A maioria das editoras tem seus olhares voltados às novidades, contam com um sábio que decreta o que vende e o que não vende. São esses exemplos de cultura literária que pariram a Bruna Surfistinha. Mas não se desespere, ó leitor imbecilizado pelas artimanhas das editoras, logo chegará às livrarias o título que dará o pontapé inicial, se bem que no caso creio que coice seja mais apropriado, à carreira da “grande” Andréia Schwartz — a cafetina brasileira fundamental na queda de Eliot Spitzer do trono de governador do Estado de Nova York. O quê? Está duvidando? Aguarde então.
É isso, caro leitor, o que alimenta a indústria: o escândalo, esse veio nunca seca. Mas nem tudo está perdido, a Editora Leitura, sediada em Belo Horizonte, não tem essa preocupação e tem recolocado no mercado obras indispensáveis de nossa literatura, me refiro à literatura propriamente dita. A editora publicou Olympia, romance inédito de Fausto Wolff, além de relançar À mão esquerda, O lobo atrás do espelho e O campo de batalha sou eu. Autores como Darcy Ribeiro e Lêdo Ivo fazem parte da seleção da Leitura.
Outro autor de suma importância e raramente lembrado é Walmir Ayala. Dele foi relançado À beira do corpo e publicado o inédito As ostras estão morrendo. Deste trataremos a seguir, não sem antes deixar uma pergunta aos “artistas” da Leitura: como vocês conseguem publicar obras de qualidade inquestionável com as capas mais feias do mercado, algumas beirando o bizarro. Como? Convenhamos, com tantos recursos disponíveis, é necessário fazer muita força para se criar uma capa feia atualmente. E as capas da Leitura são hours concours, um primor de mau gosto.
Mas voltemos às ostras.
As ostras estão morrendo é um livro que esteticamente me fez lembrar essas belas modelos, magras, habitantes das passarelas e de imaginários de ambos os sexos. Elegantes, instigantes e sem o menor excesso, seja no olhar, seja nas medidas ao longo do corpo. As ostras estão morrendo é essa mulher, essa modelo desfilando ante o olhar e a imaginação do privilegiado leitor.
A trama se sustenta sobre dois pilares, um triângulo amoroso e a predominância dos diálogos, aquele dos mais batidos e este dos mais difíceis. Não sob a direção de Walmir Ayala com sua prosa elegante e melancólica.
Um crime
Luiz Rezende é um repórter policial que passa o tempo numa delegacia no Rio de Janeiro, à espera de notícia. Ao acompanhar o delegado ao local de um crime se depara com a beleza da vítima, Cristina, mulher de um milionário pouco potente sexualmente, Carlos Pietri. Para completar o triângulo, Reinaldo, o motorista.
Quem seria o mais frágil, Cristina ou Reinaldo? Por que não Carlos Pietri, que embora toda fortuna não conseguia satisfazer Cristina no mais básico.
O que buscaria cada participante desse triângulo? Amor, alguém há de responder. Mas o que vem a ser amor? Confesso que não sei, mas posso afirmar que não é nada disso que se vê por aí. Quer ver? Como pode ser tão sublime aquilo que exige fidelidade, exclusividade? Seria algo da ordem das dentaduras, das próteses de quadril? O que é meu é só meu e só cabe em mim. É isso? Parece que Carlos Pietri não pensava bem assim. Vale a pena conferir.
Voltemos então ao amor de Reinaldo, Cristina e Carlos. Em As ostras estão morrendo, Walmir Ayala utiliza alguns fios temáticos — os mais visíveis são a invocação de Eros e Tanatos, suas variantes; erotismo e morte, sexo e submissão, e a relação contaminada rico/pobre. O abismo infindável que separa a elite dos pobres, a atenção que os ricos exigem e o total descaso a que são merecedores os pobres, pode ser visto nessa magistral narrativa de Walmir Ayala. O que permitirá ao leitor perceber que desde que foi escrito, o autor morreu em 1991, se houve alguma mudança, quer das instituições, quer da atuação humana, foi para pior. Então, caímos naquele sonolento lugar-comum que diz respeito à atualidade da obra. Lógico, sempre que uma obra tratar da condição humana, garantirá sua atualidade, visto que o cerne da questão é imutável. Já disse isso aqui nessas páginas.
Condição humana
O mais interessante em As ostras estão morrendo é o fato de Walmir Ayala apresentar aos poucos a sordidez que envolve a condição humana. O autor vai imprimindo tensão de maneira sutil até a derrocada final dos escrúpulos. Embora a matéria-prima dessa narrativa seja o amor, a morte e seus mistérios, e se tem mistério e delegado, os apressados logo rotulam de romance policial, este aprendiz aproveita para discordar e afirmar que As ostras estão morrendo é um romance existencialista. Calma, apressado leitor, vou explicar. Antes permita que eu mais uma vez me repita, é lógico que o tom policialesco contamina a trama, mas um dos grandes méritos de Ayala e, sem forçar a mão, criar a atmosfera do romance policial, coisa que a horda de quase imitadores de Rubem Fonseca tenta, tenta, tenta e jamais conseguirá. Tirando Ana Paula Maia, ela transcende o gênero e seu romance A guerra dos bastardos merece ser confrontado com o de melhor de Fonseca. Nessa seara do policial só temos o deserto. E, por favor, não me falem em Tony Bellotto. Luiz Alfredo Garcia-Roza, que de Rubem Fonseca não tem nada, e esse é seu grande mérito, caminha solitário.
Mas eu havia dito que estávamos diante de uma trama existencialista, querem saber por quê? O existencialismo destaca a liberdade individual, a existência precedendo a essência, a propriedade maior do homem é a liberdade. Em As ostras estão morrendo, percebemos exatamente o contrário: o ser humano se vendendo às circunstâncias, o representante da elite dando as cartas e ditando as regras, personagem este refém de uma limitação que já não o “condenava à liberdade”, desdizendo Sartre.
Importante também ressaltar dois pontos: a sutil atmosfera homossexual que perpassa a narrativa. Diferentemente do que temos atualmente na literatura feita por ou destinada ao público GLS, onde o grotesco se faz presente, o autor aqui não faz nenhum proselitismo e empresta ao leitor o destino de Carlos e Reinaldo. Outro ponto a destacar é o fim de Rezende, como todo jornalista que se preze acaba em segundo plano. Não faltam sutilezas ao longo da vasta obra de Ayala.
Para concluir, As ostras estão morrendo é primoroso ao tornar visíveis e acessíveis a expectativa e a desilusão. De se ler e reler.