…chove em nossas mãos
nuas,
Em nossas vestes
leves,
no frescor dos pensamentos
que a alma descerra
nova
na lenda bela
a iludir-te ontem
a iludir-me hoje
ó Hermíone
(A chuva no pinhal, de Gabriele D’Annunzio, traduzido por Maria José de Carvalho)
para R.A.F, passamos sob a leoa
Eu sou Hermíone, neta de Zeus Tonitruante, e de Leda, a bela mortal que levou o Senhor dos deuses, Aquele que É, a vestir plumas de portentoso cisne para penetrar-lhe o sexo e fecundar-lhe o ventre. Meu lado paterno, embora humano, eternizou-se pelo desmesurado de sua trágica saga, tecida por traições, adultérios, canibalismo, assassinatos, tinta de sangue: sou neta de Atreu, soberano de Argos e de Micenas, descendente de Tântalo, aquele que ao servir a carne do próprio filho no Olimpo, para testar a onisciência dos Divinos, lançou a maldição sobre a desventurada prole dos atridas.
Nasci princesa, filha de Menelau, rei de Esparta. Findarei meus dias unindo as coroas de meus antepassados, estendendo meu jugo tanto sobre a Argólida como sobre a Lacônia, governando suas riquezas e almas. Descarto, porém, a importância desses eventos. O que só me importa é o que eu confessarei agora: eu, Hermíone, sou filha de Helena, mulher de Menelau, eternizada como Helena de Tróia e louvada como a mulher mais linda da História. Helena de Tróia, o fruto daquele ovo divino gerado por Zeus, quando deitou suas brancas asas sobre os seios surpresos da humana Leda e deu livre curso a Sua glória.
Em verdade, sou a sombra da beleza de Helena, minha mãe. Por um paradoxo — pois ela me antecedeu —, sou o rascunho do traço perfeito, o esboço da obra-prima, a tentativa. Sou a parte descartada de Helena, a menina de nove anos que ela deixou para trás, em sua troca das tacanhas terras de Esparta pelas outras da cosmopolita Tróia, onde seu jovem amante, Páris, era filho do rei. Helena sempre se indagou o que fazia a formosa entre as formosas em um reino tão provinciano.
Em Esparta, na falta de bons portos, criava-se gado e cultivavam-se videiras e oliveiras. Tróia, ao contrário, era uma jóia engastada nas costas da Ásia Menor, com muito mais ouro do que os cofres de um ogre. E, muito além do ouro, havia o comércio com o Oriente controlado por Tróia e a adoção pelos troianos de um fausto quase oriental, expresso nos adereços de nácar, coral e lápis-lazúli, nas especiarias olorosas de todos os cantos, nas essências da Pérsia e no jade da China.
À voz pequena diz-se que Helena era protegida de Afrodite. Há a velha lenda, todos sabem, segunda a qual Páris, em face de Hera, Atena e Afrodite, incitado a julgar qual a mais bela, teria sufragado em favor desta última, depois de ela prometer-lhe o amor da mais linda mulher do mundo. Cumprindo sua promessa, Afrodite teria acobertado o rapto de Helena. Eu afirmo: tolices. Com toda a sabedoria olímpica, seriam Hera e Atena tão ingênuas para cair nessa armadilha?
A versão do rapto foi um arranjo precário montado por Menelau, meu pai, a fim de justificar para si próprio a traição de minha mãe e de mobilizar seus seguidores para o saque a Tróia. Mamãe urdiu sua fuga em detalhes. Aguardou uma das saídas de meu pai de Esparta, e isso ocorreu quando ele foi para Creta, para os funerais do rei, seu avô materno. Organizou, então, seu séqüito de escravos, recuperou seu minguado dote de jóias, surrupiou uma farta porção dos tesouros de Menelau e embarcou no barco de Páris, singrando o Egeu em direção a Tróia. Sim, ela ainda teve tempo de confiar-me a um mensageiro com as instruções de conduzir-me a sua irmã, Clitemnestra, casada com o rei Agamenon, de Micenas, coincidentemente irmão de Menelau.
Ninguém no gozo de juízo recomendaria alguém aos cuidados da mansão dos atridas. Não tendo aprendido com os abusos de Tântalo, seu sucessor, Atreu, meu avô, repetiu o disparate de oferecer a seu irmão, Tieste, a carne dos três filhos deste último, depois de descobrir que, além de ser enganado pela mulher com o irmão, o casal de amantes tramava usurpar-lhe o trono. Tieste, enlouquecido, abandonou Micenas e, seguindo os conselhos de um oráculo, uniu-se à filha, Pelópia, com quem teve uma criança. Em seguida, despachou Pelópia para Micenas, onde ela, sob ordens paternas, seduziria o rei, seu tio Atreu. Esse é apenas um dos capítulos da crônica funesta da minha gente, os atridas, aninhados sobre as pedras de Micenas, para onde minha mãe indicou que me levassem.
Com isso, talvez ela estivesse apenas antecipando meu destino. Desde o berço, eu estava destinada a ser mais uma engrenagem nessa machina fatalis, na qualidade de prometida a Orestes, meu primo, filho de meus tios Clitemnestra e Agamenon. Minha tia adiou minha ida a Micenas, tendo a delicadeza de deixar-me aos cuidados de Tíndaro, outro de meus avós, com que Leda era casada, o álibi mortal para a progenitura celeste de Helena.
Foram dos lábios de minha avó Leda que saíram os detalhes da extraordinária concepção de minha mãe. Descendente de Eólio, rei dos ventos, minha avó casara-se com Tíndaro, que conquistara o trono de Esparta graças à ajuda de seu amigo Hércules. Leda, apesar de bonita, não freqüentava os festins oferecidos pelo marido, dedicando-se ao tear e à casa. Sua única diversão era banhar-se nas águas claras do rio Eurotas. Foi no decorrer de um de seus banhos que Zeus, o Poderoso, lançou do alto das nuvens seus olhos e seu desejo em direção a ela. De pronto transformado em cisne, Zeus voou para a Terra e, rufando as asas, atraiu a atenção de Leda. Esta, vendo-o aproximar-se, acariciou-lhe as penas. Inflou-se, então, o emplumado esplendor, derramando toda sua alvura inclemente por entre as coxas de Leda. Pelo tremor dos quadris, percebeu que ali concebera.
De volta ao palácio, úmida e iluminada pelo divino enlace, acendeu o desejo urgente do esposo, que no mesmo momento a tomou entre os braços, possuindo-a seguidas vezes. Nove meses depois, minha avó deu à luz dois casais de gêmeos, um divino — Helena e Castor — e outro humano — Clitemnestra e Pólux. Tudo isso ela me segredava com orgulho, enquanto tecíamos, esperando o tempo passar. Embora sua figura fosse ainda agradável, seu rosto tornava-se progressivamente flácido, sua pele gradativamente sem lustro e seus seios não apontavam mais para as nuvens onde, durante um entardecer de verão distante, haviam despertado a luxúria do mais excelso dos amantes. Foi observando as transformações em minha avó que consegui entender o que havia de terrível na beleza de minha mãe, Helena.
Minha mãe era imune aos estragos da vida e do tempo. A distância dela e a companhia diária de minha avó, testemunhando-lhe o declínio, trouxeram-me essa consciência. Recordei que ao lado de Páris, recém-saído da adolescência, Helena, com sua beleza luzente, era sua igual. E mais: não obstante o fato de ter servido de mulher a Menelau por quinze anos e de ter me trazido à luz, recuperara todas as armas da surpresa e do mistério, oferecendo-se naturalmente intacta a seu novíssimo amante.
Não preciso repassar todos os horrores que se desenrolaram após sua fuga. O marido enganado, com ajuda do irmão, Agamenon — meu tio —, organizou a coalizão de senhores e de heróis que marcharam contra Tróia. Após dez anos de combates, um sem número de mortes, um infinito de dor e de destruição, papai recuperou mamãe. Talvez ela, ao embarcar na nau capitânia da esquadra espartana, tenha escutado os brados de Hécuba, rainha desditada da extinta Tróia, a reverberar no ar fumegante dos escombros de seu reino incendiado:
— Pueril Helena, inconseqüente Helena, só por seus erros mães troianas perderam seus filhos, mortos na defesa de Tróia! E há espaço nesse meu clamor às queixas distantes das mães dos aqueus, trucidados longe de suas terras, e ao pranto pelo agouro das mulheres de Tróia, partilhadas entre os soldados como parte menor do butim de guerra. Retorna agora, insensível Helena, indiferente Helena, para os braços de seu marido traído, Menelau.
A tripulação estava certa de que, para resgatar sua honra, Menelau sacrificaria Helena. Entretanto, desde o instante que o agora alquebrado rei avistara a adúltera, todo seu corpo se vergara sob o peso da excitação. Foi suficiente partilharem o leito uma noite para que a embarcação de Menelau se desgarrasse do comboio no alvorecer seguinte, tomando direção oposta, levando o casal reconciliado para uma vida nova, no norte da África, em Alexandria.
Não se enganem, eu não presenciei esse reencontro. Pode ser que uma ou outra cerâmica retrate de modo patético tal fabularia: um velho impotente, se não fossem as artes magistrais de sua semidivina esposa, congraçando-se com a filha moça, cuja idade em aparência é a mesma da mãe. Isso não passa de artes de oleiro…
A verdade é a que aqui conto, próxima ao término dessas minhas confissões. Creiam em minhas palavras, porque apesar de eu proferi-las agora, como soberana, é com a voz daquela criança lançada ao desconsolo dos corredores de um palácio espartano. Quem fala é a pegada de Helena, a batida do portão às suas costas, no dia em que me abandonou sem olhar para trás.
Eu completara dezenove anos quando a guerra acabou. Apesar de ter sido dada em casamento, ao nascer, a meu primo Orestes, herdeiro de Argos e de Micenas, durante as batalhas meu pai me prometera a Pirro, filho de Aquiles. Acontece que, como contado em detalhes na tragédia que leva o nome de minha tia, Clitemnestra, esta irá assassinar meu tio, Agamenon, a golpes de machado, quando ele retornar de Tróia. Clitemnestra nunca perdoou o marido por ele ter sacrificado Ifigênia, a filha do casal, para obter ventos favoráveis na expedição contra Tróia. A Orestes caberá vingar esse crime, matando a mãe. Após o matricídio, Orestes passou a ser atormentado pelas vozes terríveis do arrependimento e da culpa, que o levaram à loucura.
Em procura de alívio, Orestes dirigiu-se a Delfos, onde, além do oráculo, se honrava Apolo, que na realidade o incitara a matar Clitemnestra. Por influência de Apolo, Atena absolveu Orestes do hediondo crime. O destino fez com que Orestes me encontrasse em Delfos, para onde eu havia viajado na companhia de meu primeiro marido, Pirro, que também atendia pelo nome de Neoptólemo.
Pirro, que de início aceitara minha mão, apaixonara-se por Andrômeda, viúva do bravo Heitor, herdeiro de Príamo, rei de Tróia; ele era incapaz de pousar seus olhos em qualquer outra mulher, ainda que essa fosse eu, senhora de reinos tão extensos e ricos. O mais doloroso nesse complô é que eu, filha de Helena, a bela de todas as belas, estava sendo preterida por uma simples presa de guerra. Com a morte dos filhos de Heitor e Andrômeda pelas mãos do próprio Pirro, a estirpe de Príamo estava extinta, e Andrômeda, como todas as troianas, doravante era uma escrava.
Em face do repúdio estúpido de Pirro, decidi matá-lo e para isso vali-me do braço de Orestes. Aproximei-me de meu primo e, invocando o eco daquelas vozes que ele continuava a escutar, apesar da absolvição de Atena, lembrei-lhe de que éramos prometidos desde o nascimento. Após Orestes apunhalar Pirro junto ao oráculo de Delfos — o onfalo, o umbigo do mundo —, lavamos nossas mãos nas águas frias da fonte Castália e tomamos o caminho de casa, sem ao menos pedir a Pítia que interferisse em nosso fado infeliz.
Na volta de Delfos, tive notícias de Alexandria. De acordo com elas, a cada encontro de meus pais, as energias da lascívia liberadas por meu velho pai e seu agora potente círio, miraculosamente aceso pelos secretos artifícios de minha mãe Helena, faziam o céu relampejar em espasmos e o firmamento ejacular em eclosões de estrelas. Sentindo-se ameaçados na estabilidade de seus tronos celestiais, os Imortais providenciaram que Menelau fosse encaminhado à Ilha dos Bem Aventurados, onde seria servido por um séqüito de cortesãs até o final dos tempos. Quanto a minha mãe, foi encaminhada para a Leuce, ou Ilha Branca, como dádiva especial para Achiles, que ali morava depois de morto, transportado pela mãe, a todo poderosa nereida Tétis. Achiles, o indômito guerreiro, havia sido abatido pelo arco de Páris, no sopé dos muros de Tróia, fechando-se assim o ciclo dos amores de minha mãe, como uma serpente engolindo o rabo.
Essas são as minhas palavras ao chegar a Micenas e atravessar o grande portal coroado pela loba inscrita em pedra. Cumprirei o papel de rainha da forma que todos esperam que eu cumpra. Não uma rainha qualquer, mas uma cabeça coroada em cujas veias corre o sangue enjeitado pela bela Helena e aquele maldito da casa de Atreu. Lanço meu olhar para a terra calcinada pela inclemência do Sol e para a muralha que a cerca, construída com pedras de talhe inumano. Com efeito, dizem que foi erigida por gigantes, a mando de Perseu, senhor dessa região, em sua origem. Ignoro Orestes que delira a meu lado. Antes de colocar meus pés no palácio, decido que não terei filhos.