O escritor e as presidiárias (final)

Os textos falam do presídio, mesmo quando não fazem isso diretamente
O poeta português Herberto Helder
01/12/2012

A moça fortona e toda tatuada já não inspira tanto medo. Ela poderia me dobrar facilmente ao meio, se quisesse. Poderia me nocautear com o mindinho. Mas sua fala é tão sossegada, tão amistosa…

Essa senhora ao seu lado. Essa velhinha… Que grande mal teria feito pra estar aqui? Ela e as outras velhinhas do grupo…

Os textos falam do presídio. Mesmo quando não fazem isso diretamente, é fácil ver as celas, o pátio, as amizades e as brigas no centro da página e da leitura.

A partir de agora eu sei. Nos próximos encontros, não importará muito se o exercício for a partir de um poema de Drummond sobre a chuva, de uma crônica de Clarice sobre as folhas, de um curta-metragem de animação sobre a passagem do tempo, de um poema de Bandeira sobre a infância. Não importa.

Elas sempre escreverão sobre o presídio.

Sobre como vieram parar aqui.

Sobre o que farão quando sair daqui.

A partir do início do segundo encontro, o processo de diferenciação vai ficando mais intenso. Os nomes começam a ganhar identidade própria. A máxima “de perto ninguém é normal”, de Caetano Veloso, vai revelando sua verdade absoluta.

Sempre que viajo é como se eu chegasse à mesmíssima cidade. Não faz diferença se vou de ônibus, avião, trem ou navio. O destino geográfico não muda.

É sempre a mesma cidade de plástico, genérica, habitada por estátuas de cera, todas muito parecidas.

Mas com o passar das horas e dos dias, o plástico começa a ganhar cor e textura próprias. As estátuas de cera vão revelando sua individualidade, sua humanidade, e a cidade genérica se particulariza.

Gosto de observar atentamente esse fenômeno sensorial. Gosto de flagrar o momento exato em que a grande massa luminosa, homogênea e branca, silenciosa, inodora e insípida, começa a se fragmentar numa infinidade de pontos coloridos e ruidosos, cheirosos e saborosos.

Com as presidiárias esse processo de individualização começou rápido. Já no início do segundo encontro o que era estranho torna-se gradualmente familiar.

Nomes particulares colam em rostos, vozes e histórias diferentes. Cada detenta é agora um mundo autônomo.

Zenaide, Analice, Beatriz, Geralda, Jacira, Laura, Adelina, Luzia, Suelen, Zilda, Mirela, Dalva, Faustina, Constança, Kelly, Camilla, Tainá, Ludovica, Yolanda e Pilar.

Eu precisaria de páginas e mais páginas pra descrever adequadamente cada uma: a fortona fleumática e delicada, a magrinha introvertida e contemplativa, a gordinha histriônica e articulada, a altona extrovertida e maternal, a baixinha sarcástica e ansiosa, a velhinha nostálgica e lacrimosa…

Surge, então, certa intimidade entre nós. Devagar, a zona de desconforto vai ficando bastante confortável. Isso é perigosíssimo. Se por um lado a intimidade torna o ambiente menos estressante, por outro ela abre grandes portões no muro protocolar que separa formalmente o oficineiro das oficinandas.

Por esses portões podem passar camaradagem e confidências. Mas também intrigas e ressentimentos, pondo tudo a perder.

Em minhas oficinas convencionais eu passo o tempo todo provocando os oficinandos. Afinal, escritores em início de carreira precisam de alguém que arranhe suas convicções.

Poemas de Herberto Helder e minicontos de Quim Monzó sempre rendem exercícios bastante inquietantes.

O mesmo pode ser dito dos curtas-metragens de animação Ring of fire, de Andreas Hykade, e Repete, de Michaela Pavlatova, imbatíveis.

Mas o exercício de que mais gosto, o mais lírico e aflitivo de todos, o que fere mais fundo a sensibilidade poética de iniciantes e veteranos, baseia-se no primoroso curta de Michael Dudok de Wit, Father and daughter.

Esses poemas, minicontos e curtas-metragens são pequenas bombas desestabilizadoras. A onda de calor e os estilhaços obrigam os oficinandos a desligar o piloto automático e enfrentar nossas perversões mais evidentes.

São artefatos explosivos que falam de certos tabus: morte, solidão, medo, desejo, delírio, violência, sexo.

Porém, nesse país distante e absolutamente estranho — o presídio — eu não podia entrar, de jeito algum, com uma sacola cheia de granadas discursivas.

(Além do mais, eu não passaria no detector de metais perigosos. Sempre tive problema com esses aparelhos. Nos aeroportos, eles me intimidam. Meu rosto muda, minhas mãos tremem. Meu passaporte falsifica-se. Transformo-me num terrorista tentando passar armas e planos de assassinato.)

Não. Nada de tentar contrabandear pra sala de aula as granadas discursivas. Do contrário, o feitiço se voltaria contra o feiticeiro e a única cabeça explodida seria a minha.

O bom senso ordenou que eu deixasse de fora de nossos encontros qualquer exercício que invocasse o lado sombrio do ser humano e da natureza.

Mesmo que isso significasse alijar a oficina de sua melhor carga, eu não podia me arriscar. Não, nada de morte, solidão, medo, desejo, delírio, violência, sexo.

Essa estratégia funcionou até certo ponto. Durante dois encontros eu consegui manter as detentas longe das reclamações e dos ressentimentos.

Então, com a convivência e a intimidade, com a diferenciação subjetiva e a fixação dos nomes, as coisas começam a mudar.

No início do último encontro eu passo a elas um breve texto. Um anúncio classificado de Clarice Lispector.

“Precisa-se
Sendo este um jornal por excelência, e por excelência dos precisa-se e oferece-se, vou pôr um anúncio em negrito: precisa-se de alguém, homem ou mulher, que ajude uma pessoa a ficar contente, porque esta está tão contente que não pode ficar sozinha com a alegria, e precisa reparti-la. Paga-se extraordinariamente bem: minuto por minuto, paga-se com a própria alegria. É urgente, pois a alegria dessa pessoa é fugaz como estrelas cadentes, que até parece que só se as viu depois que tombaram. Precisa-se urgentemente antes da noite cair, porque a noite é muito perigosa e nenhuma ajuda é possível e fica tarde demais. Essa pessoa que atenda ao anúncio só tem folga depois que passa o horror do domingo que fere. Não faz mal que venha uma pessoa triste, porque a alegria que se dá é tão grande que se tem que a repartir antes que se transforme em drama. Implora-se também que venha, implora-se com a humildade da alegria-sem-motivo. Em troca, oferece-se também uma casa com todas as luzes acesas como numa festa de bailarinos. Dá-se o direito de dispor da copa e da cozinha, e da sala de estar.

P.S.: Não se precisa de prática. E se pede desculpa por estar num anúncio a dilacerar os outros. Mas juro que há em meu rosto sério uma alegria até mesmo divina para dar.”

Após a leitura — Aracy Balabanian gravou um ótimo CD com as melhores crônicas de Clarice —, peço a minhas oficinandas que escrevam um anúncio classificado semelhante.

Aí está o exercício mais longo da oficina. Não porque seja muito difícil, mas porque logo começa uma conversinha que em segundos evolui para uma tagarelada incontrolável.

Muito mais do que escrever, todas querem falar, falar, falar, até as mais reservadas. O coletivo quer dividir com o oficineiro, esse visitante de uma galáxia distante, suas piores experiências dentro e fora da prisão.

Por sorte, a maior parte das presidiárias faz isso com muito bom humor. O riso da maioria abafa a lamentação da minoria.

Não tem jeito. Tenho que deixar rodar esse carrossel desembestado.

Sobre o que tagarelam?

Lembro de histórias sobre a rotina degradada da prisão. Sobre rebeliões, rivalidades, malandragens, deslealdades. História puxa história. Todas querem falar. Lembro de anedotas sobre filhos, antigas patroas e pequenos furtos. Também sobre superstições: as celas e os corredores mal-assombrados. Também sobre os ratos da prisão: criaturas gordas e atrevidas como gatos. Também sobre a saudade dos entes queridos, da liberdade perdida.

O Precisa-se de Clarice rende um momento intenso, catártico. Que depois rende um punhado de outros precisa-se, agora por escrito.

Luiz Bras

É escritor. Autor de Sozinho no deserto extremo e Paraíso líquido, entre outros.

Rascunho