Pra que serve a literatura?

Não é a primeira, nem será a última vez que nos deparamos com tal pergunta
01/04/2008

Não é a primeira, nem será a última vez que nos deparamos com tal pergunta. Inocente ou provocadora, não importa a forma como nos seja feita, ser-nos-á sempre motivo de desconforto e até, para alguns, insulto. E eu não aconselho a aplicar o método dialético-diatríbico-socrático pra respondê-la, ou seja, a esperteza verborrágica de que tanto gostamos, sob risco de apenas piorar a situação e nos colocar na posição de, além de inúteis, antipáticos.

Pois a perguntinha desconfortável voltou a nos ameaçar. Só que de forma mais contundente. Não é mais uma pergunta. É uma afirmação. A literatura não serve pra nada. Como consolação, não estamos sozinhos. As humanidades não servem pra nada. Ou tudo o que couber na classificação Arts and humanities do sistema educacional universitário norte-americano.

Quem diz isso é o professor Stanley Fish, da Florida International University em Miami, e articulista do jornal The New York Times. No final do ano passado, em seu blog (http://fish.blogs.nytimes.com), Fish comentou um documento da New York State Commission on Higher Education, que fornecia uma espécie de diagnóstico com conseqüentes planejamentos estratégicos para colocar as universidades do Estado de Nova York em melhor posição e competir com as grandes universidades americanas. Com um detalhe: toda a ênfase do documento estava em ciência e tecnologia. Nem um centavo para artes e humanidades.

O que levou Fish a refletir (Will the humanities save us?, de 6 de janeiro) acerca da utilidade prática das humanidades. “O estudo das humanidades torna os cidadãos mais críticos, mais completos, mais virtuosos”, havia sido, em síntese, o comentário geral dos leitores à notícia. Ao que Fish retrucou que é difícil convencer um governante a dar dinheiro para uma “nova interpretação de Hamlet”, e que, se o estudo das humanidades tornasse os homens mais virtuosos, os departamentos de letras e filosofia das universidades estariam repletos de pessoas generosas, pacientes, benevolentes… o que ele, Fish, como integrante de tais departamentos “por mais de 45 anos”, sabia muito bem não ser o caso. Ainda: qual empregador daria atenção a alguém formado e pós-graduado em arte bizantina (exceto um grande museu)? (Poderíamos, por puro masoquismo, acrescentar à lista o argumento mais irritante de todos: de que serve o estudo de Platão ou história medieval a não ser para… ensinar Platão e história medieval?)

O citado artigo teve, claro, grande repercussão. Em sua maioria, os leitores discordaram. O que não é surpresa, dado o perfil de um leitor típico de Stanley Fish. Quando o conteúdo do comentário não era de pura indignação, arriscava meios para justificar a utilidade das humanidades. O que também não era nenhuma surpresa, pois se tratava de professores e/ou alunos cuja existência mesma estava sendo questionada.

Um argumento recorrente e (em minha opinião) eficiente era: se não há utilidade para Hamlet ou Platão, também não pode haver para a Monalisa ou a nona do Beethoven. Se não faz sentido perder tempo lendo Shakespeare, também não pode fazer sentido manter o Louvre no circuito de turismo da França. E dá dinheiro, nest’ pa? Com isso, os leitores ficamos felizes e de alma lavada. Fish estava redondamente enganado.

Até que ele veio com o próximo artigo, The uses of the humanities, part two (13 de janeiro). Nós, os leitores, não teríamos compreendido o que ele quis dizer. Não é que as artes e as humanidades (literatura, filosofia, pintura, etc.) não fossem úteis. É claro que Shakespeare, Leonardo da Vinci, Beethoven, Platão, etc., e seus equivalentes (ainda que menores) contemporâneos têm importância e dão dinheiro. O buraco seria mais embaixo.

O que estaria em questão não são as artes e humanidades, lato sensu, mas, sim, o agrupamento educacional universitário ‘Artes e Humanidades’. Não é Hamlet que está em perigo, mas os comentadores de Hamlet. Ou, mais ainda, os comentadores dos comentadores dos comentadores dos comentadores de Hamlet. Do ponto de vista de quem decide pra aonde vai o dinheiro, Shakespeare está morto. Mas a turma de nerds da computação do Departamento de Engenharia que está prestes a bolar um chip novo com potencial de render alguns milhões de dólares merece toda atenção. Simples assim.

Touché. Ou não.

Sim, é verdade que muito do que se faz em departamentos de filosofia e letras parece masturbação intelectual interminável e absolutamente inútil. Mas também é verdade que essa “masturbação intelectual” é o que ajuda a manter viva a obra de muitos dos criadores originais de filosofia e literatura. Se admitirmos que ambas, em última análise, se justificam pelo prazer que dão a quem é capaz de sentir esse prazer, então manter vivos autores mortos não é pouca porcaria não. Algo assim como inventar sempre uma montanha-russa diferente, com mais loopings e maior velocidade… Pra quem gosta faz todo sentido. E dá dinheiro (que é o crivo fatal do utilitarismo capitalista, enfim, o raciocínio de quem decide pra aonde vão os investimentos).

Por ouro lado, também é verdade que as ciências naturais não são santinhas perfeitas. Um bocado de ‘pesquisas reduntantes’ (pesquisar algo que já foi exaustivamente estudado, ou seja, a masturbação intelectual das ciências naturais) é realizado hoje em dia. No caso das ciências da saúde isso é particularmente grave, já que envolvem sujeitos de pesquisa humanos e/ou animais, portanto submetidos a estresse e riscos desnecessários (embora riscos sejam menos prováveis, pois não se faz pesquisa em animais ou humanos hoje em dia sem o aval de comitês de ética em pesquisa).

Outra defesa possível e interessante, como subproduto do argumento de manter vivas as obras de grandes criadores, é o fato de, embora seja verdade que departamentos de filosofia e literatura tenham tantos maus sujeitos quanto qualquer outro, e também seja verdade não ser raro que governantes com tendências fascistas sejam eruditos, as populações que estes engambelam não o seriam tão facilmente se fossem, elas próprias, eruditas. O pensamento crítico é o bem mais precioso que o consumo das artes e humanidades é capaz de fornecer, para além do mero prazer estético. Mas aí, pra que os departamentos que ensinam e pesquisam essas disciplinas justifiquem sua existência, é preciso que se desencastelem. Não basta manter artistas e filósofos vivos. É preciso fazê-los chegar ao maior número possível de pessoas. Ou Stanley Fish e a turma do dinheiro passam a ter razão.

Flávio Paranhos

É escritor, autor do livro de contos Epitáfio.

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