Tão longe, tão perto

Pierre Bayard escreve delicioso ensaio sobre livros que não conhecemos, apenas folheamos ou que apenas ouvimos falar
Pierre Bayard, autor de “Como falar dos livros que não lemos?”
01/04/2008

Claro que pedi para resenhar este livro, pensando na ironia que é uma resenhista que só falasse de livros não lidos. Estaria eu perdendo meu tempo quando lia conscienciosamente as obras que me propunha resenhar? Haveria alguma maneira melhor e mais inteligente de resenhar as obras que me fossem destinadas? Claro que já conhecia o aforismo de Oscar Wilde (“Jamais leio um livro do qual tenha que escrever a crítica; nos deixamos influenciar muito facilmente”) que abre o livro de Pierre Bayard, bem como conhecia o famoso artigo de Paul Valéry falando das excelências da obra proustiana de que ele admite só ter lido menos que um volume. Daí a não ler as obras sobre as quais devo falar (ou escrever, em meu caso) há uma longa distância. Sentei-me para ler, pensando que talvez fosse a última vez que o fazia antes de resenhar um livro.

Bayard é professor da Universidade de Paris, uma das mais prestigiosas do mundo, e professor de Literatura. Esse livro poderia voltar-se contra o próprio autor, se logo de início não ficasse evidente que se trata de uma obra de um leitor ávido. Pois uma coisa fica clara desde o início: se ele não leu os livros que menciona, pelo menos leu as resenhas que são feitas sobre esses livros, para se informar, pelo menos, sobre seus enredos. Logo em seguida, os conceitos de Bayard se esclarecem. O que ele enfatiza é que, no mundo de hoje, com a quantidade de livros e de cultura que se produz, torna-se muito difícil acumular a informação que se deseja. A única forma de se saber alguma coisa é incorporando-a em nosso universo próprio, relacionando-a com nossas experiências, tirando-a de seu sacrário e jogando-a no mundo das analogias próprias.

Com o intuito de chocar os leitores (não-leitores?) de sua obra, ele elege como figura representativa de sua tese o bibliotecário criado por Robert Musil, em O homem sem qualidades. Este bibliotecário, devido a seu amor pelos livros — pela totalidade dos livros — se recusa a ler os tomos que guarda receando que seu excessivo apreço a um deles o leve a negligenciar os demais. Esse modelo, segundo o ensaio, deveria ser seguido pelas pessoas cultas, uma vez que a cultura se associa ao infinito, e, na impossibilidade de abranger esse infinito deve-se tentar cuidar sempre de uma visão de conjunto, ao invés de se dedicar a uma especialização míope que leve ao empobrecimento cultural.

Muitas paixões
Os leitores mais ingênuos de Bayard não conseguem compreender que a “não-leitura” não é a “ausência de leitura”. Em entrevistas a jornalistas norte-americanos, muitos insistiram no mesmo ponto, tentando compreender por que folhear um livro pode ser melhor do que lê-lo linha após linha, do princípio ao fim, ou por que folhear 100 livros pode ser melhor que ler um único da maneira tradicional. Bayard, não fosse ele francês, responde com uma bem-humorada aproximação à arte amorosa, dizendo que, para se apaixonar por um alguém, é preciso conhecer muitas pessoas.

Uma leitura tradicional, sacralizadora, factual, incapaz de mexer na obra e deixar que ela mexa com seu leitor é o tipo de leitura que não contribui para a consolidação da cultura. Mas a não-leitura pode ser de diversos tipos, e é isso que nos esclarece a primeira parte de seu ensaio. Falando sobre as “maneiras de não ler”, Bayard nos fornece saborosos casos que abrangem os “livros que não conhecemos”, os “livros que folheamos”, os “livros de que ouvimos falar” e os “livros que esquecemos”. Em cada um desses capítulos, ele nos apresenta deliciosos exemplos tirados de suas muitas “não-leituras”. Musil e seu bibliotecário ilustram o primeiro capítulo. No segundo, as citações das não-leituras de Proust, Anatole France e Bergson por Valéry postulam que, além da visão de conjunto do bibliotecário, é preciso nos acautelarmos com relação a cada livro, mantendo uma distância razoável que nos permita avaliar o livro em sua construção, sem nos perdermos em suas passagens particulares.

No terceiro capítulo, ajudado por um personagem de Umberto Eco, Bayard nos ensina como podemos não-ler um livro de que ouvimos falar: “os discursos que proferimos a propósito dos livros dizem respeito na realidade a outros discursos proferidos sobre os livros, até o infinito”, e postula a existência de um livro encobridor, ou seja, a lembrança de um livro que nos tenha impressionado nunca coincide inteiramente com o livro real, uma vez que é modificada pelas nossas fantasias e ilusões. Finalizando a primeira parte, Montaigne ilustra, com sua fraca memória, a “desleitura”. Ler não é apenas acumular cultura, é também esquecer. É preciso compreender que estamos condenados aos fragmentos e à própria loucura. Toda leitura deve ser encarada como perda, pois, no momento mesmo em que se lê, o processo de esquecimento já se instala. E não devemos reclamar quanto a isso, pois, do contrário, nos transformaríamos em um personagem de Borges, incapaz de viver porque lhe é impossível esquecer.

Estratégias
Na segunda parte o ensaio de Bayard já não tem mais a estranheza de novos conceitos, e o autor conta mais episódios, tirados sempre de suas “não-leituras”, ilustrando as ocasiões em que se pode ser levado a falar de livros não lidos, e exemplificando as estratégias que podem ser usadas. Cedendo a vez a Graham Greene, ele comenta como somos fabricados pelos livros que lemos, ou seja, que nossas bibliotecas interiores são formadoras de nossa identidade. Saindo da situação em que o “conferencista” desconhece a obra da qual precisa falar perante uma platéia de especialistas, ele passa para uma situação mais corriqueira em sala de aulas, onde um professor se vê falando de um livro desconhecido para a totalidade dos alunos. Aproveitando-se de uma interessante experiência de leitura (Hamlet chez les Tiv) em que uma antropóloga americana, Laura Bohannan, se propõe a demonstrar que “o ser humano permanece idêntico a si mesmo, para além das diferenças de cultura”, Bayard reconta as dificuldades experimentadas pela cientista ao tentar fazer o grupo de habitantes da África Ocidental apreciar Hamlet, de Shakespeare. Sem jamais terem lido uma linha da peça, e com uma experiência cultural totalmente diversa da tradição européia ocidental, nem por isso os Tiv se julgam incapazes de discutir e analisar a obra em questão. Paradoxalmente, o afastamento duplo dos Tiv com relação a Hamlet (não leram o livro e pertencem a outra cultura) permite que eles abordem, com originalidade, uma das “suas múltiplas riquezas possíveis”.

O capítulo seguinte trata de como falar diante do próprio autor sobre a obra que não foi lida. Mais uma vez Bayard lança mão de um exemplo literário, desta vez de um livro de Ferdinand Céline, La java brune. As conclusões a que Pierre Bayard chega são a de que nem sempre o autor de uma obra é a melhor pessoa para comentá-la, e que, na maioria dos casos, tudo o que esse autor deseja escutar é uma palavra de gentil encorajamento.

Talvez a situação mais complexa de todas seja diante da pessoa amada. Para seduzi-la, seria preciso, idealmente, uma coincidência de “livros interiores”, aqueles que nos formam como pessoas. Lançando o exemplo do filme O feitiço do tempo, ele demonstra não é espelhando e copiando os outros que os seduzimos, mas lendo com atenção o universo do outro é que conseguimos nos destacar como indivíduos e nos fazer amar.

Finalizando o livro, Bayard nos revela algumas condutas a adotar em situações em que precisamos falar de livros sem os conhecer. É preciso não ter vergonha de admitir que não se conhece a obra. É preciso impor as próprias idéias, pois existem tantas leituras quanto leitores, e os livros não permanecem insensíveis às leituras que suscitam, modificando-se ao longo dos tempos. Os livros são textos móveis, “um conjunto de uma situação de palavra onde ele(s) circula(m) e se modifica(m)”. Mudam de valor e também de conteúdo. Para falar com tranqüilidade de um livro perante o “Outro”, é preciso “desligar-se da idéia de que o outro sabe”, pois “leitores e não-leitores estão presos, queiram ou não, a um processo interminável de invenção de livros”. O livro de que lembramos não é exatamente o livro que lemos, e nossa leitura não pode coincidir com a de outra pessoa, que possui uma biblioteca interior própria. Nas discussões sobre livros a noção de verdadeiro e falso perde o sentido, pois o que os livros sempre possuem em comum é sua ambigüidade. Para terminar, Pierre Bayard oferece a última estratégia, que seria falar de si mesmo.

Apoiado em um artigo de Oscar Wilde, A crítica é uma arte, o autor postula que a literatura ou a arte estão para a crítica assim como a natureza está para o escritor ou o pintor, “pois o único objeto da crítica não é a obra, é ela mesma”. O discurso da crítica é um espaço privilegiado para a descoberta de si, pois “liberada da necessidade limitadora de se submeter ao mundo, pode descobrir, na travessia do livro, a maneira de falar daquilo que está habitualmente encoberto em nós”.

Termino aqui, então, esta resenha, com a certeza de que não li o livro de Pierre Bayard. O que encontrei foi uma agradável antologia de textos sobre leituras, de autores diversos e instigantes. Ligando esses trechos escolhidos, o humor e a experiência de um professor que ama a literatura e que deseja que seus alunos se aproximem dela da mesma maneira que do ser amado: lendo-a como desejam, interpretando-a segundo seus próprios interesses, modificando-a naquilo que podem e saboreando-a com prazer e satisfação. E, se não podem amar a todos os livros com igual dedicação, que ao menos amem devotadamente a idéia do amor. Seguindo essa receita, quando forem chamados a falar de suas paixões, mesmo que nunca tenham tido a chance de realizá-la, poderão imaginar o deleite que tirariam entre as páginas desconhecidas.

Como falar dos livros que não lemos?
Pierre Bayard
Trad.: Rejane Janowitzer
Objetiva
207 págs.
Pierre Bayard
Nascido em 1954, é professor de literatura na Universidade de Paris VIII e também psicanalista atuante. Escreveu, até o momento, quinze livros, em sua maioria sobre obras que ele tenta nos convencer que não leu. Como falar dos livros que não lemos é seu oitavo livro na série Paradoxes, da editora francesa Minuit. Esta coleção tenta intrigar uma platéia culta com obras tais como, por exemplo, Comment améliorer les œuvres ratées? (Como melhorar livros fracos), que imagina como alguns livros de Marguerite Duras, de Proust ou de outros seriam caso tivessem sido escritos por outro grande autor, ou mesmo por um autor desconhecido como o próprio leitor. Em outro livro, Le hors-sujet, Proust et la digression (Saindo do assunto: Proust e a digressão), o professor propõe que se construa uma versão de A procura do tempo perdido livre das digressões que o caracterizam. Além desses livros citados, Bayard ainda escreveu sobre obras de Balzac, Stendhal, Shakespeare, Conan Doyle e Agatha Christie, e defende o direito de “não-ler” em oposição à obrigatoriedade de uma leitura meramente linear. Esse tipo de leitura “sacraliza” as obras literárias e as afastam das experiências pessoais de seus leitores, por isso não deve ser estimulado.
Lúcia Bettencourt

É vencedora do Prêmio SESC de Literatura 2005 com o livro de contos A secretária de Borges (Record, 2006), do Prêmio Josué Guimarães (2007) pelos contos A mãe de ProustA caixa Manhã, e também do Prêmio Osman Lins da Cidade do Recife. É colaboradora do Rascunhoe do suplemento literário Idéias, do Jornal do Brasil. Publicou também Linha de sombra (Record, 2008). A novela O amor acontece será lançada em breve.

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