Abismo infindável

Em “As ostras estão morrendo” sobressai a prosa elegante e melancólica de Walmir Ayala
Walmir Ayala, autor de “As ostras estão morrendo”
01/04/2008

A maioria das editoras tem seus olhares voltados às novidades, contam com um sábio que decreta o que vende e o que não vende. São esses exemplos de cultura literária que pariram a Bruna Surfistinha. Mas não se desespere, ó leitor imbecilizado pelas artimanhas das editoras, logo chegará às livrarias o título que dará o pontapé inicial, se bem que no caso creio que coice seja mais apropriado, à carreira da “grande” Andréia Schwartz — a cafetina brasileira fundamental na queda de Eliot Spitzer do trono de governador do Estado de Nova York. O quê? Está duvidando? Aguarde então.

É isso, caro leitor, o que alimenta a indústria: o escândalo, esse veio nunca seca. Mas nem tudo está perdido, a Editora Leitura, sediada em Belo Horizonte, não tem essa preocupação e tem recolocado no mercado obras indispensáveis de nossa literatura, me refiro à literatura propriamente dita. A editora publicou Olympia, romance inédito de Fausto Wolff, além de relançar À mão esquerda, O lobo atrás do espelho e O campo de batalha sou eu. Autores como Darcy Ribeiro e Lêdo Ivo fazem parte da seleção da Leitura.

Outro autor de suma importância e raramente lembrado é Walmir Ayala. Dele foi relançado À beira do corpo e publicado o inédito As ostras estão morrendo. Deste trataremos a seguir, não sem antes deixar uma pergunta aos “artistas” da Leitura: como vocês conseguem publicar obras de qualidade inquestionável com as capas mais feias do mercado, algumas beirando o bizarro. Como? Convenhamos, com tantos recursos disponíveis, é necessário fazer muita força para se criar uma capa feia atualmente. E as capas da Leitura são hours concours, um primor de mau gosto.

Mas voltemos às ostras.

As ostras estão morrendo é um livro que esteticamente me fez lembrar essas belas modelos, magras, habitantes das passarelas e de imaginários de ambos os sexos. Elegantes, instigantes e sem o menor excesso, seja no olhar, seja nas medidas ao longo do corpo. As ostras estão morrendo é essa mulher, essa modelo desfilando ante o olhar e a imaginação do privilegiado leitor.

A trama se sustenta sobre dois pilares, um triângulo amoroso e a predominância dos diálogos, aquele dos mais batidos e este dos mais difíceis. Não sob a direção de Walmir Ayala com sua prosa elegante e melancólica.

Um crime
Luiz Rezende é um repórter policial que passa o tempo numa delegacia no Rio de Janeiro, à espera de notícia. Ao acompanhar o delegado ao local de um crime se depara com a beleza da vítima, Cristina, mulher de um milionário pouco potente sexualmente, Carlos Pietri. Para completar o triângulo, Reinaldo, o motorista.

Quem seria o mais frágil, Cristina ou Reinaldo? Por que não Carlos Pietri, que embora toda fortuna não conseguia satisfazer Cristina no mais básico.

O que buscaria cada participante desse triângulo? Amor, alguém há de responder. Mas o que vem a ser amor? Confesso que não sei, mas posso afirmar que não é nada disso que se vê por aí. Quer ver? Como pode ser tão sublime aquilo que exige fidelidade, exclusividade? Seria algo da ordem das dentaduras, das próteses de quadril? O que é meu é só meu e só cabe em mim. É isso? Parece que Carlos Pietri não pensava bem assim. Vale a pena conferir.

Voltemos então ao amor de Reinaldo, Cristina e Carlos. Em As ostras estão morrendo, Walmir Ayala utiliza alguns fios temáticos — os mais visíveis são a invocação de Eros e Tanatos, suas variantes; erotismo e morte, sexo e submissão, e a relação contaminada rico/pobre. O abismo infindável que separa a elite dos pobres, a atenção que os ricos exigem e o total descaso a que são merecedores os pobres, pode ser visto nessa magistral narrativa de Walmir Ayala. O que permitirá ao leitor perceber que desde que foi escrito, o autor morreu em 1991, se houve alguma mudança, quer das instituições, quer da atuação humana, foi para pior. Então, caímos naquele sonolento lugar-comum que diz respeito à atualidade da obra. Lógico, sempre que uma obra tratar da condição humana, garantirá sua atualidade, visto que o cerne da questão é imutável. Já disse isso aqui nessas páginas.

Condição humana
O mais interessante em As ostras estão morrendo é o fato de Walmir Ayala apresentar aos poucos a sordidez que envolve a condição humana. O autor vai imprimindo tensão de maneira sutil até a derrocada final dos escrúpulos. Embora a matéria-prima dessa narrativa seja o amor, a morte e seus mistérios, e se tem mistério e delegado, os apressados logo rotulam de romance policial, este aprendiz aproveita para discordar e afirmar que As ostras estão morrendo é um romance existencialista. Calma, apressado leitor, vou explicar. Antes permita que eu mais uma vez me repita, é lógico que o tom policialesco contamina a trama, mas um dos grandes méritos de Ayala e, sem forçar a mão, criar a atmosfera do romance policial, coisa que a horda de quase imitadores de Rubem Fonseca tenta, tenta, tenta e jamais conseguirá. Tirando Ana Paula Maia, ela transcende o gênero e seu romance A guerra dos bastardos merece ser confrontado com o de melhor de Fonseca. Nessa seara do policial só temos o deserto. E, por favor, não me falem em Tony Bellotto. Luiz Alfredo Garcia-Roza, que de Rubem Fonseca não tem nada, e esse é seu grande mérito, caminha solitário.

Mas eu havia dito que estávamos diante de uma trama existencialista, querem saber por quê? O existencialismo destaca a liberdade individual, a existência precedendo a essência, a propriedade maior do homem é a liberdade. Em As ostras estão morrendo, percebemos exatamente o contrário: o ser humano se vendendo às circunstâncias, o representante da elite dando as cartas e ditando as regras, personagem este refém de uma limitação que já não o “condenava à liberdade”, desdizendo Sartre.

Importante também ressaltar dois pontos: a sutil atmosfera homossexual que perpassa a narrativa. Diferentemente do que temos atualmente na literatura feita por ou destinada ao público GLS, onde o grotesco se faz presente, o autor aqui não faz nenhum proselitismo e empresta ao leitor o destino de Carlos e Reinaldo. Outro ponto a destacar é o fim de Rezende, como todo jornalista que se preze acaba em segundo plano. Não faltam sutilezas ao longo da vasta obra de Ayala.

Para concluir, As ostras estão morrendo é primoroso ao tornar visíveis e acessíveis a expectativa e a desilusão. De se ler e reler.

As ostras estão morrendo
Walmir Ayala
Leitura
111 págs.
À beira do corpo
Walmir Ayala
Leitura
159 págs.
Walmir Ayala
Nasceu em Porto Alegre, em 1933 e morreu no Rio de Janeiro, em 1991. Dedicou-se a vários gêneros literários: poesia, conto, romance, teatro, literatura infantil, diário íntimo, crônica, crítica (de artes plásticas, literatura e teatro). Dedicou-se também, intensamente, ao jornalismo: de 1962 a 1968, assinou no Jornal do Brasil uma coluna de literatura infantil. Colaborou ainda com os jornais Folha de S. Paulo, Correio da Manhã, Jornal do Commercio, Última Hora, O Dia. Tem livros publicados em Portugal, Espanha e Argentina, e poemas, contos e ensaios traduzidos para o inglês, espanhol, francês, italiano e alemão. Autor de mais de uma centena de livros, conquistou vários prêmios nacionais de poesia, ficção e literatura infantil. Entre suas principais obras, estão O edifício e o verbo (poesia, 1961), Difícil é o reino (diário, 1962), O visível amor (diário, 1963), À beira do corpo (romance, 1964), Cantata (poesia, 1966), Ponte sobre o rio escuro (contos, 1974), Vicente, inventor (ensaio, 1980), Partilha de sombra (romance, 1981), entre outras. Deixou ainda um vasto acervo de obras inéditas que aos poucos está sendo publicado.
Luiz Horácio

É escritor. Autor de Pássaros grandes não cantam, entre outros.

Rascunho