadas no centralismo da Coroa portuguesa a impedir a liberdade das empresas particulares nas conquistas, limitando-as ao litoral, de onde vinha (para o rei e a corrupta máquina do estado, com seus desvios de conduta) a riqueza alcançada ou produzida no curto prazo. Já nas possessões castelhanas, por força de uma abertura maior à iniciativa particular (mesmo que predatória) de exploração do continente, ocorreu para os colonizadores um mergulho mais fundo e desafiador no interior do continente.
Não há como não se pensar no isolamento maior vivenciado nos povoamentos espanhóis, o que engendrará, no limite, um anseio de autonomia e auto-suficiência que os povoados litorâneos criados por Portugal não experimentam de imediato. Ir às entranhas da América, para os espanhóis, acentua e instiga um imaginário já naturalmente irrefreável que, miscigenado e ambientado na delirante paisagem do continente, aparecerá na construção de um universo narrativo autônomo, pujante e alegre, do qual a literatura aí surgida se servirá. Nas narrativas de descendência lusitana, a tônica dominante nos momentos da sua definição é ambígua, oscilando entre a idealização desfiguradora da terra nova (aprisionada pelo exótico mesmo quando quer afirmar orgulhosamente a particularidade do Brasil, como se vê no Romantismo) e o anseio de um reencontro com a raiz européia e sua visão de mundo tida como “civilizada”.
Enquanto as descrições lusitanas do Novo Mundo surgem com o que Sergio Buarque de Holanda chama de “atenuações plausíveis”, que buscam aprisionar e decifrar a paisagem, o agudo senso de fantasia dos espanhóis explode em seus relatos, associando a experiência do mundo sensível (sem necessariamente decifrá-lo) às convenções tradicionais relativas ao Paraíso. É essa postura assumida pelos espanhóis o ponto crucial na diferenciação do contato que eles tiveram com o índio e o negro em terras americanas. Se os portugueses no Brasil chegaram, em muitos casos, a um grau de miscigenação física e genética maior, é evidente que a maneira de se dar o contato interétnico pressupôs a capitulação dos povos não europeus e a definição de “brasileiros” a partir da aceitação da cultura européia branca. O contato de espanhóis com negros e índios, variável em termos genéticos nas muitas regiões colonizadas, grosso modo, não se caracterizou pela uniformização cultural em torno da cultura branca. É certo que nisso se embute a estratificação social baseada na raça, fenômeno que perpassa a história de todos os países do continente. Mas na América hispânica, a preservação das alteridades (às vezes à custa da manutenção do conflito, sem lugar para a cordialidade) criou as bases para uma heterogeneidade que preservou expressões mais autênticas de elementos das culturas índia e negra, mesmo que nos planos político e de cidadania esses grupos, como no Brasil, não sejam plenamente incorporados.
No Brasil, o índio quase não mostra sua cultura narrativa e poética nas criações da literatura. Quando o faz é pela concessão dada por um emissor branco dirigindo-se a um receptor branco, sendo que a mensagem quer ser a possível tradução (decifração, como quer Sergio Buarque de Holanda) para o ideário europeu de uma compreensão de mundo que só é traduzível quando embranquece. As expressões literárias derivadas da mundividência pré-lógica de tradição mítica indígena, ainda que bem intencionadas, como no indianismo do século 19 e em certos exemplos do Modernismo, não trazem a voz do índio e mal expressam seu universo maravilhoso. Macunaíma, de Mário de Andrade, é a exceção que confirma a regra. Quanto à voz do negro, basta dizer que, por força da violência da escravidão e suas conseqüências até hoje visíveis, ela é ainda menos audível em nossa literatura do que a do índio.
Dessas cogitações baseadas na tentativa de distinção do processo histórico a que se associam as literaturas produzidas no continente americano em língua espanhola e portuguesa, vê-se que o contexto da emergência do fantástico hispânico tem particularidades que a realidade cultural e literária do Brasil não pôde contemplar. A despeito disso, encontramos marcas do maravilhoso em textos esparsos de Álvares de Azevedo, Joaquim Manuel de Macedo, Machado de Assis, Monteiro Lobato, Mário de Andrade, Erico Verissimo, Guimarães Rosa, entre outros. E mais fortemente, nos livros de Murilo Rubião, Jorge Miguel Marinho e José J. Veiga. Sobretudo nos autores mais próximos no tempo, é comum a construção de enredos baseados em alegorias que representam a situação do Brasil e suas realidades absurdas e assustadoras. Das definições e variações do fantástico, a que mais se verifica entre nós é a que o associa ao estado de espírito que apanha no cotidiano o insólito, revelado em descrições de conteúdo crítico necessariamente metaforizado, visto com a lente do absurdo. Cumpre assumir, entretanto, que o boom literário latino-americano não incluiu a literatura brasileira, mesmo quando ela buscou, por uma conjuntura política de fechamento, nos anos 70, emular o estilo dos decanos do realismo fantástico (García Márquez, Cortázar, Borges, Fuentes) em obras de conteúdo alegórico como Zero, e Ignácio de Loyola Brandão, e Incidente em Antares, de Erico Verissimo.
Os aniversários de García Márquez (80 anos de vida e 40 anos do lançamento de Cem anos de solidão), comemorados em 2007, mostram-se como ocasião interessante para a discussão do espaço do fantástico na literatura num tempo em que a realidade (não só a do continente) por vezes se mostra absurda e incompreensível, ainda que se admita que o ciclo histórico do realismo mágico tenha-se cumprido ou então tenha-se projetado nas experiências contemporâneas da criação de autores latino-americanos, mesmo os que o renegam. Para além disso, qualquer discussão sobre o fantástico é uma ponte para a discussão sobre o que caracteriza a realidade latino-americana, com a qual a brasileira dialoga, sempre de modo complexo e rico, seja confirmando-se como igual seja marcando a sua distinção.