ABRINDO OS PORTÕES
Li esta obra em sonho, já impressa. E ao regressar conservei somente a lembrança do título e o significado genérico do conteúdo. Deus no inferno e o diabo no céu; em mim, em nós. Memória, sonho, pesadelo, imaginação, e seus entrelaçamentos em nossa existência, neste lugar estranho onde fomos condenados a viver.
Estou em cada um dos personagens, e não sou nenhum deles. Jamais conseguiria a escritura definitiva dos fragmentos deste território se não tivesse re-sonhado e vivido, com esses partícipes, as suas dimensões isoladas no tempo em que duraram. Afinal, escrevi este livro para não morrer.
E agora abro os seus portais, de par em par.
Ribeirão Claro, 1º de janeiro de 1978.
Assis Chateaubriand, 23 de julho de 1984.
1
Veio até a porta, com a mão esquerda segurando na de uma vizinha, e a direita raspava a parede, tateante, tenteando. Olhava para o alto querendo enxergar o que estava mais abaixo. O cego faz assim, pensei. As carnes flácidas balançavam nos braços. Então, todo o rosto, inclusive a parte paralisada, perguntou se era eu. Respondi com a totalidade do corpo na voz. Caminhou aos tropeços uns três passos lentos e nos abraçamos. Fiquei imaginando se já fora escrito algum livro com o título: “P.S.: mamãe morreu”. Contou que se mantivera viva o suficiente para me esperar. Ela alternava expressões de vitória e de derrota.
2
No grande rincão do diabo, Ho Nai Property Disposal Area, ocupando uma superfície de450 acres, a36 quilômetrosao norte de Saigon, os americanos enterraram, com suas recordações, facas de cortar pão, trombones, fontes luminosas, redes de pingue-pongue, máquinas de lavar, copos de papel, torneiras, copiadoras, equipamento para jogo de rugby, mastros de bandeiras, roupas insersíveis, fuzis e metralhadoras, quepes e bolsas, colchões, tanques e caminhões, jipes, carros de combate, cadeiras, ferros elétricos, geladeiras, latas de cerveja, quadras de esporte, refrigerantes, saunas, piscinas olímpicas, crianças, petecas, membros artificiais, orgulho, desfolhantes químicos, prostitutas, excremento esverdeado, 1.468.000 mortos, vômito e esperma. Desse esgoto de Wall Street nasceram moscas e flores de plástico.
3
E também ofereceu uma carta, onde dizia: “… e lhe dou por insígnias e sinais de seus feitos e honra que nisso ganhou, um escudo vermelho, representando o sangue que derramou por estas terras nessas guerras, e dentro dele lhe dou mares de infortúnio e ilhas de privações e ofensas reais, cuja bordadura será branca, cor da morte; e lhe dou a lembrança do governo corrupto contra o qual lutou em vão até falecer, para ficar a ferros e assim conservado, por muito tempo, obscuro e caluniado, faminto e enlouquecido; e lhe dou elmo com as cores das jóias, das quintas e do dinheiro que recusou; e lhe dou com este escudo o mapa desmemoriado da Nova Holanda, sua terra natal, lugar em que tornará a morrer no esquecimento e mendigando por outra vida; e lhe dou…”.
4
Encontro minha avó paterna enlutada. Ela cavalga, aos prantos, gemendo e pedindo perdão. O animal que monta é de um negrume inteiro. Ela cai. Corro para ajudá-la, e já está sobre o cavalo. E vai ao chão, e sobe, até a próxima queda. Nada posso fazer em seu auxílio. Vovó é prisioneira dessa situação, cavalo e cavaleiro, tropicantes. Espécie monstruosa de centauro, se derrubando e ele próprio se galopando.
5
Daí ela retirou o lenço dele da bolsa, aproveitando a distração do marido com o desejo satisfeito, coberto de suor, resfolegante na cama. O monograma lhe trouxe, de imediato, passeios durante a chuva, o primeiro beijo, sua menstruação alagando a noite de núpcias, a música preferida, um gosto de dropes de cereja, o vinho espumante molhando toda a comida do almoço, aquela fotografia na balança do parque, os hospitais onde ganhou e perdeu filhos, quilômetros de estantes com livros ilegíveis, o sangue enferrujando os ponteiros do relógio, e uma súbita nuvem de risos e de sorrisos antigos e mortos lhe apertando a garganta e a alma, agora. Decidida, lançou mentalmente, em tom de prece, sua maldição sobre o pênis incansável e odiento, que procurava encarar pela derradeira vez: iria secar em breve, secar e murchar, murchar e pender, inútil e indesejado por quem quer que fosse nascido de mulher, para desaparecer na mais tremenda solidão. Limpou-se do esperma e, contente, escondeu o lenço na bolsa.
6
Anunciou-se pêssego, e serviram a sobremesa. Devagar, que ninguém é de ferro, pensei. Mas esses ricaços aprontam cada uma! Eu tentava cortar no prato de porcelana um feto fóssil de cavalo. Notável, afora o tamanho aproximado ao do fruto e a classificação científica que lhe ornava — “Foetus Hyracotherion”; ant. “Foetus Eohippus” —, era o estar envolvido por um líqüido amniótico muito saboroso.
7
Na metade da quadra, notou o homenzinho rente ao meio-fio, quase na esquina. O estranho desenhava gestos no espaço com as mãos: tecia uma rede imaginária. Segurando numa das pontas, a agulha invisível na outra mão trançava os fios do espanto, pespontando. A cada enredilhado correspondia um puxão, para melhor fixar o entrelaçamento. Uma laçada, o empuxo, e um passo à frente, até chegar na outra extremidade, espetada na haste do muro. Uma laçada, o empuxão, e meia volta. A aranha drogada e louca dançava, construindo a teia perfeita. Suspendeu a rede com delicadeza à altura da cabeça, e passou por baixo.
8
Ele aparecia no restaurante sempre naquele horário. Terno com colete, sapatos brilhando, ligeiramente calvo, muito magro e alto, pouco, mas bem falante, leve inclinação da cabeça nos cumprimentos, suas abotoaduras de ouro reluziam no jantar. Aquele é que é o desembargador, confidenciou a empregada, minha tia. E só vem pela noite, duas ou três vezes por semana. A partir desse conhecimento acompanhei, na lateral do refeitório, os movimentos do inominado. Percebi, na quarta ou quinta vez, que o que lhe distinguia dos outros era mais do que a aparência mostrava. Aquela criatura engolia a refeição com lágrimas. Não que chorasse; mas chorava. Havia qualquer coisa, talvez aquém do nascimento, irremediavelmente grudada em sua alma. E as enormes abotoaduras refletiam o meu assombro ao longo da mesa onde douravam. Eu, menino, começava a adivinhar.
9
Dormia, a alma morta e o corpo gasto. A beira do leito se iluminou e uma voz lhe disse: segue-me. E denunciando o seu pensamento, completou: eu não vim chamar os justos, mas os pecadores. Trêmulo, levantou-se. Os demônios saltavam no dormitório e guinchavam. E o homem incendiado falou: roguei que viesse, num fervor e desespero tais, que ao menor aceno eu me converteria em lava, larva. De tanto clamar e exclamar esqueci o meu nome. Mas foi ele quem compareceu, citando trechos da Sagrada Escritura, assim, meigo, intenso e profundo. Na suposição de que fosse o Senhor, me entreguei. E me batizou, o seu súdito pintado, com gargalhadas, fezes, imprecações, rosários de sangue. Dobraram os sinos, Senhor; é inútil o pranto se a noite cai sobre a noite.
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O morto só consegue se comunicar, no máximo, quatro vezes por dia.
11
Pela manhã e à tarde, a coorte dos endinheirados, dos submissos, dos ladrões, dos velhacos e dos ignorantes encarnados. De noite, eles transpassam as paredes da casa, e o pesadelo persiste. Me abraço aos fantasmas da infância e choro nosso abandono. De madrugada, a alergia progride, a hemorróida me sangra a alma, os dentes apodrecidos confirmam dívidas que não poderei pagar. Ao adormecer, tartamudeio: vinde a mim o meu reino. E sonho:
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Dados os recentes acontecimentos no país, assinou-se decreto-lei com o seguinte teor: “Serão considerados legalmente mortos os que não respondam a convocação no prazo de 90 dias”. Como desviantes e anti-sociais, destacam-se, na lista anexada: alquimistas, prostitutas, acrobatas, santos, indígenas, astrólogos, inventores, bruxos, crianças, possessos, arlequins, sortistas, insolventes, visionários, precursores, delirantes, prestidigitadores, esquecidos, lunáticos, contorcionistas, amantes traídos, poetas, vagabundos, mágicos, alcoólatras, homossexuais, crentes, benzedores e velhos.
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Antuérpia — Os jornalistas acercaram-se, na tarde de ontem, da residência do promotor Julian van Hoeylandt, e ele, afligido, nervoso e embaraçado, asseverou que o barão belga foi encontrado morto, no lixo. E arrematou, aos gritos, que se faria justiça sobre o lixo; digo, sobre o barão do lixo; digo, sobre o belga barão; digo, sobre o luxo do barão; digo,
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O câncer levou uns seis meses comendo o seu amigo. A pele e os ossos e o rosto de paz jaziam na sala, à luz das velas. Mas os parentes, sedizentes amigos, vizinhos, colegas e conhecidos não lhe guardavam; descobriam-no, tardiamente. E postumamente se descobriam, nas suas faltas. Pranteavam-se, descabelados. Ele, lá fora, num canto do muro, cigarro na boca e mãos nos bolsos, sorria. Fizera tudo pelo morto, ciente de que lhe seria arrancado da companhia, hoje ou amanhã, desde a infância comum. Aprendera a perdê-lo na medida em que lhe ganhava; e a perder-se enquanto se dava. No convívio com a morte, sua e de todos, essa calma e essa dignidade traziam inegável mal-estar aos que, fervendo e se refervendo, não suportavam a vida. Simples reflexo do sol na janela, aquela face alegre, ou alguém ria no quarto dos fundos?
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Era intolerável. Resolveu pôr fim a uma obsessão. Com o melhor em matéria de mulheres arrancadas de revistas, rumou para o pátio e riscou o fósforo na história ilustrada das suas masturbações. Em minutos, décadas de fixações eróticas ardiam estilos numa silente convulsão. O fogo esvaziava os olhares mais provocantes, ondulando coxas, meias e seios com fragmentações de calcinhas em línguas flamantes. Mortas agora, ou esquecidas anciãs, ou jovens deformadas pela obesidade, desprezadas por todos os fotógrafos, viam, passivamente, suas tentadoras bundas estourando nas chamas. E o vento unia e desfolhava esses corpos, remexendo tesões carbonizados. As labaredas de um ânus colavam-se em espelhos, camas e lençóis sobrecarregados de segredos. Com um desabafo, reparou no meio das cinzas uma última boca — ansiosa, louca e retorcida — perseguindo um pênis incinerado.
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Feito de inconfissões, temores e amarguras, o outro adquiriu autonomia. Desliga-se de mim quando quer e faz o que bem entende. Comportava-se como um amigo de quem eu perdera a amizade, sem se mostrar inimigo declarado. Se intrometia nos meus transes, perturbando os espíritos dos vivos e dos mortos; triunfou ao distrair os meus dedicados e atônitos guias com baboseiras. Ultimamente, interfere nos sonhos, substituindo paisagens magníficas por víboras e aranhas, górgonas, água estagnada, anjos mutilados, abismos movediços. Se eu permitir maiores avanços, pintando e bordando, ele me arruinará. Bloqueio? Ontem, quis deixá-lo em definitivo nas mais obscuras regiões, e insinuei que as mulheres dessas paragens são facílimas de comer pela ausência de corpo. Não se iludiu. Exasperado, rosnando, arrebanhou dezenas de seres grotescos para me impedir o retorno. Cedi e regressei, os pulmões sem ar. Só não o estrangulei por temer a reação dos que seduziu. Ele se fortifica com minhas fraquezas, sua origem. Será que se apavora e some se eu me suicido?
17
Com a boca na cona, perguntou por perguntar: a minha barba está picante? Ela respondeu, respondidamente: não, a tua pica é que virou barbante.
18
Ele pede licença e ingressa no escritório. Lento e calmo, ultrapassa lateralmente minha cadeira. Indago o que quer, para lhe servir, e sinto a punhalada no pescoço. E outra, e mais outra, e novos golpes, e outros e outros que se sucedem em ritmo veloz, incessantes, inclementes. Grito, a lâmina na cabeça, no peito, nas costas, nem sei se ele me ataca por detrás para a frente, ou se diante de mim, e afundo com o grito num cheiro adocicado, o sangue nos desenhos da carne retalhada. Numa passagem estreita e longa, ando com bastante aprumo, calmo, lento. Há uma pessoa sentada nas proximidades de u’a mesa. ¿Com licença? E entro, sem aguardar autorização. O meu olhar é de amigo: uma faca na mão direita; e ódio no coração.
19
Manuscrito grampeado na página 157 de um exemplar de Rationale divinorum officiorum (Nápoles, 1839), de Gulielmus Durandus, que comprei na Feira dos Livros Usados, em Curitiba. As letras, apertadas e miúdas, não revelam desesperação. Na folha, o tempo apagou algumas palavras, e o final do texto, ininteligível, teve um pedaço rasgado. Transcrevo: “Ouvido antes dele sair: Quer se livrar de mim, não é? Pare, de vez, com essas orações fracas, pálidas, ridículas, ou lhe transmutarei num gomo de laranja, numa casca de ferida, num nó de corda (…) Não me aborreça com essas preces falsas e mendigantes, súplicas sonolentas e oblíquas, pretensamente elevadas, semostrantes. Um segundo, fracionado de minha maligna eternidade, contém mais pecaminosidades do que um imbecil como você praticaria, com o meu auxílio direto, em todas as suas encarnações. Não se deboche e nem me insulte concebendo-se roído de vícios. Viva a vida e seja. Até aqui, você não passa de um oportunista ordinário, simulando ser justo e pecador. (…) abatido e despojado, gravitando na abulia (…) o pai não julga o filho (…) deserto (…) daimones ta epoyrania (…)”.
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Todos seriam capazes de jurar que o dançarino morrera. Afinal, quantos e quantos viram o seu corpo imobilizado recebendo visitas na horizontal, pela madrugada, o caixão na sala, esparadrapo nos maxilares, algodão nas narinas, rosário nas mãos, morto, morto, e o seu sepultamento, e os amigos retornando abatidos do cemitério naquele entardecer, o sol enroscado nas pontas das árvores. Todos seriam capazes de jurar que o dançarino morrera; que morrera e fora enterrado. Mas também muitos e muitos queriam a eterna danação de suas almas se mentissem: logo ao enterro, o bailarino, pés descalços, evolucionava nas quadras, com movimentos fantásticos, inadivinháveis. Corpo, rosto e membros ampliavam-se exaltando o amor, o heroísmo, o desejo, a compaixão, o encantamento, o medo, o desgosto, a cólera e a paz, sob a luz lunar. Num pulo em câmera-lenta, venceu o muro e ganhou as ruas da cidade, misturando-se com a multidão.
21
Os vermes da putrefação (alguns atingem um metro de comprimento e coleiam, enguias) não causam nenhum malefício se você se aquietar, imóvel, cadáver.
22
Cega, o corpo feridento, desenganada, e insistia em viver. Comparei mamãe a um minúsculo sol debilitado teimando em varrer as trevas. Breve, a luz frouxa e mínima, incapaz de resistir ao grosso tecido da escuridão, se fecharia num negror compacto. Noutro dia suas feridas amanheceram borboletas, voando às centenas pelo matagal da casa derruída. Procurei desesperadamente por mamãe, e só fui encontrá-la num sonho da semana seguinte: passava roupa no paiol, assobiando a música do rádio de pilha, no seu magno estilo. Tinha 31 anos de idade; e eu deplorava a minha velhice.
23
Perfilados defronte das bandeiras de seus países, os Presidentes da França e dos Estados Unidos, e suas mulheres, esperavam a execução de música especialmente composta. Todavia, quebrando o protocolo e rompendo o esquema de segurança, e sem que o grupo se desfizesse, um alegre marinheiro gigante (2 metros e 40 centímetros) saiu de forma, arqueou-se e de um golpe colocou os casais nos joelhos. Muito garboso, sob o aplauso da multidão, Popeye os elevou até o rosto, sendo beijado pelos quatro. O maestro, emocionado, trocou as partituras e deu início ao hino nacional da República da Guatemala.
24
O pássaro maior largou de minha cabeça, por cima, desembrulhando um pano fétido, pegajoso, e os menores, seis ou sete, também desertaram. Os coitados nem sabiam voar; arrastavam-se no assoalho, piando, dolorosamente.
25
No aguardo de todos, a figura de sombra e de silêncio se recorta contra o horizonte: o olho desgarrado contemplando-se de chicote em punho.
26
No princípio você ouve algo assemelhado ao vôo de mil abelhas. Após uns meses, perceberá que o ruído é igual ao das batidas de asas de passarinhos voando juntos, em formação. Por derradeiro, discernirá: mãos que se esfregam ou luminosas pedras esbranquiçadas que se atritam no ar, um ou dois metros acima da cama. Nessa etapa, se você persistir no erro, estará espiritualmente liquidado, e nunca mais poderá fingir quando, onde, como e por que perdeu a alma.
27
Se disser sim às maquinações do pesadelo, pouco se rasgando para os seus monstros, ele se exaure como proposta horrorífica. Mas o diabo, excelente arquiteto e cenarista, pula de quatro do predicado ao pecado. Cuide-se: numa dessas, o fecho de um mau sonho será a infinita abertura de outro, serpente mordendo a cauda. Em caso de dúvida, verifique se a pele do interlocutor é rugosa, áspera, lixenta, e/ou se irradia calor excessivo ou frio grudento.
28
A polícia forneceu a explicação racional para o desaparecimento da maior parte do corpo do magistrado: provavelmente, cochilou no gabinete de trabalho e foi atacado pelos milhares de processos furiosos atendendo ao apelo das almas dos litigiantes. Da fome exasperada restaram a cabeça (menos os olhos), os pés e o paletó do pijama.
29
Voar é fácil: chegou a hora você se desloca no espaço, e sem sair do leito. Difícil é o transpor, nesse vôo, paredões de aço e de concreto armado.
30
O representante do governo avistou-se com o porta-voz dos fora-da-lei, e fez ver que se os peculatários, traficantes de drogas, agiotas, bicheiros, chantagistas, torturadores, contrabandistas, assaltantes, exterminadores de índios, e outros, cessassem abruptamente as atividades, nos termos da prometida greve geral, estariam, quando menos, criando sério precedente com essa falta de patriotismo: o desemprego subitâneo de milhões de pessoas acarretaria a insegurança completa de seus familiares e dependentes, levando a crise ao limite do insustentável. Informado de que nenhum desses setores pretendia tumultuar a nação, pois continuariam ocupados democraticamente com suas espinhosas tarefas, o delegado governamental soube que o incentivo às escolas de samba não seria suspenso. E mais: intensificariam a cobertura financeira para a campanha de políticos situacionistas e oposicionistas. Ato contínuo, condecorou aquele emissário com a principal comenda do reino, tirada de um estojo cinzento. O grafito “À uma da tarde, Excelências”, madrugou nos muros e nas ruas dos palácios.
31
Os olhos no chão, a sentença me condenou a desafixar minhas máscaras, por todos os dias que me restem. E as invisíveis argolas costuradas nos pés?
32
Se não ocorreu na Escola de Química, aconteceu num dos bares das imediações. O mestre discursou: se estamos aqui, é porque queremos, e se somos tão amigos como realmente o somos, então vamos deixar nossas preocupações e plantar o verbo permanecer aqui mesmo, desobedecendo obrigações temporais, familiares, profissionais. Com o copo de cerveja, brindou à mesa vazia.
33
À margem da rotação adequada, o fantasma da moça desligou-se do disco, girando e se debatendo no meio da música. Entretecida em sons rastejados, amargos, descadenciados, moles, os gemidos vieram pelo corredor, a cabeleira negra flutua, o chão no ensaio dos pés, aflitivamente. No ar, as mãos em volta do pescoço, as mãos em volta, as mãos. Ela sufocava e estremecia. Esvaeceu ao lhe ordenar que se acalmasse, me balançando a cabeça, os olhos horrorizados. O detalhe das mãos, das mãos em volta, das mãos em volta do pescoço, despertou a mocinha pianista que nos encantava no campo de concentração de Belzec: com paciência extrema examinei longas, finas e esbranquiçadas mãos em centenas de velhas fotografias. É possível que seja a professorinha de Flossenburg. Ou, por causa dos olhos arregalados, uma daquelas três irmãs estupradas em Theresienstadt.
34
Na sua lucidez, não queria morrer, tão curta e sofrida fora a vida; a agonia indicava que a morte seria justa. Chorava, temendo o escuro. E eu atrás de sóis, para nós dois.
35
Quis falar, mas escorregou na própria morte e a voz lhe escoltou na queda. Os sobreviventes, em torno do tabuleiro de xadrez, certamente recordarão de todas as mudanças das peças pelas casas, com indiferença e um ou outro abalo. E quanto a você, o jogador bandeado, a sua imagem se adensará nas sombras dos peões, sob as patas dos animais, nos olhos cruéis dos bispos, nos desvãos das torres, nas chagas do rei e nas dobras dos vestidos da rainha.
36
Nem sei o nome do velho. Era uma tocha de febre incendiando o leito do hospital. A gangrena consumiu suas pernas, pacientemente. Fui vê-lo em atenção ao convite de sua filha. Lábios, seios, joelhos, reclamando amor. Na penumbra, ele se torcia no sono entrecortado de roncos misturados a peidos homéricos, palavrões, miragens, cenas de infância, orações fracionadas. E nossas carnes inflamavam num pequeno sofá, na orla desse mar de dor e desintegração, corpos esfomeados, línguas lúbricas; inferno e paraíso. O pai, no caminho terminal da grande viagem, se debate com as fúrias e recua, rasgando ondas de dissolução, a ofegar e a transpirar, revira os olhos, aquele peixe me comeu um pedaço do pé e fugiu com a pele dos meus dentes meu Deus do céu não deixem que a dor volte um polvo é um polvo o meu pé pelo amor de Cristo algas marinhas puta que o pariu. No enfermo, estendido em repentina e muda calmaria, antevi minha mãe velhinha reduzida a escombros. Afastei a cortina e o sol nascente invadiu o compartimento. Ela se espreguiçava, me olhando. Eu brincava na praia, os rugidos ameaçadores.
37
No auge da criação, o pistonista fez o instrumento vibrar a nota inatingível. Vieram os enfermeiros. Numa camisa-de-força, instou, sem comover nenhum deles, que não o apartassem do pistom. Três ou quatro minutos da partida da ambulância, sirena ligada, a nota inatingível ressoava no quarteirão.
38
Imitava a voz de Orson Welles frente ao espelho. A penúltima página do livreto de poemas tem graves erros de impressão. O amigo que espere. E a empregada não vai limpar a merda do cachorro? A mãe mandou eu arrumar a lâmpada da máquina de costura, e fazer compra no negócio. Perdi muito tempo, tempo demais, me joguei fora, tantas bobagens aprendidas na igreja. Irei fazer as compras, e não sinta vergonha dos outros porque trago bichos para casa. Já estou indo, mãe.
39
A algazarra me amolou toda a noite. Afiado, deixei a tapera onde moro. No sítio lindeiro, cães acorrentados me anunciaram. O que descortinei na reentrância da fogueira esmagava qualquer fantasia: homens e mulheres, exaustos e semi-nus, espalhados ao derredor, comendo carne crua em cochos. Interpelei um deles. Rindo de minha “excentricidade ou distração”, indagou: há quanto não assiste a um casamento? Hoje, os pretendentes vestem-se de luto (terno, camisa, sapatos, vestido, véu e grinalda), e executam-se músicas fúnebres na cerimônia nupcial. O noivo deve possuir a noiva em cima das gamelas, e os convidados apostam se ela resistirá. A seguir, a mulher é comida pelos padrinhos; os outros interessados pagam ao marido. As virgens, pela raridade, custam lances caríssimos. Predomina o coito anal. Último estágio da comilança, distribui-se a carne, com o tempero de suor, esperma e sangue. Discordou, educadamente, fossem coisas de gente rica: forma de subsistência da instituição do matrimônio, verificável em todos os segmentos da sociedade. O estilo dos pobres amplifica a violência: a mulher acaba imprestável para a vida conjugal, se não morre nesse primeiro dia. Solidário com a minha condição de eremita, prometeu menos ruídos nas comemorações futuras. Em casa, ao abrir a porta da biblioteca, um livro levitava no centro: A missa: sacrifício latrêutico, de Gelb-Dalamatt (Roterdã, 1940), com as 848 páginas a um palmo do chão.
40
Aflorando no mar, nadadeiras de tubarões, três, vinte, cinqüenta, na altura do teto. Pior do que esses mergulhos ferozes até o cobertor, é ouvir a musiquinha Oh! Rosa Maria num andamento de lentidão lamentosa: a noite está fria, levante-se da cadeira e vamos soltar balões. Aqueles animais lhe estraçalharam no quarto de dormir. Se os balões subirem, serão apagados pelas ondas, lá em cima. Ou rasgados pelos tubarões. Ou incendiarão a roupa da cama. A desgraçada noite fria enregelou Rosa Maria; nem o seu espectro se erguerá da cadeira. Quem me ajuda a salvar Rosa Maria do mar, dos tubarões, de mim e dos balões?